Michael K. Williams. “Vem aí o Omar”, gritaram, e a TV não voltou a ser a mesma

Michael K. Williams. “Vem aí o Omar”, gritaram, e a TV não voltou a ser a mesma


Ficou imortalizado pela sua performance como Omar Little e pelos vários atos de ativismo, esta segunda-feira o mundo despediu-se de Michael K. Williams, um ator que mudou a forma como vemos televisão.


Antes sequer de vermos a intimidante presença de Omar Little, icónica personagem da série The Wire, interpretado por Michael K. Williams, ouvimos o seu assobio. A melodia da canção infantil, Farmer in the Dell, é o suficiente para deixar todos os traficantes do bairro de Baltimore em alerta.

A maior parte foge para dentro, as crianças alertam os criminosos: “O Omar vem aí”. Dois jovens sentados nas escadas de um prédio esperavam por potenciais clientes, mas o negócio tinha que esperar. “O Omar está a chegar”, grita um deles enquanto foge, deixando o seu amigo para trás, que não ouviu o alerta (ou o assobio) porque estava com o volume do seu Walkman demasiado alto.

Assim que este vê Omar, o pânico instala-se na sua cara e tenta fugir, mas era tarde de mais, quando dobram a esquina para tentar escapar ao homem que fazia da vida roubar traficantes, estes encontram dois dos seus capangas. Omar vem por trás, ainda a assobiar, com uma caçadeira na mão que aponta para o colar em forma de cifrão de um dos traficantes.

Esta aparição do personagem, no quinto episódio da primeira temporada, tornou-se num dos momentos mais definidores da série sobre crime na cidade de Baltimore e um marco na carreira de Michael K. Williams, cuja interpretação se tornou numa das mais icónicas e laureadas da história da televisão.

Recordamos o ator numa das cenas mais icónicas da sua carreira depois de, na segunda-feira, o New York Post ter reportado que o ator norte-americano foi encontrado morto no seu apartamento em Nova Iorque pelo sobrinho.

A morte foi confirmada pelo tenente John Grimpel, da polícia nova-iorquina, à agência AFP, que, embora não tivesse avançado com a causa da morte, segundo o Post Williams terá morrido de “uma suposta overdose na sua penthouse em Brooklyn na tarde de segunda-feira”, citando outras fontes policiais.

O ator de 54 anos já tinha admitido no passado problemas relacionados com drogas, mas nunca procurou esconder os seus “demónios” e as suas batalhas.

“Eu estava a brincar com o fogo”, disse Williams ao site NJ, explicando ainda como o seu papel na série aumentava o risco do seu vício. “Era apenas uma questão de tempo até ser capa de um tabloide e ir parar à prisão. Quando olho para o passado, nem sei como é que nunca acabei num saco para corpos”.

 

O durão que queria ser dançarino

Michael Kenneth Williams nasceu no dia 22 de novembro de 1966, no bairro de East Flatbush, em Brooklyn, onde viveu grande parte da vida sozinho com a sua mãe, natural das Bahamas, que se divorciou do seu pai.

Apesar do ator ser mais reconhecido pelo seu papel como Omar, o assaltante que rouba criminosos, Williams tinha ambições bastante diferentes quando era mais jovem.

Williams era trabalhado-estudante, estagiava na Pfizer, a farmacêutica que agora produz uma das mais eficientes vacinas contra a covid-19, mas, depois de ouvir o disco Rhythm Nation 1814 de Janet Jackson, este abandonou o seu trabalho e a escola para prosseguir uma carreira enquanto dançarino.

“As pessoas interpretam mal quando digo que era um dançarino”, disse Williams ao Guardian, em 2012. “Não tenho treino clássico. Sou um dançarino de rua e tive oportunidade de o fazer em vários clubes noturnos na cidade de Nova Iorque… Sou um miúdo das ruas de Brooklyn que era pago para viajar à volta do mundo”, recordou desta fase inicial da carreira, onde teve ainda oportunidade de trabalhar com estrelas como Madonna, George Michael ou Missy Elliot.

“Estava zangado e tinha muita energia”, contou o ator em 2018 à Associated Press. “Usava a dança como forma de expressão. Podia não ser o melhor dançarino, mas era, sem dúvida, aquele que tinha mais paixão”.

Este sonho seria, no entanto, colocado de parte depois de Williams conseguir o seu primeiro papel no cinema, um trabalho que foi garantido graças ao lendário rapper Tupac Shakur.

O rapper descobriu uma fotografia de Williams, que andava a fazer várias audições em Nova Iorque e teve a certeza de que ele era a pessoa certa para desempenhar o papel do seu irmão, no filme Bullet (1996). “Ele viu a foto e disse: ‘Vocês precisam de encontrar este tipo, ele tem o aspeto de durão suficiente para parecer meu irmão’”, recordou o ator à revista People.

Uma das caraterísticas físicas que mais garantia este aspeto ao ator era a cicatriz que este envergava no rosto, algo que o acompanha desde o seu 25.º aniversário, quando foi atacado com uma navalha numa luta no bairro de Queens, em Nova Iorque.

Desde que ficou com a marca, diretores de casting deixaram de contratar Williams para ser dançarino e passou a desempenhar papéis de bandidos.

Depois de várias performances discretas, por exemplo, no filme Bringing Out the Dead (1999) de Martin Scorsese, onde fez de traficante, ou na aclamada série Sopranos, iria chegar a proposta que mudaria a vida de Williams.

 

Conflituoso, contraditório, imortal

O ator estava destinado a fazer uma performance que iria mudar a forma de fazer televisão e a forma como olhamos com preconceito para as personagens de criminosos.

Apesar de o papel de Ray-Ray, em Sopranos, um homem de família que aceita esconder o filho de um mafioso que tinha acabado de morrer, ter surgido apenas em poucos minutos, foi uma performance que encheu Williams de orgulho. Numa entrevista à Vanity Fair, o ator explicou como grande parte dos atores negros que apareciam na série acabavam por “flutuar com os peixes”, no entanto, Ray Ray, era mais do que um “peão que acabaria por morrer”.

Omar Little era um dos personagens mais carismáticos e duros em The Wire, uma série repleta de personagens carismáticos e duros, no entanto, destacava-se por todas as suas contradições. Este era um assaltante que apenas roubava traficantes, de forma implacável, apesar de proteger civis inocentes, acompanhava a avó até à igreja e era um amante carinhoso dos três namorados que tem ao longo da série.

“Observei muita homofobia na minha comunidade”, disse o ator ao New York Times, em 2019. “O Omar definitivamente ajudou a acalmar a homofobia na minha comunidade e ajudou a abrir o diálogo”.

“O Omar funcionava porque ele não pedia desculpa pelo que era”, disse numa entrevista ao Guardian, citada pela Rolling Stone. “Ele não se tenta esconder. Ele é o típico gajo com morais e um código… e é mesmo isso que nós queremos ser: pessoas reais. Podemos não concordar com os nossos estilos de vida, mas se uma pessoa é direta sobre aquilo que é, elas ganham o nosso respeito”.

No entanto, depois do fim da série, ao contrário dos seus colegas que se tornaram bastante famosos e bem-sucedidos, como Idris Elba ou Michael B. Jordan, Williams encontrou imensas dificuldades em lidar com a fama e, inclusive, confessou que gastou grande parte do dinheiro que fez com o The Wire em drogas.

O ator estava numa espiral destrutiva, no entanto, o momento de mudança viria a acontecer em 2008, durante um comício do ex-Presidente Obama, que afirmou que Omar era a sua personagem favorita da série.

“Ouvir o meu nome a sair da sua boca acordou-me”, confessou o ator ao New York Times. “Percebi que o meu trabalho podia fazer toda a diferença”.

Desde então, o ator era uma presença regular na televisão e cinema, aparecendo em filmes como 12 Years a Slave, Inherent Vice ou em séries como Boardwalk Empire, Community ou, mais recentemente, Lovecraft Country, cujo papel de Montrose Freeman, lhe valeu a sua quinta nomeação para um Emmy.

Além do impressionante trabalho como ator, Williams também era um prolífico ativista, uma voz ativa na comunidade Black Lives Matter, trabalhou como repórter para a Vice News, inclusive num documentário sobre as prisões nos Estados Unidos, e estava a desenvolver um projeto em Nova Jérsia que iria permitir uma transição mais pacífica de ex-prisioneiros para reentrarem na sociedade.

Antes da sua morte, o ator que desempenhou um dos mais icónicos anti-heróis da história da televisão confessou que, após ter terminado as gravações de Lovecraft Country voltou a fazer terapia.

“Sabes, eu também estou nesse ‘clube’”, confessou Williams a Marc Maron, numa entrevista feita para o podcast do humorista, WTF, em fevereiro deste ano, referindo-se ao facto de também estar em fase de recuperação do seu consumo de drogas excessivo, mencionando ainda as dificuldades deste processo. “Não é tudo rosas depois de abandonares as drogas e um ‘vivemos felizes para sempre’”, explicou.

“Quando largamos as drogas é quando começa o trabalho a sério, quando temos que limpar a casa e levar o lixo para fora”.