Um pouco por todo o Brasil, apoiantes de Jair Bolsonaro saíram às ruas, esta terça-feira, no Dia da Independência, convocados por uma enchente de perfis falsos nas redes sociais, galvanizados por fake news, falando de fraude eleitoral no que toca ao voto eletrónico – as semelhanças com o discurso dos apoiantes de Donald Trump, quando tomaram de assalto o Capitólio, a 6 de janeiro, provavelmente não são coincidência – e furiosos com o Supremo Tribunal Federal (STF).
A tensão está em alta, tendo até mais de 150 políticos de 26 países – incluindo figuras como o antigo primeiro-ministro espanhol José Luis Rodriguez Zapatero, o académico Noam Chomsky, o antigo ministro grego Yanis Varoufakis ou ex-líder trabalhista britânico Jeremy Corbyn – alertado que a própria democracia brasileira está em perigo.
De facto, as manifestações não começaram nada bem. Logo na noite anterior, bolsonarista furaram o bloqueio na Esplanada dos Ministérios, perto do Congresso e do Supremo Tribunal, perante a aparente passividade de agentes da polícia militar – dado que muitos são conhecidos fãs do Presidente, os receios foram enormes. Entretanto, outros agentes tiveram de avançar sobre a multidão, disparando até gás lacrimogéno.
Horas depois, o próprio Bolsonaro apontou baterias à Justiça brasileira, que investiga a sua família por diversos crimes de corrupção, enquanto vários dos seus apoiantes têm recebido ordem de prisão por ameaças ao STF.
“Esse poder pode sofrer aquilo que não queremos”, ameaçou o Presidente, perante milhares dos seus apoiantes reunidos na capital brasileira. Entre uma maré de verde e amarelo, via-se gente com cartazes pedindo um golpe militar contra o “ditador de toga”, ou para “acabar com o puteiro em Brasília”. Já Bolsonaro garantiu que apenas pretende respeitar a Constituição.
“Quem anda fora dela, ou se enquadra ou pede para sair”, gritou o Presidente, numa aparente referência ao célebre chavão do Capitão Nascimento, a personagem principal do filme Tropa de Elite, um polícia militar durão, disposto a torturar suspeitos em nome do combate ao tráfico.
Ainda que o próprio realizador da película, José Padilha, tenha chegado a referir numa entrevista à Folha de S. Paulo que talvez “os eleitores de Bolsonaro que acharam que estavam votando no Capitão Nascimento tenham votado no Major Rocha, o chefe da milícia”, vilão da história.
Curiosamente, Nelson Piquet, tricampeão mundial de Fórmula 1, conduziu o Rolls-Royce que levou o Presidente para a cerimónia de hasteamento da bandeira no Dia da Independência.
Animal Encurralado
“Toda a linguagem do bolsonarismo é autoritária, feita para alimentar ódios numa parcela da população muito ressentida e conservadora”, salienta Fernando Abrúcio, doutorado em Ciências Políticas e professor da Fundação Getúlio Vargas, ao i.
É esse setor, uns 15% a 20% dos brasileiros, estima, que vimos representada nestas manifestações. Já Esther Solano, socióloga e professora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), estima que a base mais radical de Bolsonaro não passe de uns meros 12% a 15%. Mas concorda com a análise de Abrúcio.
“Essa é de facto uma base minoritária, mas fazem muito barulho”, explica a socióloga. “Têm uma militância online muito bem organizada, uma organização massiva de partilha de notícias, de posts, uma rede de fake news e bots. E também há um reflexo disso offline, nas ruas”.
Essa rede tem sido um dos principais alvos da Justiça brasileira. Ainda no mês passado, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) chegou a proibir várias plataformas – o YouTube, Twitch.TV, Twitter, Instagram e Facebook – de enviar dinheiro por publicidade a páginas bolsonaristas de desinformação organizada.
Foram atingidas páginas como o Terça Livre, Folha Política – onde Bolsonaro intervém recorrentemente – ou Te Atualizei, da youtuber Bárbara Destefani. Imagens mostram-na a ser recebida como heroína, tanto por jovens como idosos, nas manifestações na Avenida Paulista, para onde o Presidente se dirigiu após discursar em Brasília.
No entanto, se o barulho é muito, sobra pouco mais que isso a Bolsonaro. Está em queda livre nas sondagens, com uma taxa de reprovação de 64%, segundo o Atlas Político, foi abandonado por antigos aliados – como João Dória, governador de São Paulo, que face às mobilizações de 7 de setembro pela primeira vez se colocou a favor do impeachment do Presidente – e vê Lula a explodir nas intenções de voto nas presidenciais de 2022.
“É como se um animal selvagem se sentisse encurralado, desesperado”, explica Solano, tentando dar sentido às manifestações desta terça-feira. “A única forma que tem de reagir é a violência, aumentando o tom antidemocrático e a postura autoritária e intolerante”
Abrúcio concorda, mas acrescenta que pode haver uma certa racionalidade nas motivações de Bolsonaro. “O Presidente faz uma aposta dupla: trilhar tanto pelo caminho eleitoral como pelo golpismo”, considera o professor.
“Para ambos ele conta com parte do eleitorado, atuando de forma constante em torno de um conjunto de valores e em prol do líder. O cálculo eleitoral do Bolsonaro é que, se mantiver esse grupo fiel, poderá chegar ao segundo turno e 2022 com um pouco mais de 20% dos votos”. explica.
Aí, poderia ver-se outra vez a polarização que existiu nas presidenciais de 2018, com a direita tradicional – e rivais como Dória ou Sérgio Moro – fora de jogo e o Presidente face ao Partido dos Trabalhadores, (PT) contra o qual ainda há muitos anticorpos no Brasil. “Porém, se esse plano der errado, Bolsonaro tem um grupo de sectários capazes de mobilizarem para, no mínimo, bagunçarem o processo eleitoral, como os trumpistas fizeram nos EUA”, conclui Abrúcio.