A campanha autárquica com excesso de ruído


Antes de votar, cada um deve pensar bem no que vai escolher, até porque tem três boletins e, portanto, um grande leque de hipóteses.


Nota prévia: deixar que um suspeito de terrorismo do Daesh, que estava a ser vigiado há um ano, tenha trabalhado na confeção de almoços oferecidos pelo Presidente da República a embaixadores e tenha, mais tarde,  servido à mesa o primeiro-ministro e o ex-presidente Sampaio (num restaurante aberto por refugiados sírios em nome de uma causa humanitária de integração), é coisa que não cabe na cabeça de um maluco. Claro que com Marcelo o suspeito, atualmente em prisão preventiva por suspeita de terrorismo, até tirou a inevitável selfie. Andam a brincar com o quê e com quem?

 

1. Apanhados no meio da vida difícil e sofrida, da magnífica campanha militar de vacinação (sim, uma organização militar só parcialmente SNS), dos anúncios sucessivos de milhões de notas da bazuca “costista”, das peripécias putativamente sucessórias do PS, dos posicionamentos estratégicos dos dirigentes atuais e promitentes do PSD, das memórias de Balsemão, da transferência de Ronaldo,  das eleições no Benfica, da guerra das to(i)uradas, dos desenvolvimentos de casos judiciais, das greves da CP, dos défices da TAP ou, claro, da judiciosa questão de saber quem vai casar com o agricultor e do share da Cristina, os portugueses terão de fazer um assinalável esforço de abstração e reflexão para decidir em quem votar nas autárquicas, elegendo aqueles que mais próximo deles e dos seus problemas se vão situar politicamente.

As eleições autárquicas estão contaminadas (ou mesmo poluídas) pelas pequenas e grandes questões nacionais e por tudo o que de horrível se passa no Afeganistão e outros países, e ainda pela memória do que aconteceu há 20 anos quando o mundo viveu em direto o ataque terrorista que destruiu as Torres Gémeas de Nova Iorque, mudando o curso da história e de um século que se esperava ir para melhor, ao contrário do que tem sucedido.

Voltando ao burgo, assinale-se que cada português, ou residente estrangeiro com direito a voto, vive numa dimensão bem diferente das que planetariamente foram aqui citadas. Cada um tem um espaço circundante maior ou mais pequeno, que consiste na sua autarquia, na sua vizinhança de freguesia, de vila, de cidade ou de metrópole (se é que há metrópoles entre nós).

Pode legitimamente haver a tendência para votar assim ou assado porque não se gosta de Costa, de Rio, de Catarina, de Jerónimo, ou simplesmente porque sim. Não é, porém, aconselhável proceder desse modo. O mais sensato é cada um pensar nas coisas mais comezinhas e bonitas que o Poder Local (não aquele dos pisos recuados e das alterações de PDM) lhe pode trazer, numa relação de proximidade.

É essa análise que importa fazer antes decidir. Claro que da soma das escolhas há, depois, conclusões nacionais a tirar. E porquê? Porque no topo das decisões está uma liderança que tem por obrigação estrita criar as condições nacionais para que tudo corra razoavelmente, proporcionando progressos e ganhos de posições. É precisamente por fracassos nessa obrigação que as autárquicas têm sido o cemitério político de muitos líderes e de vários primeiros-ministros. Trata-se de uma consequência indireta de um processo e de uma rede capilar que não deveria estar cheia de trombos gerados por disputas e intrigas à volta de egos. Obviamente, quem tem de pagar as consequências da soma dos fracassos são o líder e os seus mais próximos seguidores, em caso de derrota clara. As autárquicas são eleições fundamentais para quem está na estratosfera da política, mas para o cidadão comum devem ser aquelas em que o voto deve ser menos solidário e mais egoísta, objetivamente virado para o pragmatismo e menos ideológico. Cada um deve votar naquilo que possa ser mais importante para o seu quotidiano ou dos seus próximos. Por isso são as eleições que possibilitam um o voto mais livre e mais pensado.  Não é por acaso que cada eleitor tem três boletins: um para a Assembleia de Freguesia (da qual sai o presidente da Junta), outro para a Assembleia Municipal e outro ainda para presidente da Câmara. São três votos que podem ser contraditórios entre si, o que é politicamente magnífico no que isso representa de liberdade democrática de escolha e de opções. Por esta natureza específica, as autárquicas deveriam ser as eleições com mais participação. Infelizmente não tem sido assim. Mas é importante, nestes dias, reafirmar que é fundamental participar e escolher, depois de parar para pensar, Nunca esquecendo que abster-se é deixar que o vizinho decida por nós.

 

2. Num duplo ato de coragem e de política pura, Paulo Rangel assumiu a sua orientação sexual num programa de televisão de alta qualidade, mas não jornalístico, da SIC. Paulo Rangel vinha sendo há muito objeto de uma campanha negra, como ele próprio disse e toda a gente constatou. Com a entrevista, Rangel limpou o terreno para o caso de entender candidatar-se à liderança do PSD, não sendo certo que o faça. O que passou a ser certo é que ele já não está condicionado nem pode ser pressionado por quaisquer questões laterais. Rangel foi mais um político a assumir uma certa condição, num tempo em que isso deveria ser um procedimento normal, uma vez que na vida política já nada é privado neste mundo mediático. A diferença está no facto de ser o primeiro a fazê-lo, com objetiva hipótese de um dia chegar à chefia do Governo de Portugal. Saber se vai ou não avançar rumo à liderança é uma questão diferente que depende de muitos fatores e lhe vai ocupar muitas horas de reflexão. Se Rio for embora, a questão está resolvida por definição. Se Rio persistir em ficar (como é provável), o problema de Rangel é que ele e Rio partilham uma base comum de apoio, com as mesmas figuras. Do outro lado, estarão os chamados passistas, para usar uma linguagem simplificada. Por isso, haverá sempre uma figura vinda dessa área que avançará. Resta saber quem. Jorge Moreira da Silva ou Pinto Luz vêm dessa área. O primeiro com uma craveira política e intelectual notável e o segundo com uma experiência de eficácia no terreno muito grande.

 

3. Francisco Balsemão foi homenageado a propósito dos 40 anos da formação do seu governo e da publicação das suas memórias. O livro (não lido pelo articulista) permite revisitar Balsemão nas facetas que ele deseja. Um bom momento na promoção foi a entrevista que Fátima Campos Ferreira conduziu na RTP. Não tanto por qualquer novidade discursiva, mas pelas expressões e posturas do ex-primeiro-ministro sobre certas pessoas e episódios. Semiótica pura, portanto. Já o trabalho laudatório de resumo feito no Expresso por Henrique Monteiro foi exatamente o contrário da linha de rigor que Balsemão sempre defendeu para o seu Expresso. Não havia necessidade, mas o jeito estava muito bem feito! O discurso de Mota Amaral na homenagem que António Costa organizou foi um retrato impressivo de Balsemão e das suas circunstâncias, com alfinetadas aos dias de hoje. Balsemão foi e é o grande paladino da luta pela libertação da sociedade civil em Portugal. Curiosamente, é também um dos raros exemplos de sucesso dessa mesma sociedade, como se vê pela circunstância de, hoje, em Portugal, o Estado ter um pé em tudo ou quase. Somos provavelmente o exemplo mais próximo do eurocomunismo que Berlinguer defendeu em Itália. Temos uma democracia política e uma economia dependente do Estado ou, melhor, de dois estados: o nosso e o chinês.

 

Escreve à quarta-feira


A campanha autárquica com excesso de ruído


Antes de votar, cada um deve pensar bem no que vai escolher, até porque tem três boletins e, portanto, um grande leque de hipóteses.


Nota prévia: deixar que um suspeito de terrorismo do Daesh, que estava a ser vigiado há um ano, tenha trabalhado na confeção de almoços oferecidos pelo Presidente da República a embaixadores e tenha, mais tarde,  servido à mesa o primeiro-ministro e o ex-presidente Sampaio (num restaurante aberto por refugiados sírios em nome de uma causa humanitária de integração), é coisa que não cabe na cabeça de um maluco. Claro que com Marcelo o suspeito, atualmente em prisão preventiva por suspeita de terrorismo, até tirou a inevitável selfie. Andam a brincar com o quê e com quem?

 

1. Apanhados no meio da vida difícil e sofrida, da magnífica campanha militar de vacinação (sim, uma organização militar só parcialmente SNS), dos anúncios sucessivos de milhões de notas da bazuca “costista”, das peripécias putativamente sucessórias do PS, dos posicionamentos estratégicos dos dirigentes atuais e promitentes do PSD, das memórias de Balsemão, da transferência de Ronaldo,  das eleições no Benfica, da guerra das to(i)uradas, dos desenvolvimentos de casos judiciais, das greves da CP, dos défices da TAP ou, claro, da judiciosa questão de saber quem vai casar com o agricultor e do share da Cristina, os portugueses terão de fazer um assinalável esforço de abstração e reflexão para decidir em quem votar nas autárquicas, elegendo aqueles que mais próximo deles e dos seus problemas se vão situar politicamente.

As eleições autárquicas estão contaminadas (ou mesmo poluídas) pelas pequenas e grandes questões nacionais e por tudo o que de horrível se passa no Afeganistão e outros países, e ainda pela memória do que aconteceu há 20 anos quando o mundo viveu em direto o ataque terrorista que destruiu as Torres Gémeas de Nova Iorque, mudando o curso da história e de um século que se esperava ir para melhor, ao contrário do que tem sucedido.

Voltando ao burgo, assinale-se que cada português, ou residente estrangeiro com direito a voto, vive numa dimensão bem diferente das que planetariamente foram aqui citadas. Cada um tem um espaço circundante maior ou mais pequeno, que consiste na sua autarquia, na sua vizinhança de freguesia, de vila, de cidade ou de metrópole (se é que há metrópoles entre nós).

Pode legitimamente haver a tendência para votar assim ou assado porque não se gosta de Costa, de Rio, de Catarina, de Jerónimo, ou simplesmente porque sim. Não é, porém, aconselhável proceder desse modo. O mais sensato é cada um pensar nas coisas mais comezinhas e bonitas que o Poder Local (não aquele dos pisos recuados e das alterações de PDM) lhe pode trazer, numa relação de proximidade.

É essa análise que importa fazer antes decidir. Claro que da soma das escolhas há, depois, conclusões nacionais a tirar. E porquê? Porque no topo das decisões está uma liderança que tem por obrigação estrita criar as condições nacionais para que tudo corra razoavelmente, proporcionando progressos e ganhos de posições. É precisamente por fracassos nessa obrigação que as autárquicas têm sido o cemitério político de muitos líderes e de vários primeiros-ministros. Trata-se de uma consequência indireta de um processo e de uma rede capilar que não deveria estar cheia de trombos gerados por disputas e intrigas à volta de egos. Obviamente, quem tem de pagar as consequências da soma dos fracassos são o líder e os seus mais próximos seguidores, em caso de derrota clara. As autárquicas são eleições fundamentais para quem está na estratosfera da política, mas para o cidadão comum devem ser aquelas em que o voto deve ser menos solidário e mais egoísta, objetivamente virado para o pragmatismo e menos ideológico. Cada um deve votar naquilo que possa ser mais importante para o seu quotidiano ou dos seus próximos. Por isso são as eleições que possibilitam um o voto mais livre e mais pensado.  Não é por acaso que cada eleitor tem três boletins: um para a Assembleia de Freguesia (da qual sai o presidente da Junta), outro para a Assembleia Municipal e outro ainda para presidente da Câmara. São três votos que podem ser contraditórios entre si, o que é politicamente magnífico no que isso representa de liberdade democrática de escolha e de opções. Por esta natureza específica, as autárquicas deveriam ser as eleições com mais participação. Infelizmente não tem sido assim. Mas é importante, nestes dias, reafirmar que é fundamental participar e escolher, depois de parar para pensar, Nunca esquecendo que abster-se é deixar que o vizinho decida por nós.

 

2. Num duplo ato de coragem e de política pura, Paulo Rangel assumiu a sua orientação sexual num programa de televisão de alta qualidade, mas não jornalístico, da SIC. Paulo Rangel vinha sendo há muito objeto de uma campanha negra, como ele próprio disse e toda a gente constatou. Com a entrevista, Rangel limpou o terreno para o caso de entender candidatar-se à liderança do PSD, não sendo certo que o faça. O que passou a ser certo é que ele já não está condicionado nem pode ser pressionado por quaisquer questões laterais. Rangel foi mais um político a assumir uma certa condição, num tempo em que isso deveria ser um procedimento normal, uma vez que na vida política já nada é privado neste mundo mediático. A diferença está no facto de ser o primeiro a fazê-lo, com objetiva hipótese de um dia chegar à chefia do Governo de Portugal. Saber se vai ou não avançar rumo à liderança é uma questão diferente que depende de muitos fatores e lhe vai ocupar muitas horas de reflexão. Se Rio for embora, a questão está resolvida por definição. Se Rio persistir em ficar (como é provável), o problema de Rangel é que ele e Rio partilham uma base comum de apoio, com as mesmas figuras. Do outro lado, estarão os chamados passistas, para usar uma linguagem simplificada. Por isso, haverá sempre uma figura vinda dessa área que avançará. Resta saber quem. Jorge Moreira da Silva ou Pinto Luz vêm dessa área. O primeiro com uma craveira política e intelectual notável e o segundo com uma experiência de eficácia no terreno muito grande.

 

3. Francisco Balsemão foi homenageado a propósito dos 40 anos da formação do seu governo e da publicação das suas memórias. O livro (não lido pelo articulista) permite revisitar Balsemão nas facetas que ele deseja. Um bom momento na promoção foi a entrevista que Fátima Campos Ferreira conduziu na RTP. Não tanto por qualquer novidade discursiva, mas pelas expressões e posturas do ex-primeiro-ministro sobre certas pessoas e episódios. Semiótica pura, portanto. Já o trabalho laudatório de resumo feito no Expresso por Henrique Monteiro foi exatamente o contrário da linha de rigor que Balsemão sempre defendeu para o seu Expresso. Não havia necessidade, mas o jeito estava muito bem feito! O discurso de Mota Amaral na homenagem que António Costa organizou foi um retrato impressivo de Balsemão e das suas circunstâncias, com alfinetadas aos dias de hoje. Balsemão foi e é o grande paladino da luta pela libertação da sociedade civil em Portugal. Curiosamente, é também um dos raros exemplos de sucesso dessa mesma sociedade, como se vê pela circunstância de, hoje, em Portugal, o Estado ter um pé em tudo ou quase. Somos provavelmente o exemplo mais próximo do eurocomunismo que Berlinguer defendeu em Itália. Temos uma democracia política e uma economia dependente do Estado ou, melhor, de dois estados: o nosso e o chinês.

 

Escreve à quarta-feira