As noites de verão permitem, geralmente, encontros de amigos e conversas longas e distendidas.
Numa delas, calhou-me, a propósito da política portuguesa e do eco que dela é dado continuadamente nos media, ouvir uma anedota já antiga, que alguém recordou para explicar o que está a acontecer entre nós.
Um homem entra num comboio, senta-se num compartimento, e, logo que a composição começa a mover-se, inicia, em tom progressivamente mais elevado, para que todos o possam ouvir, um lamento monótono: «Ah, se vocês soubessem a sede que eu tenho… se soubessem mesmo a sede que eu tenho!».
Os outros passageiros que ocupavam o mesmo compartimento e que nada podiam fazer para acudir ao queixume, atentaram, condoídos, no sofrimento daquele homem que, ininterruptamente, continuava a sua lengalenga: «Ah, se vocês soubessem a sede que eu tenho… se soubessem mesmo a sede que eu tenho!».
A dado momento, o comboio parou algum tempo numa estação, o homem saiu a correr, comprou uma garrafa de água, bebeu-a, guardou outra e regressou ao seu compartimento.
Os restantes passageiros, aliviados, pensaram, então, que o sofrimento do homem e o seu haviam cessado e que, por fim, podiam descansar, lendo os seus livros ou dormitando na carruagem.
Porém, quando menos se esperava, e para a exasperação de todos, o homem recomeçou a ladainha: «Ah, se vocês soubessem a sede que eu tinha… se soubessem mesmo a sede que eu tinha!».
Muito do discurso político, e do comentário que nos media se faz dele, reproduz exatamente este tipo de martírio monótono, concluiu o contador da anedota.
Quando não há incêndios, fala-se dos que houve em anos anteriores, das vítimas e dos prejuízos que causaram.
Quando se antevê o cumprimento do plano de vacinação, começa, em vez da expressão da satisfação que disso resulta, a clamar-se pela necessidade de uma terceira dose, denegrindo o trabalho já feito e aqueles que o fizeram.
Quando, fruto do COVID, o confinamento tudo encerra, exigem-se medidas prementes para uma maior abertura da economia. Depois, quando o número de infetados cresce, reivindica-se, com a mesma urgência, um novo confinamento e medidas mais rigorosas, que, acrescenta-se então, já deviam ter sido tomadas há muito.
Quando é visível a necessidade de apoios sociais para acudir às pessoas mais necessitadas e às empresas menos pujantes, reivindicam-se estes com insistência e critica-se a insuficiência do Estado Social. Logo a seguir, vocifera-se contra o aumento da despesa do Estado, o aumento do deficit e da dívida.
Quando se constata a flagrante miséria dos salários da maioria dos portugueses, exige-se, e bem, que o Estado desenvolva políticas que permitam o seu crescimento, para, de imediato, se protestar contra a imposição de tais medidas e a necessidade imperiosa de se moderarem os apetites dos trabalhadores e dos seus sindicatos.
Quando os comboios não funcionam e se atrasam, exigem-se iniciativas imediatas que corrijam a situação, para, depois, se contestar o aumento do investimento público nos transportes.
Quando se relatam casos de corrupção grave, alvitram-se medidas expeditas, intrusivas e extraordinárias para o seu combate eficiente. De seguida, os mesmos que até admitem que um qualquer cidadão aceda aos correios eletrónicos privados e que o seu contributo pirateado possa ser tomado em consideração na investigação criminal, indignam-se – talvez bem – com a aprovação de leis que deveriam permitir ao Ministério Público o acesso expedito a esses mesmos correios, sem autorização prévia de um juiz.
Há, com efeito, um queixume pandémico e catastrofista – e sempre politicamente bem direcionado – que domina muito do discurso público preponderante.
Mais importante do que discutir ideias e projetos para resolver, com solidez e visão de futuro, os problemas do país e construir, assim, uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais confiante, parece ser, infindavelmente, e em todas as circunstâncias, escarafunchar as feridas que se ajudaram a abrir e a infetar.
Tudo isto contribui, está bom de ver, para o aumento da abstenção eleitoral e para a diminuição da leitura, audição e visionamento dos media de referência por parte de muitos cidadãos.
Um constante clamor, incoerente e hipócrita, domina, com efeito, muito do discurso público, sem que ninguém – e sobretudo os media mais conceituados – tenha a coragem de dizer que o rei vai nu: que não se discutem as ideias de quem as tem e as anuncia sem temor, e que também não se denuncia a falta delas ou quem, tendo-as, as esconde envergonhadamente.
Se é, apenas, para empolar indignações, choros e ranger de dentes, haverá, todavia, sempre quem, nas margens da democracia, o saiba fazer melhor do que os políticos constitucionalistas e os media de referência.
Não restem dúvidas, na política – mesmo no seio dos partidos constitucionalistas – quando o discurso sério e a crítica racional são substituídos por lamentos constantes, imprecações absurdas e, até, por berreiros histéricos são os profetas da desgraça e as carpideiras mais afoitas e que querem, declaradamente, confrontar o sistema constitucional, que melhor se fazem ouvir e entender.