Pornografia feminista. Uma forma de ativismo ou um perpetuar da distinção de género?

Pornografia feminista. Uma forma de ativismo ou um perpetuar da distinção de género?


Apesar do longo caminho já percorrido, a luta pela emancipação feminina perpetua-se no tempo. E o universo pornográfico não é exceção. Nasce um novo conceito de vídeos para adultos apelidado de Pornografia Feminista, ao mesmo tempo que explode a controvérsia que interroga como é que estes dois conceitos podem estar interligados.


Se pensarmos em vídeos pornográficos, veremos que a maioria é focada no prazer masculino. Isso acontece porque a indústria pornográfica tem sido pensada e realizada, ao longo dos anos, por homens e para homens, o que acaba por implementar a ideia de que “são estes quem têm de ter prazer e que o sexo acaba quando o homem atinge o clímax”, independentemente da posição ou necessidades da mulher. Ou seja, é o homem que tem primordialmente de ter prazer numa relação sexual. E, segundo Paula Napolitano, psicóloga clínica especialista em terapia sexual, essa ideia é, muitas vezes, “reproduzida na vida real”.

“É preciso compreender que a pornografia não reflete a realidade em muitos aspetos. Por exemplo, nos filmes pornográficos a mulher é sempre representada em gritos estridentes, mas na realidade muitas mulheres não se expressam dessa forma durante a relação sexual”, elucidou ao i Catarina Lucas, psicóloga clínica e especialista em educação sexual. “A pornografia é feita maioritariamente para corresponder ao estímulo do homem, especialmente a este estímulo muito visual. Reflete ainda um instinto mais primitivo do ser humano, mas que no dia-a-dia e na convivência real precisa ser moderado”, acrescentou. Segundo a especialista, felizmente, “o homem atual já se preocupa também com o bem-estar e prazer da parceira”. “Todavia, algumas dessas ideias ainda persistem e também o próprio homem ainda ‘carrega’ algumas ideias desajustadas”, explicou.

 

O PAPEL DAS MULHERES NA PORNOGRAFIA

A mulher aparece no plano secundário como responsável pela masturbação, pelo sexo oral e por provar ao homem que este chegou ao orgasmo, “graças a si”. “E isso acaba internalizado na sociedade, deixando o prazer feminino de lado. Ela deve dar prazer mas não necessariamente senti-lo”, escreveu a especialista num dos seus artigos científicos.

“A industria pornográfica sempre se direcionou mais ao sexo masculino que feminino. A maior parte dos conteúdos pornográficos são direcionados ao homem e a mulher nem sempre usufrui do mesmo modo desses conteúdos”, concordou a especialista Catarina Lucas, revelando que isso acontece porque o homem “tem um estímulo mais visual comparativamente à mulher, o que tem sido aproveitado pela indústria pornográfica, criando conteúdos apelativos ao homem”. “É, por isso, importante que se comecem a criar conteúdos mais apelativos à mulher e que tenham a capacidade de contribuir favoravelmente para o desenvolvimento da sexualidade feminino”, defendeu.

Obviamente que este paradigma surge das desigualdades de género: durante muito tempo, as mulheres foram socialmente estigmatizadas pela sexualidade romântica, focada no ideal do romantismo e da paixão. O que não se compreende é se esse paradigma é perpetuado pelos homens, focados nos seus interesses, ou pelas próprias mulheres, que se mantêm “em silêncio” com a pressão dos “bons costumes”.

A fugacidade do tempo que vivemos não abre espaço para o “teatro do sexo cortês” e talvez esse facto justifique o crescimento da indústria pornográfica, onde atualmente se procuram receitas imediatas, rápidas e eficazes para lidar com a sexualidade. Esta realidade focada no universo masculino tem vindo a ser transformada através da luta feminista, da quebra de tabus e das barreiras do preconceito, fazendo surgir cada vez mais produtos feitos e pensados para mulheres. Mas será mesmo que as mulheres precisam de pornografia específica?

 

O QUE É QUE AS MULHERES PROCURAM NO UNIVERSO PORNOGRÁFICO?

Há alguns anos era uma “sensação”. A explosão dos vídeos pornográficos voltados para mulheres pareciam poder mudar as normas da indústria. Nos vários sites de pornografia especializados no sexo para mulheres (e que são cada vez em maior número), o foco é maioritariamente nos conteúdos soft porn. As cenas sexuais tentam ser mais naturais e o hardcore acaba por ser embelezado por filtros brancos ou rosados que dão uma atmosfera romântica e mais delicada.

Contudo, segundo um dos sites de pornografia mais conhecidos no mundo, Pornhub, os dois primeiros lugares das pesquisas femininas vão para filmes lésbicos e gay (male). Talvez os resultados acabem por revelar uma inclinação feminina para a fantasia “impossível”, (evidente nos casos dos conteúdos gay male), ou seja, o seu interesse por coisas que são o contrário da pornografia, a suposição ou não concretização.

De acordo com um estudo realizado pela revista americana Marie Claire, apelidado The Porn Project, que inquiriu mais de três mil mulheres sobre a relação que estas têm com a pornografia, mostra que uma em cada três mulheres vê pornografia uma vez por semana, no mínimo. Segundo o estudo, a maioria assiste a estes filmes sozinha, o que revela um interesse em desenvolver e/ou satisfazer a sua própria vontade. Apenas uma ínfima percentagem confessou assistir a estes conteúdos para agradar ao parceiro/a. A pornografia passou a ser assim um “afrodisíaco” importante para as mulheres já que cerca de 38% da população feminina, consulta com regularidade sites pornográficos.

 

A EXPLOSÃO DOS FILMES “PARA ADULTOS” “Desde o início dos tempos, o desejo sexual encontrou uma forma ideal de estimulação nas imagens”, escreveu Arturo Caballero, no livro onde o autor analisa a atividade artística da pós-modernidade – Arte e perversão, de 2021.

Apesar da chegada do Cristianismo, esse diálogo entre arte e sexo foi mantido com, a partir daí em silêncio, com discursos camuflados às escondidas antes da “normalização generalizada” de tudo o que é sexual. Até que os séculos foram passando e a indústria cinematográfica encontrou um lugar “perfeito” de negócio excessivo – a pornografia. Aqui começou-se a transferir o privado para o público e o politicamente incorreto começou a gerar debate.

Nessa altura a objetificação das mulheres no cinema adulto era um problema. E hoje? Não continua a ser? A chamada “idade de ouro do porno”, eclodiu nos anos setenta com o filme Deep Throat, em português Garganta Funda, escrito e dirigido por Gerard Damiano, estrelado por Linda Lovelace e lançado em 1972. A produção foi uma das pioneiras classificadas como pornográficas mas com uma história, um explorar das personagens e altos valores de produção. Rapidamente se tornou num filme clássico de culto, não apenas por ter alterado a cultura sexual dos EUA, como por ter influenciado a política do país em relação à liberdade sexual.

O mesmo cinema convencional deu origem, como lembra Caballero na sua obra, ao O Último Tango em Paris (1972), onde o diretor Bernardo Bertolucci admitiu não ter avisado a atriz Maria Schneider sobre o uso de manteiga nas suas partes íntimas para aumentar o seu desconforto na cena.

 

A PORNOGRAFIA FEMINISTA

Conceber a origem da pornografia feminista na produção de Erika Lust, diretora de cinema adulto independente, roteirista e produtora, é um erro. Esta abordagem que se distancia do mainstream era anteriormente um discurso recorrente de Tristan Taormino, autora feminista americana, e Annie Sprinkle, sexóloga americana certificada e defensora do trabalho sexual, que deram origem a uma série de diferentes representações da sexualidade. A cena pós-porno dos anos 90 e início dos anos 2000 enfatizou o prazer feminino e a necessidade de gerar produtos audiovisuais distantes do consumidor tradicional.

Por enquanto, esse tipo de pornografia pode ser encontrado em muitos sites, mas não é gratuito, pois ainda é considerado de autor. Como explica a educadora sexual e colunista Tristan Taormino: “Na pornografia feminista, as atrizes recebem uma remuneração razoável e são tratadas com estima; segurança e sensibilidade”. Trata-se de ampliar as noções de desejo, beleza, satisfação e poder através de uma representação não convencional do modo de produção estético e cinematográfico. O objetivo é empoderar os performers e o público. Noutras palavras, esses filmes não buscam apenas despertar o seu desejo sexual, mas também levam em consideração a qualidade da câmara, a iluminação, o direcionamento e principalmente o respeito aos envolvidos.

Contudo, impõe-se a questão: É possível introduzir um discurso transgressor num setor marcado pela vexatória ficção do sexo? Ou seja, é possível ser feminista e, ao mesmo tempo, ser a favor da construção de novos diálogos na pornografia? O problema de combinar dois conceitos tão díspares na mesma frase é que muitas pessoas tendem a prejulgar o que é: a pornografia feminina não é um “género para lésbicas”, nem é constituído por um sexo mais “leve” ou “ingénuo”. No seu conceito, este tipo de produção é definida apenas como sendo um produto audiovisual no qual homens e mulheres são apresentados igualmente, deixando as mulheres de desempenhar o papel de complementar ao desejo masculino.

 

O PROBLEMA DOS RECURSOS FINANCEIROS

Então, o que diferencia Erika Lust, das restantes ativistas? A sua visão para o negócios e recursos financeiros. A indústria pornográfica gera mais de 8.000 milhões de euros por ano em todo o mundo (dados de 2019). E Lust afirma que é possível ganhar a vida produzindo este tipo de pornografia, mas que as pessoas “têm de pagar para lhe dar valor”. “Neste momento, os filmes são feitos com um orçamento muito baixo, por empresas que precisam de produzir o maior número possível de filmes para competir e ter lucro”, elucidou a também roteirista. Embora Lust afirme que o seu negócio cresceu, o consumidor médio “não está habituado a pagar por conteúdos pornográficos”.

Olympe de G é uma atriz feminista francesa e diretora de filmes pornográficos que afirma ter “desistido” e procurado outro caminho. A alternativa foi a criação de um podcast erótico – VOXXX – que começou com dois parceiros: não é pago e tem mais de um milhão de visualizações. O perfil do consumidor maioritário é de mulheres entre os 30 e 35 anos de Paris e arredores. “Muitas mulheres escrevem-me, dizendo que graças a este podcast se tornaram sexualmente emancipadas”, confessou ao El Confidencial. Olympe concordou com a premissa de que é possível viver deste tipo de pornografia. Contudo, esse não foi o seu caso. “Quando tens uma empresa pequena, é extremamente difícil existir neste mundo”, adiantou.

Por outro lado, a sexóloga e assistente social especializada em pornografia Marta Pérez Lindo enfatiza ao El Confidencial que “a ideia da pornografia feminista não reside apenas em criar conteúdos que correspondam ao desejo feminino, mas sim que abranjam todo o contexto que as rodeia, como o respeito às condições de trabalho das mulheres”, que são muitas vezes mal tratadas neste tipo de universo.

O problema é que as plataformas bancárias também não jogam a seu favor. “A VOXXX tem pouco conteúdo publicitário porque as marcas não querem ser associadas a conteúdo pornográfico e o mesmo vale para as formas de pagamento”, explica Olympe.

Em agosto passado, a plataforma OnlyFans anunciou o fim do conteúdo explícito devido ao desinteresse das plataformas bancárias em fazer parte desse conceito. “Para a OnlyFans isso é um atraso. Agora voltaram a dizer que não nos vão censurar, mas eu duvido! Existem associações ultra católicas que lutam contra a pornografia na Internet e promovem a censura” revelou a atriz e performer Anneke Necro. “Se o PayPal perceber que tu te dedicas a isso, não te permite nem comprar comida para o teu gato”, lamentou.

Por outro lado, há também aqueles que confirmam que a origem de qualquer indústria relacionada à pornografia é baseada no patriarcado inerente ao produto. Independentemente do debate ético, Erika Lust sente-se confiante no futuro da pornografia feminista acreditando que haverá uma mudança no consumidor: “Espero que as pessoas se tornem mais conscientes sobre o seu consumo de pornografia e pensem mais nas consequências de não pagar por um produto”, ressaltou ao jornal espanhol.

Olympe revelou ainda que trabalha de graça há anos e que recentemente iniciou as suas aulas em enfermagem: “Gostava de me dedicar apenas a esta parte da minha vida, mas infelizmente preciso de dinheiro para comer”, contou.

Por sua vez, Necro acredita que “os trabalhadores se vão cansar e terão de ser substituídos por pessoas com mais energia porque “é insustentável e temos que pagar contas”. A atriz insiste ainda que “a pornografia é uma forma legítima de explorar e experimentar o erotismo da vida”.

Relativamente aos consumidores, Lust explica que os seus “produtos” são comprados por 60% dos homens e 40% das mulheres entre 25 e 45 anos. Segundo Anneke Necro, embora anteriormente o consumidor fosse um homem entre 20 e 40 anos, a pandemia causou um ‘boom’ de consumidoras na sua conta OnlyFans.

 

PORNOGRAFIA: SIM OU NÃO?

A disputa entre as visões da ética do cinema adulto continua e parece um caminho longo, pois são muitas as outras mulheres que argumentam que o benefício económico da pornografia está inerentemente ligado ao patriarcado e que a ideia de ‘pornografia feminista’ é falsa porque “não deixa de fazer parte de uma indústria masculina”. Para esse grupo, enquanto houver oferta e demanda dentro da pornografia, a figura da mulher será prejudicada, sendo necessário destruir a pornografia para preservar os direitos das mulheres.

Apesar de concordar afirmando que na sexualidade, como em todas as outras áreas, há preferências, gostos e fantasias muito distintos, Catarina Lucas explica que “o problema é que a pornografia sempre foi vista como algo errado, pecaminoso e até como uma infidelidade”. Além disso, a especialista conta que “o seu consumo sempre foi gerando insegurança ao outro/a que assume que ‘o que tem em casa não chega’. A visualização de pornografia está incluída até em programas de terapia sexual. O importante é ter alguns cuidados no tipo de pornografia que se consome, pois algumas fronteiras são ténues”, revela.

Pérez Lindo sublinha a importância da educação sexual: “É absolutamente essencial. Sem ela, a pornografia não faz sentido. É preciso entender que o que a constitui são fantasias. O mau não é a pornografia, mas sim a falta de educação”. Porém, a psicóloga social especializada no atendimento à mulher, Nerea Sanchís, discorda, afirmando ao El Confidencial que “com uma boa educação afetivo sexual, a pornografia não seria necessária”.

A verdade é que só o tempo é que legitimará este conteúdo que, segundo Lust, “não pretende ser concebido como uma ‘pornografia alternativa’, mas sim “tornar-se a norma”.