Uma das leis mais aberrantes surgidas durante o período da pandemia foi a Lei 62-A/2020, de 27 de Outubro, relativa à imposição transitória do uso da máscara em espaços públicos. O seu artigo 1º determinava a título excepcional, a obrigatoriedade do uso de máscara para o acesso, circulação e permanência nos espaços e vias públicas, parecendo impor que quem estivesse, por exemplo, a passear no campo, sem ninguém a quilómetros de distância, tivesse que permanecer mascarado durante esse passeio.
No entanto, essa norma era restringida no artigo 3º, nº1, em que, ao mesmo tempo que impunha o uso de máscara “por pessoas com idade a partir dos 10 anos (!) para o acesso, circulação ou permanência nos espaços e vias públicas”, esclarecia que essa obrigação vigorava “sempre que o distanciamento físico recomendado pelas autoridades de saúde se mostre impraticável”. Ora, sabendo-se que as autoridades de saúde recomendaram o distanciamento de dois metros para evitar contágios, é difícil conceber que na via pública, mesmo nas grandes cidades, seja impraticável às pessoas manter uma distância de dois metros entre si, salvo no caso de multidões e ajuntamentos, que não são assim tão frequentes quanto isso. Não se vê por isso que necessidade havia de instituir essa obrigação, já que a mesma só se aplicaria em situações raras, sendo especialmente penoso para crianças de 10 anos serem obrigadas a usar máscaras ao ar livre.
A prática, no entanto, levou a que a utilização da máscara na rua fosse vista como regra, atento o facto de o art. 3º, nº2 apenas a dispensar quando fosse exibido atestado ou declaração médica, quando o uso da máscara seja incompatível com a natureza das actividades que as pessoas se encontrem a realizar, e em relação a pessoas que integrem o mesmo agregado familiar, quando não se encontrem na proximidade de terceiros. Para além disso, a lei determinou a aplicação de uma coima de 100 a 500 euros pela infracção de não usar máscara na rua (artigo 6º), mandando fiscalizar o seu cumprimento pelas autoridades policiais (artigo 5º).
Inicialmente, essa lei era para vigorar apenas durante setenta dias, terminando assim a sua vigência no final do ano (artigo 9º). No entanto, como não poderia deixar de ser, a sua vigência foi prorrogada por mais noventa dias pela Lei 75-D/2020, de 31 de Dezembro, por mais setenta dias pela Lei 13-A/2021, de 13 de Abril, e novamente por noventa dias pela Lei 36-A/2021, de 14 de Junho. Temos assim que uma lei que foi estabelecida como transitória e excepcional, já vigora há quase um ano, estabelecendo uma obrigação penosa para os cidadãos, cuja utilidade está longe de estar demonstrada, salvo no que se refere à arrecadação de coimas pelas autoridades policiais.
Efectivamente, apesar de a lei referir no seu artigo 5º que caberia às forças de segurança e às polícias municipais “prioritariamente, uma função de sensibilização e pedagogia para a importância da utilização de máscara em espaços e vias públicas quando não seja possível manter a distância social”, a verdade é que o que as mesmas fizeram foi essencialmente aplicar coimas. No passado dia 19 de Agosto o Expresso publicou a informação de que, desde o início do ano, a PSP e a GNR autuaram 4154 pessoas que não usavam máscara nas ruas e espaços públicos, sendo assim aplicadas vinte coimas por dia pelo não uso de máscara na rua. Trata-se de uma situação claramente excessiva, típica de um Estado Policial e não do Estado de Direito Democrático previsto na nossa Constituição.
É por isso mais do que tempo de a vigência desta lei absurda terminar, estando prevista a sua caducidade já no próximo dia 12 de Setembro, que se espera que venha efectivamente a ocorrer. Há alguns deputados, no entanto, que pretendem fazer depender a cessação da vigência desta lei de opiniões emitidas pelas autoridades da saúde, como se não competisse ao Parlamento o poder legislativo e também a responsabilidade pelas leis que aprovou. Os efeitos perniciosos da lei e as suas consequências lesivas para milhares de cidadãos estão à vista de todos. A cessação imediata da sua vigência é por isso uma questão de elementar justiça.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990