Simone Duarte. “Os americanos estiveram no Afeganistão 20 anos e podiam ter feito tantas coisas”

Simone Duarte. “Os americanos estiveram no Afeganistão 20 anos e podiam ter feito tantas coisas”


Em “O Vento Mudou de Direção”, a jornalista brasileira Simone Duarte narra a forma como o 11 de Setembro mudou a vida de sete pessoas.


É formada em Jornalismo e Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entrou no curso com a ideia de que queria ser jornalista ou nem sempre foi esse o seu sonho?

Até aos 13 anos, quis ser professora. A minha avó teve um derrame, ficou com um problema de paralisia, e eu visitava-a todos os sábados. Chegava na casa dela, sentava-me e dizia que queria ensinar. Até que, num belo dia, disse-lhe que queria ser correspondente internacional. Em minha casa, tínhamos o hábito de ler os jornais, é uma memória muito forte. Cada um lia uma parte. Sempre tive essa coisa de que queria falar do mundo para o Brasil e do Brasil para o mundo de uma forma que não fosse estereotipada. Não só do Carnaval e do futebol. E aí, por acaso, no meu último ano de curso, fiz estágio na rádio da Organização das Nações Unidas (ONU) no Brasil, justamente para desmistificar várias questões, e abriu uma vaga para a TV Globo. Sempre imaginei que fosse escrever, mas eu passei nesse curso, em que a gente ficava dois meses na Globo. Reproduzíamos uma redação e alguns eram contratados por mais dez meses. E eu fui. Fazia coisas mais básicas primeiro, mas, um dia, faltou a editora de Internacional e ninguém falava Inglês.

Só a Simone?

Isso. Antes, já tinha trabalhado no Jornal Nacional com um dos editores-executivos. Aprendi muito com ele. Aos 25 ou 26 anos, já era editora de Internacional. Era bem nova. E havia o desafio de falar com correspondentes muito mais velhos do que eu. Aí fiz um curso na CNN. Também consegui a Bolsa Eisenhower, que foi muito importante para mim, era de liderança, e tinha 28 anos. Nessa época, fui a bolseira mais nova. Estava no piquete do jornal e trabalhava em São Paulo quando, meia hora antes, o Yitzhak Rabin foi assassinado e tivemos de mudar tudo. Um dos diretores viu o meu trabalho e aí voltei para o Rio de Janeiro. Em 1997, tive uma proposta para sair da Globo. E aí fui conversar com os meus diretores e disse: “vou ficar, mas quero que me prometam que a primeira vaga que tiverem num escritório internacional, será minha”. Sempre imaginei que ficaria em Londres, mas surgiu uma vaga para Nova Iorque e fui para lá em janeiro de 1998. Fui chefe de redação. E conheci o Sérgio Vieira de Mello.

Conheceu-o em Nova Iorque quando ele era subsecretário de Assuntos Humanitários.

Exato. À época, ninguém sabia quem ele era e pedi-lhe uma entrevista. Era para ser uma entrevista de vida, normal, e ele falou: “eu vou viajar para África. Quando voltar, falamos”. Foi nomeado para Timor-Leste. Ele só falou com a BBC para além de mim. Ele foi para lá e eu também, mas a minha ida não teve nada a ver com ele. Nesse tempo, a ONU precisava de gente que falasse português, apesar de só os mais velhos, cerca de 10%, falarem a língua. E eu fui. Era a minha única chance de ver um país nascer do zero. 

Trabalhou com ele durante cinco meses. 

Acho que foram seis meses e com a minha vaga na Globo garantida quando regressasse. Por exemplo, logo no início, eu ia com o Sérgio e jornalistas de helicóptero visitar determinados sítios e conversávamos sobre o Brasil. No final, fiz uma grande entrevista. Antes de sair, fiz uma série de reportagens para a Globo News que ganhou uma menção honrosa da Associação de Correspondentes da ONU. Quando voltei, a minha chefe disse que ia embora, já tinha três filhos, e sugeriu que ficasse com o cargo dela.

E queria?

Acho que era a coisa que menos queria naquela altura, mas sempre fui muito séria e assertiva e isso ajudou-me. Em setembro de 2000, estava em Nova Iorque, e o 11 de Setembro aconteceu um ano depois. Em 2003, o Sérgio morreu e aquilo mexeu comigo. Apesar de não ser amiga dele, aquele período que passei na ONU e aquilo que ele representava, era justamente aquilo em que eu acreditava. Então, a morte dele balançou-me muito. 

Vieira de Mello morreu durante o ataque suicida ao Hotel Canal, em 2003. Como é que se sentiu quando percebeu que ele esteve três horas debaixo dos escombros?

Quando liguei a televisão, vi que ele estava lá. Não era só o Sérgio, era o multilateralismo e a essência da ONU. 
Um ano depois, lançou o documentário “A Caminho de Bagdá”, premiado pela Associação de Correspondentes da ONU.
Fiz o filme e foi uma loucura porque eu não era ninguém. Paguei parte do trabalho. 

E foi a primeira jornalista mulher brasileira a entrar na Coreia do Norte.

Exatamente, porque antes já o Luciano Carneiro, fotógrafo, tinha entrado lá na década de 50. Foi uma aventura, fomos a oito países. Já tinha feito o mestrado. 

Em Relações Internacionais, na New School, onde também foi professora.

Sim, usava documentários para falar de relações internacionais aos alunos. Havia um programa de verão e podíamos ir para a África do Sul ou para a Argentina e o meu orientador sugeriu que fosse para o segundo e fizesse a tese em vídeo. Comecei o mestrado na semana anterior ao 11 de Setembro. Nunca mais apareci e enviei-lhe uma mensagem e disse “Talvez não possa fazer este semestre, estou presa” e ele respondeu “A universidade é a tua casa”. Quando conseguia ir, chegava atrasada, até quando faltavam apenas 15 minutos para a aula acabar. Na última, cheguei cedo e ele perguntou se tinha acontecido alguma coisa. As minhas notas não foram geniais. Na Argentina, vivi na casa de uma menina cujos pais estavam desaparecidos. A minha tese foi o “Arquivo de Identidade”, que era justamente recolher a identidade dessas pessoas e mostrar para esses meninos que saberiam que eram filhos de outras pessoas e não daquelas com quem estavam. Foi exibido no Tribeca Film Festival, em Nova Iorque, em 2005. Curiosamente, o Brasil foi o país que demorou mais tempo a exibir o documentário. Cobri o Katrina para uma televisão alemã, dava aulas e fazia trabalhos como freelancer. Achava que Nova Iorque era um lugar que estimulava muito as pessoas: havia informação sobre tudo. Mas, ao mesmo tempo, já não aguentava mais. Tinha o passaporte português porque o meu avô saiu daqui há imensos anos e tinha amigos aqui por causa de Timor. E sempre quis vir para a Europa, mas não para um país anglo-saxónico. Espanha, Portugal ou talvez França. O meu francês estava enferrujado, fui a uma ou duas entrevistas em Espanha e depois tentei arranjar um emprego em Portugal. Era maio de 2008 e fiz algumas reportagens para a revista Sábado e para o Público. Aí cheguei num headhunter e vim para Portugal ser gerente de comunicação. Oito meses depois, o Público chamou-me.

Dirigiu a chamada operação digital do jornal.

Sim, fui diretora-executiva do online quando fizemos a transformação. É um jornal muito diferente daquilo a que estava acostumada. Não queria voltar para uma redação, mas voltei e foi uma experiência incrível. Perguntámos a toda a gente, de forma muito democrática, aquilo que estava errado com o site. Chamámos até gente mais jovem para dar a opinião. Foi um trabalho muito intenso. Fomos ao Guardian, ao New York Times, à Columbia University… Fizemos imenso trabalho de campo. E conseguimos fazer um site muito importante, naquele tempo, em Portugal. 

E planeou “abandonar” o jornalismo oficialmente?

A primeira vez que vim a Portugal, fui falar com algumas pessoas. Lembro-me de um senhor, de uma grande agência de comunicação, que olhou para o meu currículo e disse “É um problema”. E, na realidade, não sou o tipo de pessoa que  faz uma coisa só na vida, faço várias. Quando estava na Globo, dizia que só estive muito tempo lá porque a cada dois ou três anos mudava de função. Sou jornalista: o jornalismo não é escrever para algum lugar, é a sua cabeça, ficar observando. Acho que tenho uma escrita visual, talvez por causa da televisão, e nota-se isso no livro. Gosto de transportar os leitores para os cenários.

Durante duas horas, narrou em direto, por telefone, os acontecimentos do dia 11 de setembro de 2001 ao público brasileiro. A experiência marcou-a tanto que só ouviu o relato volvidos 18 anos.

Quando se fala no 11 de Setembro, pergunta-se “Onde é que estavas?”. E se um brasileiro me perguntar isso, eu respondo “Você não me conhece, mas já ouviu a minha voz”. Algumas pessoas lembram-se e outras não. Fui contando algumas coisas que me chocaram e sugeriram que escrevesse sobre os acontecimentos. Aquilo que eu vi no 11 de Setembro era o meu trabalho como jornalista, toda a gente já fez isso, eu queria saber aquilo que tinha para escrever e que fosse diferente. 

Marcos Uchôa escreveu que “teve a sensibilidade de uma neurocirurgiã jornalística para extrair delicadamente memórias que ainda são traumas, lembranças em carne viva, de pessoas ao mesmo tempo extraordinárias e normais”.

Ele trabalhou como correspondente internacional. Quando era chefe do escritório de Nova Iorque, ele era do de Londres. Há uma coisa curiosa: ele estava a cobrir o US Open e eu disse “Marcos, fica aí mais uns dias” e ele disse “Estou com saudades da minha família”. Ele foi-se embora e aconteceu o 11 de Setembro. Ele esteve em todas as cidades que mencionei no livro e diz que nunca conseguiu falar com as pessoas como eu falei. 

Tem a ver com a empatia que se cria com as fontes.

Mas, mais do que isso, tem a ver com a natureza do jornalismo televisivo. Você vai, captura aquele momento e vai embora. Mas eu quis ficar mais tempo com as pessoas sem câmaras. Muitas pessoas diziam-me, como tenho um background de televisão, que tinha de filmar. Eu sabia que não faria isso. Sei que quando se liga a câmara, tudo muda. Aquilo que eu achava que devia criar era quase como se quisesse ser uma antropóloga. No outro dia, dei uma entrevista a uma jornalista brasileira e disse que o meu livro não é de investigação. E ela mandou-me uma mensagem a dizer que discordava disso porque acha que fui a fundo nas histórias das pessoas e identifiquei personagens que representam milhares de pessoas. Então, acaba por ser um jornalismo apurativo que contribui para o despertar de consciências. Quando fiz o livro, não queria que fosse de jornalismo no sentido de entrevistar as pessoas e transcrever as entrevistas. Não é um género menor, mas não é a forma como queria narrar as histórias. Sempre ouvi a frase “Ninguém sabe aquilo que acontece lá fora” e esse tipo de mentalidade é que leva a que tudo seja complicado e as pessoas sejam preconceituosas. Há maneiras de contar uma história. Na realidade, quis mostrar a humanidade das pessoas: não é um livro de política internacional porque não fiz um estudo académico ou uma análise desse tipo, mas obviamente que há esse contexto. 

Aproximou-se do jornalismo literário, aprofundando a vertente psicológica das personagens?

Dois jornalistas com os quais eu falei explicaram-me que se lembraram da Svetlana Alexievich. E aí pensei: “Realmente, há pontos em comum”, mas queria resolver o quebra-cabeça acerca de como incluiria sete personagens no livro. Algumas pessoas acharam que seria impossível, mas não queria abrir mão de nenhuma e tive de arranjar maneira de todos caberem sem ficar algo confuso. Tem gente que me diz que parece que é romance, ficção. Para mim é muito importante ter o final em que todos falam na primeira pessoa.

“É o fumo que vem do World Trade Center. É que o vento mudou de direção”, disseram-lhe quando ligou para a portaria do seu prédio a perguntar se tinha havido alguma fuga de gás. Esta frase marcou-a desde o primeiro momento ou foi refletindo acerca da mesma ao longo dos anos e, por isso, recorreu a ela para dar um título ao livro?

Uma vez estava num bar, em São Paulo, e uma editora da Companhia das Letras disse-me que “Você não me conhece mas já ouviu a minha voz” era um bom título para um livro. Escrevi isso e pouco mais. A única coisa que ficou redigida, logo depois de ver o 11 de Setembro, foi a minha volta para casa. Queria os eventuais erros de informação e a confusão, na introdução, porque espelham o momento. Comecei a pensar que queria dar o conhecer o outro lado: pensava na Primavera Árabe, na Síria, no Afeganistão, no Paquistão, no Iraque, mas como é que ia fazer isto? E afunilei: no final de 2018, decidi que ia escrever e já tinha ouvido um pouco dos meus diretos. E, em 2019, procurei as personagens. Recebi um convite para ir ao Paquistão e viajei pelo país todo. Fiz um curso de Liderança e Segurança e tive contacto com a elite, com todas as cabeças. 

À exceção de Ahmer, o rapaz treinado para ser um bombista suicida, todos pertencem à classe média ou média alta. Escolheu estas personagens por terem vidas semelhantes às das vítimas do 11 de Setembro, como explica na introdução, ou deu-se uma feliz coincidência, digamos assim?

Aproveitei a viagem e tentei falar com o último jornalista que entrevistou o Osama bin Laden. Não sabia que ele seria uma personagem no livro, queria conversar com ele mais pelo contexto. As personagens tinham de ser pessoas de classe média que podiam ter estado nas Torres Gémeas, não um cara miserável que estivesse num campo de refugiados. Alguém que podia ser nosso irmão, nosso amigo, e que tem elementos que podemos identificar. Precisava de pessoas mais reais, mas que não fossem conhecidas do público. O meu encontro com o Baker Atyani aconteceu de modo muito curioso: ia para as aulas do curso, estava atrasada, em março de 2019, e havia outro aluno que estava igualmente atrasado. Estávamos num autocarro e, à nossa frente, havia uma carrinha com militares e armas. E eu perguntei “Isto é mesmo necessário?” e ele respondeu “Houve uma época aqui que era barra pesada, corríamos risco”. E ele disse que é jornalista e eu disse que também sou. E ele explicou-me que foi contactado por um representante da Al-Qaeda, que lhe ofereceu a entrevista com Osama, que já era um dos homens mais procurados do mundo. O Baker aceitou a proposta e foi levado até ao esconderijo no Afeganistão, onde conversou com Bin Laden e com o número 2 da organização, Ayman Al-Zawahiri. E, depois, foi este quem anunciou que a Al-Qaeda faria em breves ataques em território americano, apenas dois meses antes dos ataques. Disse-me isto com um tom de voz suave, calmo, sem qualquer estrelismo. Continuámos a conversar e eu disse “Vou entrevistar-te” e, quando ele desceu do autocarro, olhou para mim e disse “Comemoro o meu aniversário duas vezes por ano: no dia em que nasci, em outubro, e no dia em que fugi, em dezembro”.

Foi sequestrado?

Durante 18 meses, pelo grupo Abu Sayyaf que decapita as pessoas. Isso só acontece porque ele entrevistou o Osama, virou um especialista em grupos islâmicos e foi para as Filipinas dez anos depois, foi enganado e sequestrado. Ele não é só um jornalista que entrevistou o Osama, mas sim um cara que teve a vida virada do avesso por causa do 11 de setembro. Quando o porteiro me disse “O vento mudou de direção”, eu interpretei como “Tenho de encontrar pessoas cujas vidas tenham mudado de direção”. Ele não falou com nenhuma intenção secundária, eu é que refleti. Na primeira versão do livro, eu estava mais presente como personagem e não só como narradora, então, quis perceber como podia intervir menos diretamente. Posso ter sido a voz naquele dia, mas o Baker também é porque Osama usou-o para transmitir aquilo que quis. Nós vimos o 11 de Setembro acontecer na nossa frente, mas queria conhecer várias vozes que ainda não tinham sido ouvidas.  

Voltou a cruzar-se com a editora que encontrou no bar?

Depois de mostrar excertos do manuscrito a algumas pessoas, mas sem ter um acompanhamento editorial, uma agente literária brasileira sugeriu que mostrasse o livro a uma editora nova, a Fósforo, e era aquela com a qual me tinha cruzado, a Rita Mattar. O livro ficou lá, demorou um tempo, ela não lia. No final, leu e disse “É isso”. Foi uma coincidência incrível. 

E houve mais situações deste género?

Pensando bem, acho que não existem histórias nem coincidências, mas sim o fruto do trabalho que se faz. 
Ao longo de dois anos e meio, acompanhou, entrevistou e reconstituiu as vidas de sete pessoas totalmente distintas.

Como é que se deu este processo?

Já me tinha sentido assoberbada quando fiz o filme do Sérgio porque foi num período de tempo muito menor, já tinha vivido essa intensidade. A maior parte do conteúdo que consegui foi nas entrevistas presenciais. Fui para a Áustria sem saber quem seriam as minhas personagens: o Rafi, por exemplo, era o meu guia, a pessoa que me ajudaria a chegar a alguém. Cheguei a ele através de um contacto meu austríaco que tinha trabalhado com o Rafi na integração de imigrantes. Quando falámos por telefone, pela primeira vez, ele contou-me onde estava no 11 de Setembro e descobri que ele atravessou oito países para fugir dos Talibãs. E, em certo momento, ele disse-me que o presidente George W. Bush e o secretário de Defesa Donald Rumsfeld deviam estar mortos porque tinham destruído o país dele, o Afeganistão. Estávamos em Viena, no meio da magia das iluminações do Natal, e ele a contar-me estas coisas. Quando veio a covid-19, falei com ele por chamada. 

Como é que recolheu o resto da informação?

Quando percebi que ia entrevistar o espião chefe dos serviços secretos paquistaneses, algo que não era nada fácil, disse que voltaria em dezembro, por exemplo, para conversarmos uma segunda vez. Por outro lado, no curso que tirei, disse à coordenadora do projeto que queria que uma das personagens do meu livro fosse um jovem. Ela disse que era um processo muito delicado porque estávamos a falar de pessoas que tinham sido treinadas para ser bombistas suicidas. Durante nove meses, enviava emails e falávamos, até que ela cedeu. Voltei ao país em dezembro, falei com o general, com a coordenadora, fui conhecer o Centro de Monitorização, e a maior parte do trabalho de reintegração acontece ali. O Ahmer resulta de três entrevistas que fiz a três jovens distintos que hoje têm 23 anos: só um deles ia explodir-se na mesquita. A personagem baseia-se a quase cem por cento num deles, mas misturei elementos dos outros por uma razão de segurança porque me comprometi a não personalizar demasiado. São histórias com uma base igual. Com eles não voltei a ter contacto: estava a trazê-los a uma realidade que queriam esquecer e foi uma oportunidade única. Não sabia se estava a ser incómoda, senti-me quase como uma antropóloga. Na conversa com o terceiro, percebi que ele estava muito nervoso. Foram os extremos da história, mas também foi difícil escrever sobre o general porque ele representa o país. 

Esteve presencialmente com todas as personagens?

Ia encontrar-me com a Gena no Líbano, em Beirute, em dezembro de 2019, mas estava a haver os protestos e ela não tinha como ir. Então, adiámos para março de 2020, mas apareceu o coronavírus. A gente nunca se encontrou, mas acho que até falei mais com ela do que com os restantes. Fui construindo uma relação com ela. Brincava com Barbie, dançava tango… Descobri pormenores completamente inesperados. A maior parte das pessoas perguntava-me qual era o objetivo do livro. À exceção do Ahmer e do general, todos perguntaram se, no caso de colaborarem comigo, poderiam voltar aos EUA. Eu só queria acompanhar as vidas deles. Houve dois afegãos, um que estava em França e outro em Portugal, não quiseram falar comigo porque tiveram medo. Penso que todas as personagens que encontrei representam as situações que as pessoas enfrentaram e ainda têm de enfrentar. 

Identificou-se mais com o Baker por terem a mesma profissão?

Penso que me identifiquei com todos em determinados pontos. É óbvio que o general – há frases dele que acho muito fortes – e os meninos são aqueles com quem tive menos contacto, mas as mulheres, a Faleeha – a ligação maravilhosa a Gabriel García Márquez –, a Gawhar – há uma parte muito forte, quando ela fala do Afeganistão, diz que se arrepende de ter saído do país porque acha que os afegãos só conseguem lutar contra as políticas reacionárias dos talibãs se permanecerem no país – e a Gena são mais comunicativas. A primeira entrevista que fiz a um dos meninos do Centro de Reabilitação Sabawoon foi numa varanda e estava muito frio e estivemos sempre acompanhados por psicólogos. Dois deles pediram para tirarmos uma fotografia no final. O primeiro disse-me “Já pensou que, há dez anos, jamais entraria no quarto de uma mulher? Nem para a cara de uma olhava”. E eu pensei “Olha a inteligência do rapaz e aquilo que ele passou para chegar aqui”. Tem coisas que eles não dizem porque não querem admitir aquilo que fizeram. Contam como se constroem bombas, os treinos que receberam, mas muitos detalhes ocultaram.

Os psicólogos fizeram alguma intervenção?

Uma vez, disse a um que não sabia se estava a fazer as coisas bem e ele disse “Ontem, tiveste um encontro com fulano, e ele não lhe disse que foi sequestrado”. Depois, fiz um briefing com a coordenadora e falámos imenso sobre aquilo que eles tinham vergonha de contar.

Qual será o impacto da retirada das forças norte-americanas do Afeganistão?

É óbvio que é uma derrota para os EUA e é o resultado de uma série de erros que cometeram ao longo dos anos. Existiam cidades onde as tropas norte-americanas estavam durante o dia e os talibãs durante a noite. Eles queriam expulsar forças de ocupação e não era difícil convencer líderes tribais de que estavam numa missão. A corrupção, a frustração por aquilo que não aconteceu, os atentados suicidas… Houve muitos problemas. Os afegãos atribuem a maior parte dos problemas à ocupação americana. Obviamente que a vitória dos Talibãs é a derrota para os governos moderados. Eles têm uma visão distorcida do que é o Islão e quando governaram o país entre 1996 e 2001 cometeram várias violações de diretos humanos, principalmente, em relação às mulheres. Mas mudaram ao longo destes 20 anos, não ideologicamente, mas sabem que precisam da comunidade internacional para governarem o país. Se será suficiente para governarem e respeitarem direitos das mulheres entre outros ainda não sabemos. Teremos que esperar um pouco. 

Nos primeiros dias após a retirada das tropas, as mulheres não podiam entrar nas universidades. Isto não mostra que a mentalidade dos talibãs ainda é retrógrada?

Mas é aí que entra a pressão da comunidade internacional. Eles ganharam, não tem como. O que é que se vai fazer agora? Formar outro grupo para continuar a guerra? Vai acontecer uma mudança geopolítica na região com a China entrando – não tem interesse que os Talibãs sejam mais agressivos porque precisam de um lugar estável para desenvolver o comércio – e vai controlar o comércio. Os americanos são hipócritas quando dizem que os chineses só querem o minério… E o que é que eles querem? Os EUA não invadiram o Afeganistão para ajudar as mulheres afegãs: parece até que estavam numa missão feminista. Temos de ser menos ingénuos. O Afeganistão teve quase 30 governantes e mais de 20 foram assassinados ou morreram em golpes de Estado. As tribos juntam-se. Será que os Talibãs vão conseguir governar o país? Ainda há muitas interrogações e o medo e o frenesim têm de baixar um pouco. Os americanos não vão tirar 39 milhões de afegãos de lá, mas estiveram no território 20 anos e podiam ter feito tantas coisas…