Feira do Livro do Porto. Entre os livros, uma flor com memória de ossos

Feira do Livro do Porto. Entre os livros, uma flor com memória de ossos


Até 12 de setembro, nos jardins do Palácio de Cristal, no Porto, encena-se uma discreta fórmula de resistência, em que os livros, em vez de mais barulho, nos trazem uma lição de escuta, uma cidade que se desfaz em lugares repousados e de largos ares.


Por estes dias, passear pela Feira do Livro do Porto é um modo de ferir-se entre os jardins do Palácio de Cristal, e mais do que os pavilhões, mais do que os livros e “o gosto velho das gavetas”, depois de meses de confinamento, depois de ter ficado “toda a gente em casa contornando os móveis/ vigiando as mãos vazias/ falando ao telefone/ conhecendo os seus fantasmas” (Andreia C. Faria), é bom sentir de novo “a cidade devolvida ao vento”, a esses acasos abrindo margem a triunfos serenos. “E de novo circulamos o olhar/ entre verdes de gradeamento e arbustos/ passado e presente entrelaçados em rapsódia sem maestro” (Inês Lourenço). Os versos são recolhidos do primeiro número da colecção Apneia, uma invulgar e bela edição do Museu da Cidade do Porto e que conta com concepção gráfica de Rui Silva reunindo de forma harmoniosa dois livros num só – Este Fresco Sanatório para o Sangue, de Andreia C. Faria e As Palavras Beijam sem Carga Viral, de Inês Lourenço. Trata-se de um exemplo entre outros das iniciativas que têm vinculado a acção cultural a um esforço por apoiar a criação literária e interpelar o público, com a autarquia a endereçar a duas poetas de gerações diferentes o convite para que, ao longo de um ano, escrevessem um conjunto de poemas pondo em foco a relação com a cidade. A própria Feira se lança num corte com a ideia de reclusão, e, quando se assinalam os 150 anos da morte de Júlio Dinis, apesar de persistirem os constrangimentos da pandemia, oferece-nos a possibilidade de andar à cata desses horizontes por desdobrar, parando distraidamente “para escutar o gorjeio de alguma ave oculta na folhagem”, ou “cortar a flor desabrochada à borda dos caminhos”. Se hoje se sente nas nossas ruas que os acasos estão moribundos, que os encontros são cada vez mais difíceis, e quando a proximidade dos outros é algo a evitar, é motivo de contentamento que uma feira possa tornar-se num vinco ou numa dobra que resiste à pressão que tenta alisar tudo. “Estamos sós/ e entrincheirados na memória triste”, lê-se no final do primeiro dos poemas de Andreia C. Faria. Esse que, falando na alegria de tuberculosos com que hoje respiramos, abre assim: “Não espanta enlouquecer da forma mansa/ e mais feroz./ Assistimos em directo ao nascimento de tudo o que nos mata.// É a peste.” E Teixeira de Pascoaes em tempos também nos lembrava isto: “Eliminem a palavra Humanidade e ficaremos cobertos de pêlo, num instante.” Este aforismo surge no Imaginário dedicado ao romântico oitocentista, uma recolha antológica com mais de 800 páginas em que a pintora Ilda David recolhe fragmentos da sua obra, bem como de textos dispersos e passagens da sua correspondência, além de citações, desenhos ou pinturas de outros autores “aparentados em estilo ou em espírito”. É uma edição que recupera o modelo dos antigos “poemários” da Assírio & Alvim e que nos dá a ler ainda um conjunto de apreciações que foram feitas sobre a obra de Júlio Dinis, destacando-se a nota de Eça de Queirós, escrita logo após a sua morte, na edição de As Farpas que saiu em setembro de 1871. Este rende-lhe homenagem, e diz que “ao compassar dos soluços é que o coração lhe aprendeu a bater: daí pois, aquelas meias-tintas veladas, em que se move com um rumor brando o povo romântico dos seus livros”. Eça profetizava ainda que o autor de As Pupilas do Senhor Reitor (“aquele livro fresco, idílico, todo cortado de largos fundos de paisagens, habitado por criações delicadas, vivas, originais”) acabaria por conquistar o um lote entre os poucos que o sol da posteridade banha: “Terá o seu dia de justiça e de amor. À maneira daqueles povoados que ele mesmo desenha, escondidos dos vales sob o ramalhar dos castanheiros, os seus livros serão procurados como lugares repousados, de largos ares, onde os nervos se vão equilibrar e se vai pacificar a paixão e o seu tormento.”

Se uma flor pudesse despontar no inferno, é possível que toda aquela mecânica de sofrimento eterno desabasse, humilhada por uma forma de vida de uma simplicidade feroz e que singra como um suspiro brevíssimo de prazer, um detalhe imponderável capaz de encher de emoção o olhar. Ora, a mais marcante edição desta homenagem que a Feira do Livro do Porto rende a Júlio Dinis recupera as pranchas do herbário que o médico compôs na última das suas três estadas na Ilha da Madeira, obra de um artista contando com os espécimes vegetais que foi recolhendo no último desses 32 anos que não chegou a cumprir, e a qual adquire, segundo Nuno Faria, director artístico do Museu da Cidade, a força de um memento mori, sendo um desses objectos artísticos “escondidos, votados à escuridão, destinados a permanecerem ocultos” e que vêm a ser revelados inesperadamente, já fora de tempo, como gestos secretos de que o tempo se admira e assim os devolve. “Fantasmagoria, objecto que releva quase da magia na forma como desafia as leis naturais e a passagem do tempo, feito pelas próprias mãos do escritor”, escreve Nuno Faria. Tuberculoso, o médico Joaquim Guilherme Gomes Coelho, que conhecemos como Júlio Dinis, tentou salvar-se naquela estação decisiva entre o turismo terapêutico da época, e passou ali três temporadas entre março de 1869 e maio de 1871, testemunhando a forma como a ilha se viu transformada num “hospício a céu aberto”. Numa carta endereçada do Funchal a um amigo, descreve assim aquela cidade: “O viajante cruza-se a cada momento com certas figuras pálidas, emaciadas, pensativas, marchando lentamente, ou transportadas em redes, encontra-as nos assentos dos passeios em ociosa meditação, ou fitando melancolicamente as ondas que se sucedem na praia; são ingleses cadavéricos, alemães diáfanos, portugueses descarnados, brasileiros, norte-americanos, russos; são velhos, adultos, crianças, vaporosas belezas femininas de toda a parte do mundo, todos a convencer-nos de que estamos na cittá dolente, mas no pórtico desta não se lê gravado o dístico desesperador que o poeta inscreveu no da região das tormentas eternas. Pelo contrário, à entrada aqui revestem-se de esperança os próprios condenados.” O cardeal madeirense e poeta José Tolentino Mendonça esclarece no prefácio ao livro publicado pela Documenta que a expressão cittá dolente remete para o início do canto III que Dante Alighieri compõe para o Inferno da sua Divina Comédia: “Trata-se, nesse caso, da inscrição gravada no cimo do pórtico infernal, à semelhança de epígrafes métricas que frequentemente decoravam as portas das cidades medievais: ‘Alcança-se por mim a cidade dolente/ alcança-se por mim a incurável dor/ Alcança-se por mim a desenganada gente/ […] Abandonai toda a esperança, ó vós que entrais’.”

“Todas as ideias importantes devem incluir as árvores, as montanhas e os rios”, escreveu Mary Oliver, poeta norte-americana desaparecida em 2019 que acaba de ganhar uma primeira edição de alguns dos seus poemas na nossa língua, com selo da Livraria Flâneur. Hoje de novo, aquele ideal romântico de Júlio Dinis, que olhava para a natureza e nela via uma promessa de restauro do espírito, volta a ter algo de incitante para nós, como um desejo de escapar ao desastre que vai sendo urdido no coração das nossas cidades. Em A Morgadinha dos Canaviais, deixou um personagem a que chamou Vicente e que tinha “uma entranhada paixão vegetal”. Este velho, dado a singularidades, era visto a conversar com as plantas e as flores, “como se convencido de que o estavam compreendendo”. É-nos dito ainda que “a borragem, a salva, a fumária, a erva terrestre, a erva moura, os trevos, os gerânios, as papoulas, as violetas, tão boa camaradagem lhe faziam, que nem lhe deixavam sentir a solidão”. Mesmo se à nossa volta vemos inscritos por todo o lado os caracteres da extinção, é através da perspectiva da devastação que Andreia C. Faria vislumbra uma hipótese de fuga a esta cidade que nos trazem as últimas notícias e que soa sempre como algo de lacerante e sem saída. “Foi preciso, à natureza, desfazer-lhe/ o flanco. Ser tácito e soturno ante a matéria/ viva, confinar o próprio sangue/ e com alívio, deste bairro/ onde se dorme, poder então pensar:/ dentro de um século tudo isto/ terá o brilho da vegetação/ e serei santa num qualquer deserto.// Foi preciso construir a natureza/ antes de amar-lhe a vizinhança/ e o futuro,/ o seu sustento/ com memória de ossos/ a partir do fim.”

Dantes a Feira do Livro era o lugar onde nos subtraíamos ao crescente império do mercado, e ali era-nos dada a possibilidade de mergulhar nesse labirinto denso de uma improvável vegetação, com a sua biblioteca contraditória e complexa, à qual podíamos arrancar certos espécimes, e que, mesmo ferida, logo se recompunha. Mas se a Feira do Livro de Lisboa se transforma cada vez mais numa montra, e se entrega ao vulgar recital do consumo, oferecendo aos grupos editoriais um espaço nobre para exporem as suas novidades e se livrarem dos fundos de catálogo como se se tratasse de refugo, no Porto, desde que a autarquia assumiu a organização da feira, em 2014, afastando a APEL, as livrarias, os alfarrabistas e os editores independentes, em vez de relegados para as margens, ganharam expressão, podendo trazer de volta a diversidade, e, assim, decalcar o infinito, refazendo um mundo por meio da observação e do espanto. “A forma como o Porto se eximiu a esse regime de subjugação que é representado pela APEL deixa-nos bastante orgulhosos, e bastante livres para seguirmos o nosso caminho”, diz Nuno Faria em declarações ao i. “Estamos a tentar encontrar um equilíbrio, para que os pequenos livreiros, os alfarrabistas, as pequenas editoras possam encontrar o seu espaço, sem serem confrontados com o gigantismo que a Feira do Livro de Lisboa promove. Aqui, estamos numa escala mais pequena em que o que importa é o contexto, a integração na cidade, nos hábitos culturais da cidade.”

Este contraste, mesmo se leve, faz deflagrar algo de rústico bem no centro da cidade, e ali vemos despontar a flor de um “sentido novo”, título do último poema de Inês Lourenço, na edição acima citada, e que fala da sorte do poema, mas que nos serve também um bom mote para tudo o que, de tão frágil, estranhamente persiste, e reaparece para fazer desabar a arrogância do que hoje nos cerca: “Não precisa de respiração assistida/ para o ar lhe circular entre os vocábulos. Nem/ jaz inerte e horizontal numa febre letárgica/ que lhe impõe caminhos/ de finitude. Ele procura o princípio renovado/ em todos os declives e espantos. Só a febre de um ardor/ o consome, aquele ardor que demanda o sentido novo/ no devir do tempo. Novas formas o engenham/ e transmutam mas ele é indestrutível/ na sua inútil vocação de poema.”