Shiva Baby. “Para muitos judeus, a comédia é uma forma de processar o trauma”

Shiva Baby. “Para muitos judeus, a comédia é uma forma de processar o trauma”


Uma das grandes promessas do “novo cinema judeu”, Emma Seligman falou com o i sobre o seu primeiro filme, Shiva Baby


Há dias em que parece que tudo de mau nos acontece. É essa a premissa de Shiva Baby, filme lançado em 2020 e que estreou nas salas portuguesas no festival IndieLisboa, que coloca Danielle, a personagem principal, a enfrentar uma caótica sucessão de eventos que parece não ter fim.

Danielle é uma jovem estudante judia bissexual, que junta uns trocos a servir de “sugar baby”, termo aplicado a pessoas jovens, que procuram um relacionamento com pessoas mais velhas e bem-sucedidas em troca de benefícios. Um dos seus primeiros desafios é descobrir o nome do defunto do shiva, funeral judeu, que está a comparecer com os seus pais.

Funerais já são ambientes estranhos, mas a cerimónia que nos é apresentada em Shiva Baby parece saída de um dos sete círculos do inferno. Danielle é confrontada com familiares e membros da sua comunidade que lhe disparam perguntas desconfortáveis, encontra a sua ex-namorada, o seu “sugar daddy”… e a sua esposa e filha.

“Queria que a Danielle fosse a razão para que o seu dia estivesse a correr horrivelmente mal e que tudo o que fosse mau lhe estivesse a acontecer”, diz ao i Emma Seligman, a realizadora de Shiva Baby.

Este filme, que se move por géneros como o thriller, drama, comédia e, em ocasiões, chega mesmo a parecer um filme de terror, dada a claustrofobia das situações em que a protagonista é colocada, foi um dos grandes destaques do festival de cinema português e uma grande carta de apresentação para Seligman, que, entretanto, já anunciou dois novos projetos, o filme Bottoms e a série Sugar.

Em entrevista ao i, a realizadora fala-nos sobre a grande paixão que a levou a escrever um filme sobre a comunidade onde cresceu, mas também sobre a importância que tem escrever histórias na perspetiva  de uma jovem mulher judia e bissexual. 

Shiva Baby é um projeto que que nasceu como uma curta universitária, em 2018, e tem desenvolvido ao longo de vários anos. Quando teve pela primeira vez a ideia para a história deste filme?
Quando estava na universidade tive que escolher um tópico para realizar a minha tese, o meu projeto final, e fui aconselhada pelo meu professor, depois de apresentar outras ideias, a fazer algo que fosse não necessariamente pessoal, mas de que eu tivesse um profundo conhecimento. Esta foi uma ideia que me veio muito naturalmente.

Sempre quis fazer um filme que acontecesse durante um shiva porque acho que é um cenário muito irónico e engraçado na minha comunidade judaica. Apesar de ser um evento que simboliza a morte de alguém, os tópicos de conversa são sempre os mesmos, continua a haver muita energia, as pessoas continuam a falar e a comer, sempre achei que era um contraste interessante.

Queria contar uma história que tivesse um foco na sexualidade de uma mulher jovem. Existe muita pressão, contradições, uma procura pela validade e ansiedade inerente ao crescimento da sexualidade feminina, por isso, achei que seria engraçado colocar uma jovem mulher a ter que enfrentar e proteger as diferentes faces da sua vida e da sua personalidade, num só dia e num pequeno espaço.

A ideia de tentar ser uma mulher independente e sexy, enquanto ainda é uma criança aos olhos dos pais. Vivemos em tempos interessantes, ser uma mulher é descobrir a sua sexualidade, tornar-se uma adulta, enquanto, ao mesmo tempo, ainda somos crianças aos olhos dos pais.

As contradições que falava são uma das coisas mais interessantes no filme. A sobreposição da Danielle, que trabalha como uma profissional do sexo, enquanto mantém uma vida religiosa ativa, o facto de existir um recém-nascido a conviver com um defunto na mesma sala, acha que estas contradições foram a melhor maneira de sublinhar as hipocrisias desta instituição?
Não houve uma tentativa de descortinar a hipocrisia, só a maluquice e o caos destes eventos. Cresci numa casa amorosa, mas extremamente caótica e penso que a vida das pessoas está repleta de contradições, em que temos de conciliar a nossa vida familiar e sexual, é um caos que temos de suportar.

Fui a imensos shivas, ou eventos familiares, em que entramos em sinagogas e existem bebés a chorar enquanto as pessoas os tentam calar, depois vamos até à cave e existe um quarto para as crianças, que serve para não estarem no caminho dos adultos. Não somos judeus ortodoxos, não cobrimos os espelhos, não somos kosher, ninguém se preocupa com o que seriam os costumes tradicionais, é apenas uma grande confusão.

Não estava a tentar apontar nenhuma hipocrisia, mas, sim, o facto de existirem certas pressões que são colocadas na Danielle durante o shiva, que é algo universal e que acontece a muitas mulheres jovens ou jovens no geral.

Acha que os pais devem levar os seus filhos bebés a shivas?
(risos) Acho que sim, acredito que é importante haver esta relação com os defuntos. Regra geral, não é comum levar bebés a um shiva e não costumam fazer parte da mistura e de tudo aquilo que está a acontecer com os adultos. As crianças costumam ficar em quartos nas caves ou fora de casa.

No entanto, neste filme, de forma um pouco inconsciente, quis mostrar outro lado do que é ser mulher através da personagem da Kim [interpretada por Dianna Agron, uma mãe que leva a sua filha, Rose, para a shiva], onde esta tem que ficar a tomar conta da criança enquanto o pai, Max [interpretado por Danny Deferrari], apesar de eu não o pintar como o vilão, pode viver a vida que bem quiser sem ter preocupações, mesmo que não esteja a tentar ser intencionalmente um parvalhão, mas a Kim, e muitas outras mulheres, são vilanizadas e criticadas enquanto tem imensas coisas a acontecerem na sua vida.

Todas as mulheres do meu filme têm diferentes inseguranças e problemas. Incluir o choro do bebé foi uma ideia que surgiu na minha curta, porque foi algo que aconteceu e tivemos que lidar com isso e senti que tornou a cena tão nauseante que era algo que quis que aparecesse também no filme.

Tendo visto a curta-metragem e a versão final do Shiva Baby, existem novas ideias que foram implementadas na longa do filme, acredita que o tempo que teve entre ambas as versões ajudou a desenvolver a história?
Absolutamente, permitiu-me experimentar várias maneiras de apresentar a história, ou seja, permitiu-me entrar num processo de tentativa e erro. No início, estava a trabalhar de uma forma louca, com imensas coisas a acontecer, inúmeras personagens peculiares, mas depois achei que isso estava a afastar o filme do seu tom terra-a-terra.

Houve uma fase que tentei fazer o filme da forma mais realista possível, mas isso fez com que estivessem a acontecer poucas coisas ao longo do filme para manter o público interessado. Por isso, acho que estes dois anos, enquanto também tentava arranjar recursos, financiamento e tratar do casting e da equipa que gravou o filme, permitiram-me experimentar várias coisas que nunca tinha experimentado antes.

Contei também com a ajuda preciosa da equipa de produção e da Rachel Sennott [atriz e comediante que faz o papel de Danielle, a personagem principal], com quem discuti ideias e versões do argumento e que me ajudou a manter na direção certa.

Fico feliz por ter tido todo este tempo para experimentar várias ideias, durante a produção tivemos várias restrições e complicações relacionadas com o facto de termos gravado o filme praticamente todo no mesmo espaço e era preciso compreender e perceber a melhor maneira para realizar as cenas.

Uma das diferenças da longa-metragem é o sentimento de ansiedade que é gerado ao longo do filme e que deixa o espectador tenso ao longo da visualização. Como é que capturou esta sensação?
Foi algo que surgiu passo a passo, não estava necessariamente a tentar criar esse tipo de sensação inicialmente, só queria garantir que a audiência se sentia submersa no filme.

Queria que a Danielle fosse a razão para que o seu dia estivesse a correr horrivelmente mal e que tudo o que fosse mau lhe estivesse a acontecer, portanto, comecei a escrever e a ver muitos filmes que acontecessem apenas num dia e numa localização.

Muitos desses filmes eram thrillers psicológicos muito tensos ou dramas de família e isso acabou por transparecer no filme. A cinematografia também refletiu isso, quis com que o filme fosse muito claustrofóbico e as sessões de gravação também refletiram isso.

O bebé não parava de chorar, mas precisávamos de continuar a trabalhar e quando estávamos a editar tentámos retirar todo o “ar” que existia no filme para que não desse oportunidade às personagens para respirar. A música também tornou o filme muito mais tenso. Mas foi uma decisão que não existia no início da produção.

Estava a falar de gravar o filme todo num só local, algo que cria uma sensação de estarmos quase a ver um filme do Luís Buñuel. Quais foram as dificuldades de optar por que o filme acontecesse praticamente só dentro de uma casa repleta de pessoas?
Foi difícil criar uma continuidade ao longo das gravações porque raramente tínhamos todos os atores disponíveis no set, então era preciso dividirmo-nos em equipas e, ao longo de semanas, como não existia um script supervisor, que é a pessoa que focada na continuidade do guião, tínhamos que ser muito mecânicos e intencionais quanto à forma como gravávamos as cenas, também porque não tínhamos dinheiro para pagar a figurantes para aparecerem no fundo.

Tínhamos que ser estratégicos na forma como gravávamos as cenas para não parecer que estávamos em salas vazias. Foi desafiante por diversas razões, as gravações também coincidiram com uma onda de calor, é por isso que os atores estão todos muito suados.

Felizmente, toda a equipa ajudou a ultrapassar todos estes problemas e conseguimos ter uma operação muito funcional, com todos a colaborarem e, para mim, que me estava a estrear a realizar um filme, assim como para os meus produtores, tornou a experiência muito mais fácil porque não nos tínhamos que preocupar em mudar de localização que cria problemas como não conseguirmos encontrar parques de estacionamento ou o espaço deixar de estar disponível, por isso, esta limitação foi um desafio, mas também uma bênção.

É possível dizer que o caos das gravações acabou por também figurar no filme?
Absolutamente, foi caos organizado, mas se o filme parecia suado e claustrofóbico para os personagens, para a equipa que estava por trás da câmara foi muito pior (risos). Estava mesmo muito calor e, durante as gravações de um filme, é impossível utilizar ar condicionado enquanto as câmaras estão a rolar, por isso, é que estamos todos muito suados. Mas na sua maioria era tudo muito organizado, até o caos que vemos no filme.

Estava a falar de alguns filmes que lhe influenciaram para fazer Shiva Baby. Em entrevistas passadas, era comum citar a série Transparent como uma grande referência, mas gostava de saber se os irmãos Safdie, realizadores judeus com filmes completamente neuróticos, também a influenciaram?
Sou definitivamente fã do trabalho deles, mas gravámos o filme antes da estreia do Uncut Gems (2020), em agosto de 2019, e nunca tinha visto o Good Time (2017) quando gravámos o Shiva Baby. O primeiro filme que vi deles foi o Uncut Gems e foi depois de terminar o processo de edição, mas adoro o seu trabalho.

Quais apontaria como as suas maiores influências contemporâneas?
Diria que os Irmãos Coen são uma grande influência, especificamente o A Serious Man (2009); o realizador francês-canadiano Xavier Dolan, que cria filmes muito desconcertantes, mas interessantes sobre família e a vida sexual, como o Mommy ou o I Killied My Mother, dois filmes sobre o amadurecimento e o crescimento, rapazes a lidarem com traumas e a sua própria sexualidade; a Eliza Hittman, o seu primeiro filme It Felt Like Love (2013) foi uma grande influência; o Steve McQueen, nomeadamente o Shame (2011), em termos temáticos, e o Joey Soloway, com o trabalho que desenvolveu em Transparent (2014-2019).

Existem muitos mais que eu poderia citar, mas que ainda não tive oportunidade de homenagear, mas espero criar novas histórias e outros trabalhos para poder utilizar todo o meu conhecimento de cinema e de outros realizadores que amo, como o Paul Thomas Anderson. É bom poder contar estas histórias incríveis através de filmes porque assim podemos homenagear o trabalho de tantas pessoas que nos inspiram.

O Shiva Baby tem sido catalogado naquilo que está a ser designado como “a nova vaga de filmes judaicos”. Acredita que esta etiqueta surge de uma espécie de revivalismo ou é uma nova forma de expressão? Alguns dos realizadores que falámos anteriormente já abordavam esta temática, no entanto, o seu trabalho e dos seus contemporâneos abordam assuntos que ainda estavam por explorar.

Essa é uma pergunta muito boa, acredito que existe uma nova onda, mas esta surgiu de um contexto que já tinha uma história muito profunda. Além do Serious Man, não acredito que tenham existido assim tantos filmes que representam o lado do judeu ortodoxo ou os judeus mais tradicionais, como se pode ver no Yentl (1983) ou no Fiddler on the Roof (1971) ou em comédias românticas como o Kissing Jessica Stein (2001).

Acredito que estamos a viver uma onda de filmes que contam histórias judaicas mais introspetivas e com mais nuances, seja o Transparent ou o Uncut Gems, que nos vai levar mais longe do que aquilo onde já estávamos. 

Queria voltar um pouco atrás na nossa conversa, quando falávamos sobre os contrastes do Shiva Baby. Tenho-me focado muito na sensação de ansiedade do filme, mas também existe muita comédia. O humor é uma forma de processar os traumas que acontecem neste filme?
Claro, sinto que me insiro no padrão do “humor judaico”, que é um pouco mórbido. A comédia é uma forma de processar o trauma para muitos judeus e é algo que existe há muito, muito tempo, por diversas razões, que são muito mais sombrias do que alguém poderia imaginar (risos), ao ponto de me deixar a questionar de onde é que vem toda esta comédia mórbida e negra.

Penso que, apesar de ser muito engraçada e de ter encontrado muito sucesso na cultura popular, definitivamente, tudo isto vem da nossa forma de processar os traumas. O meu pai está constantemente a fazer piadas sobre a morte, mortalidade e quando é que vai morrer, tal como a minha mãe, e isso é algo que não é muito estranho quando és judeu (risos). É a nossa forma de processar a nossa mortalidade, para o bem e para o pior.

Quando estava a escrever o guião foi útil contar com a ajuda da Rachel Sennott, uma vez que ela é comediante?
Absolutamente, ela é uma pessoa muito ansiosa mesmo não sendo judaica (risos). Apoiei-me muito nela ao longo deste processo, confio no seu sentido de humor e na sua capacidade de escrita e estava sempre disponível para partilhar e discutir ideias. Senti-me sempre apoiada quando podia contar com o seu apoio. E, claro, ela sugeria sempre inúmeras piadas ou frases muito engraçadas que os fãs, quando falam comigo, acabam sempre por citar.

Depois de Shiva Baby anunciou um novo filme, Bottoms, e a série Sugar. O que podemos esperar do seu trabalho no futuro?
Sinto-me com muita sorte por poder ter a oportunidade de continuar a contar histórias sobre estas pessoas que não estamos habituadas a ver receber tanta atenção. Sempre quis contar histórias do ponto de vista de mulheres judaicas queer.

Mas, apesar de ter uma preferência em explorar este tipo de personagens, enquanto consigo entrar mais “oficialmente” nesta indústria é bom ver que também existem outras histórias que me interessam e que vão além deste exemplo mais específico.

Por isso, espero continuar a contar histórias interessantes sobre a perspetiva de uma mulher, mas quero explorar outros géneros, como o horror, o western, um thriller, comédia romântica… Não sei o que podem esperar de mim, mas espero que esperem algo.