Na semana passada, regressaram as feiras do livro a Lisboa e ao Porto. A primeira continua a apostar nessa “doce paranoia das grandezas engendradas a meias pelo tédio e pela falta de imaginação” (Eduardo Lourenço), ao passo que a da Invicta, reconhecendo que aquilo que a leitura começa por exigir são limites que possam ser desafiantes, prefere atrair os visitantes aos jardins do Palácio de Cristal com uma aposta cultural intensa, mas que não ficou na mão dos habituais promotores do negócio dos livros. Por isso, em vez de sonhos medíocres hipertrofiados, a norte haverá esse registo modesto que começa por ser fiel à discretíssima força de organização e sentido, procurando defender ainda os espaços de encontro e debate, com leituras, conversas, oficinas, cinema, concertos, teatro, uma exposição, entre outros eventos em dó menor. De qualquer modo, para quem vive na capital, consegue ser apaziguadora a visão que se tem do cimo do Parque Eduardo VII, que, depois de ganhar balanço na descida, por estes dias se vê tomado por aqueles enormes ninhos cheios de livros. E haverá até quem por ali se passeie modernamente só e ferido, algum desses seres possuídos por quimeras, seguidos em pleno dia por espectros desencadeados em noites de vigília virando as páginas de algum livro. Mas se este é tido como um ano crítico para o sector, depois de o mercado do livro ter perdido 17% do seu valor em 2020, e depois do severo confinamento a que fomos sujeitos no início deste ano, todos os santos quiseram ajudar, e voltou a passar por aí essa filarmónica meio desfalcada, a que nos tenta sempre comover com as campanhas de defesa do livro, como se este fora uma espécie ameaçada, como se apesar da proliferação da livralhada, o verdadeiro risco se transferisse para nós, por nos faltar a sensibilidade para andar sempre com um no colo, e, então, a toque de marcha, lá voltam os cansados slogans, os discursos piedosos, o proselitismo irritante e que, como já se percebeu, consegue maçar-nos mais, lançar-nos mais fundo ainda nessa sonolência e desistência anímicas que nos têm há muito derreados. Podíamos ir buscar um tamborete, e repetir aqueles números que nos serve a APEL, garantindo que esta é segunda maior edição de sempre da feira de Lisboa, mas em vez desse esforço para nos mergulhar em delírios e sonhos compensatórios absurdos, em vez das habituais listas com sugestões de leituras imperdíveis, novidades dessas que surgem cheias de galhardia prometendo levantar o pó dos caminhos para uns meses mais tarde acabarem largadas pela berma nalguma secção de saldos, mais valia um hino à inutilidade dos livros, seria mais honesto, e, moralmente, muito mais revigorante. Mais vale, por vezes, ilustrar os casos de um desprezo sincero, e até de uma certa repulsa por esse paleio tolo que sempre envolve os livros, para que depois ao menos nos dê para rir com a multiplicação das operações salvíficas, dos enfatuados discursos de amor aos livros, dessa evocação incandescente, delirada da alma que se liberta dos papéis com tinta, como se fosse realmente um motivo de júbilo e não algo que nos devesse antes fazer tremer. Pois ainda há quem se lembre que, antes de se tornar, finalmente, pós-moderna, isto é, ornamental e insossa, a arte moderna foi intratável. Como nos lembra o ensaísta italiano Alfonso Berardinelli, em tempos não tão recuados assim, a literatura “falou nada menos que da possibilidade real do fim do mundo, ou da necessidade moral de que o curso do mundo se detivesse. Havia até uma especial Schadenfreude [alegria nociva] no seu modo de apresentar as coisas. E talvez houvesse ambições, visões e promessas maiores do que hoje estamos dispostos a tolerar.” É bom lembrar os infinitos lutos e sacrifícios que nos impôs a literatura, como em tempos se abria um livro para se sair no rastro de outra sombra no reino das sombras. Mas se hoje os livros estão desvalorizados, talvez isso se deva mais às tantas cedências que foram sendo feitas à medida que, a cada crise, os agentes deste sector se apressavam a garantir que era preciso atrair os leitores, causar melhor impressão, que ninguém estava para abrir um livro e aturar desaforos, levar com uma literatura que soa como um ininterrupto acto de acusação, cheio de revelações horripilantes, auto-análises implacáveis e destrututivas. Assim, os literatos foram-se tornando um alvo demasiado fácil, como naquele poema do chileno Gonzalo Rojas, que nota como “Prostituem tudo/ com o seu ânimo gasto em circunlóquios./ Explicam tudo. Monologam/ como máquinas cheias de azeite./ Mancham tudo com a sua baba metafísica.” E logo formula este desejo: “Eu gostava de os ver nos mares do Sul/ uma noite de vento a sério, com a cabeça/ esvaziada pelo frio, cheirando/ a solidão do mundo,/ sem lua,/ sem explicação possível,/ fumando no terror do desamparo.”
No fundo, parece que os literatos, os homens de letras, são esses seres vitimados por um ânimo que se descontrolou, acabando por fazer deles figuras um tanto gratuitas e patéticas. Mas segundo parece, depois de descoberta a escrita, dizem os investigadores que os Sumérios a usaram “com uma paixão abusiva” e uma incontinência comovedora. Só no século XIX terão sido descobertas mais de 25 mil daquelas placas de argila que iam cozer ao forno como pão, fixando os caracteres da escrita cuneiforme. Como assinalou numa das suas crónicas o histórico editor da Assírio & Alvim, Manuel Hermínio Monteiro, “os Sumérios tinham inventado um dos maiores deslumbramentos da História e tinham consciência disso”. E um exemplo que nos serve, é a forma como, no ano 2200 a.C., enquanto as suas cidades-estado iam sendo destruídas pelos invasores semitas, aquilo de que se ocupavam os escribas era com a elaboração para o futuro de um dicionário analógico. Outros exemplos desta paixão abusiva têm vindo a suceder-se ao longo dos séculos, e Hermínio Monteiro ainda elenca mais alguns, desde os letrados zoroástricos que fugiam aos invasores carregando os textos sagrados para os esconder no Oriente, ao glorioso esforço dos construtores da Biblioteca de Alexandria, passando pelos túmulos faraónicos cobertos de hieróglifos para ganho da eternidade. Essa condensação da história soa sempre aventurosa, ao permitir-nos atravessar num sopro essa espécie de colmeia monstruosa que é toda a grande biblioteca, e que, segundo Borges, se assemelha ao próprio universo. Somos ainda avassalados por um sussurro homérico sempre que abrimos a capa de um livro, mas, quase invariavelmente, e mais ainda nos nossos dias, não demoramos a ficar decepcionados. Há muito que o sector editorial traiu o prestígio de que ainda gozam os livros (sobretudo entre quem os não lê). Mas não deixamos de ser sensíveis à ideia dos judeus atravessando as regiões mais áridas trauteando as pedregosas passagens da Tora. Mais uns exemplos? Hermínio Monteiro ajuda, e sugere ainda o dos intelectuais de Bizâncio fugindo para Itália com os textos dos filósofos gregos, lembra-nos também da paciente vigília dos monges copistas, e, para contrabalançar, fala nos autos-de-fé por causa de livros. Já mais próximo de nós, não podia faltar a mítica imagem de Camões nadando com Os Lusíadas no ar, e, do outro lado da nossa única fronteira, Dom Quixote enlouquecido pelos livros da sua biblioteca. São tudo imagens, um tanto patéticas é certo, mas que, com a sua antiguidade fabulosa, conseguem ainda ser desafiantes. Até dá para espevitar uma réstia de ânimo na carcaça de um velho leitor já um tanto descrente da eficácia dessa ainda mais velha mágica.
“Renovar o velho mundo: este é o desejo mais profundo do colecionador quando se vê impelido a adquirir coisas novas”, escreveu Walter Benjamin no ensaio “Desempacotando a minha biblioteca”. O problema são as coisas novas que nos propõem hoje os editores que têm sucedido a Hermínio Monteiro. Basta ver o desacerto em que foi deixada a próprio Assírio & Alvim, com o seu catálogo que tenta ainda cobrir com penas garridas um galo que nem timbre nem relógio tem para acertar com o nascer do sol, e que se põe aos berros se lhe apontamos com uma lanterna de bolso. Foi um outro poeta chileno, Enrique Lihn, quem rendeu ao galo e ao seu canto reanimador a melhor das odes, e uma que bem serve para recordarmos também o que foi aquele catálogo que Hermínio Monteiro construiu reunindo à sua volta um concílio de príncipes: “Este galo que vem de tão longe no seu canto,/ iluminado pelo primeiro dos raios do sol;/ este rei que me aparece à janela com a sua coroa viva, odiosamente,/ não pergunta nem responde, grita na Sala do Banquete/ como se os seus convidados não existissem, as gárgulas/ e estivesse mais só que o seu grito.// Grita de pedra, de antiguidade, de nada,/ luta contra o meu sono mas ignora que luta;/ as suas esposas não contam para ele nem o milho que pela tarde o fará beijar o pó./ Limita-se a uivar como um herege na fogueira das suas penas./ E é o corno gigante/ que sopra as trevas ao cair no inferno.”
Mas talvez a culpa não recaia apenas sobre os editores, e devamos também ter em conta o público da literatura, as suas pobres ambições. Sabendo como as frustrações são cada vez menos dramáticas, e os pesadelos cada vez mais brandos, sabendo como mesmo os piores temores têm de ser curáveis, e que, para isso, a literatura não serve, resta o hábito de um público que prefere sentar-se à frente da televisão. No fim, há ainda que ter em conta a culpa que partilham os escritores em toda esta derrocada, e, nesse particular, é bom lembrar uma das águas-fortes do escritor argentino Roberto Arlt, que, depois de um leitor lhe ter pedido que elencasse os livros que os jovens deveriam ler para que aprendam e formem um conceito claro e amplo da existência, respondeu de forma rotunda: “Não queria mais nada, querido leitor!” Pondo de lado as falinhas mansas, retrucou: “Mas em que mundo é que vive? Acredita, por acaso, por um segundo que seja, que os livros o ensinarão a formar ‘um conceito claro e amplo da existência? Está enganado, meu amigo: enganado até dizer chega.” E sem qualquer pejo, Arlt prefere deixar antes claro algo que todos esses asnos que enchem os bolsos e o bandulho à custa da promoção da leitura deveriam ser obrigados a recitar antes de virem com as lérias do costume: “O que os livros fazem é desgraçar o homem, acredite. Não conheço uma única pessoa que leia e seja feliz. E tenho amigos de todas as idades. Todos os indivíduos de existência mais ou menos complicada que conheci, tinham lido. Lido, desgraçadamente, muito.”
Além de vincar que, depois de tantos anos dedicado à leitura e à escrita, continua a ignorar para que servem os livros, Arlt sugere ainda aos leitores que enamorados desse culto abusivo que lhes é dedicado, que se interessem em conhecer os bastidores da literatura. “Hoje em dia, o escritor considera-se o centro do mundo. Conta toda a espécie de patranhas. Engana a opinião pública, consciente ou inconscientemente. Não revê as suas opiniões. Acha que o que escreve é verdade só pelo facto de ter sido ele a escrever (…) Todos nós que escrevemos e publicamos, fazemo-lo para ganhar a vida. Nada mais. E para ganhar a vida não hesitamos por vezes em afirmar que o branco é preto e vice-versa. De resto, há momentos em que até nos permitimos o cinismo de nos rirmos e de nos acharmos génios…”.
No nosso país, raros são, no entanto, os escritores que conseguem viver da escrita. E, pelo exemplo daqueles que o conseguem, dá vontade de clamar: antes fossem menos. Hermínio Monteiro também disto deixou o seu testemunho nas crónicas que escreveu para uma revista de livros hoje sepultada e que já só chega às bancas como as flores que deixam as viúvas no cemitério. “Em Portugal, o escritor vive na solidão que nem a pompa fúnebre que os poderes montam para a sua morte consegue disfarçar. Mal se extingue o bramido das carpideiras, o escritor fica duplamente enterrado. A sua obra, ou fica à mercê dos herdeiros que, salvo honrosas e conhecidas excepções, nada têm a ver com a obra nem com a vida de quem biologicamente lhes tocou, ou fica dispersa e esquecida como uma cidade imperial soterrada.”
O editor daquela revista onde escrevia Hermínio Monteiro, Francisco José Viegas, acaba de fazer sair no selo que dirige, a Quetzal, uma magistral reunião de ensaios de natureza bastante diversa escritos ao longo da vida por Paul Theroux. Com o título “Figuras numa Paisagem”, um desses textos revela-se bastante útil se quisermos hoje deitar uma olhada para os bastidores da literatura. Sugerindo o exemplo de Graham Greene, autor que “viveu, e prosperou, numa época em que os escritores tinham poder, eram como sacerdotes, distantes e etéreos”, Theroux chega até aos nossos dias, e repara como hoje os escritores cederam à chantagem dos agentes culturais, e acabaram vítimas desta “era da intrusão”, em que os editores conspiram com os livreiros para os arrastarem para a praça pública e os integrarem no mecanismo de vendas. O autor de O Velho Expresso da Patagónia recorda como em tempos os escritores correspondiam a uma imagem romântica, pois corriam riscos, gozavam de encantadora má reputação, e porque não se viam por aí – “eram mais poderosos por estarem fora da vista, falava-se deles em voz baixa”… Alguns, como Henry Miller, viviam no limiar da marginalidade, e defendiam essa preciosa consciência de como em tempos de censura “toda a escrita é um assunto espinhoso”. Hoje, a censura tornou-se bem aprendeu que muito mais eficiente do que proibir seja o que for, é ajudar ao ruído, aumentar a barulheira, promover a tradução de tudo o que possa ser ameaçador na língua da pobreza, no código da “vida sórdida”, dessas formas de admiração devastadora, e sobre este novo regime de opressão em que vivemos, escreveu melhor do que ninguém Mário Cesariny: “Aclamações/ dentro do edifício inexpugnável/ aclamações/ por já termos chapéu para a solidão/ aclamações/ por sabermos estar vivos na geleira/ aclamações/ por ardermos baixinho junto ao mar/ aclamações/ porque cessou enfim todo o ruído da noite a secreta alegria por escadas de caracol/ aclamações/ porque uma coisa é certa ninguém nos ouve/ aclamações/ porque outra é indubitável não se ouve ninguém.”