Um congresso deveria ser a expressão maior da vivência das dinâmicas internas de uma instituição partidária, num cruzamento entre passado, presente e futuro, mas num partido fundador da democracia portuguesa os sinais não são definitivamente os melhores.
Não tenho e não conto ter nenhuma intervenção política ativa, por manifesta divergência com o exercício presente depois de muitos anos de ação permanente, intensa e consequente, apesar da persistência do compromisso individual com os valores. Descansem os tribalistas, caçadores de divergências, que se o quisesse, provavelmente seria hoje presidente de Câmara, na sequência de um convite em 2016 para ser o segundo da lista de alguém que termina agora o terceiro mandato, que não aceitei, por opção estrutural pela atividade privada. Não esqueço a golpada inicial, não estou para validar um exercício que em demasiados pontos divergentes no conteúdo e na forma do ideário do PS. Se na pandemia a ação, no essencial, correspondeu ao que o país precisava, persiste uma falta de visão estratégica para o país, uma preocupante imediatismo e demasiados riscos de compromissos com partidos apenas preocupados em salvaguardar interesses parcelares, a par de uma evidente falta de transparência de algumas das opções políticas e da perene confusão entre os negócios e a política.
Democracia é liberdade, divergência e convergência, mas continua a temer-se a diversidade, a embarcar em formas pífias de inclusão de quem pensa diferente, através do mecanismo pantanoso das listas únicas. A história habituou-nos a que esse marasmo da diversidade não signifique nada, porque as convicções de quem, divergindo, o concretiza têm a solidez de uma gelatina ou a verticalidade de um polvo. O partido da liberdade não pode persistir em obstaculizar a diversidade, seja na imposição de regras burocráticas que a dificultam, no expediente das listas únicas ou na tentação tribal de perseguir quem pense de forma diferente e não é útil à construção da imagem externa de unidade e pluralismo. As listas únicas são uma espécie de união nacional das diversidades, de democracia consentida, mas não sentida.
É esse temor da divergência que assombrou o Congresso de Portimão. Divergência em relação ao presente, residual, eventual divergência em relação ao futuro. Aliás, num exercício de temor ridículo de quem depois de alimentar a existência real ou virtual de várias possibilidades de sucessão, procura emergir como garante de estabilidade e confiança. É o habilidoso parte e reparte, de uma forma de fazer política datada, plena de manigâncias e sem qualquer sentido no tempo atual, mas o partido e o país gostam, sendo-lhes servido o repasto cívico básico que sacia o grau de exigência vigente.
O temor não pode ser a pedra de toque do partido ou da sociedade. É certo que o temor perante o risco de contágio marcou as nossas vidas nos últimos meses, mas não existem instituições ou sociedades saudáveis construídas na base do receio por expressões de compromisso com a liberdade e a democracia.
Se tiver de haver divergência no presente, que exista.
Se tiver de haver divergência no futuro, que exista, sem a marcação de cartas que a atual liderança pretende, com o objetivo de sempre. Que quem sucede não conteste o sucedido ou questione as opções políticas tomadas. Aliás, o atual quadro e expectativas é garante q.b. dessa premissa dado que todos fazem parte do turno.
O conforto político construído, com interlocutores à esquerda amarrados ao exercício e a direita fragilizada entre a radicalização e a implosão são geradores de um registo de turno validado pela Presidência da República. Não fora a excecionalidade do contexto pandémico e a capacidade de resposta registada, que consagra o Serviço Nacional de Saúde como âncora da ação política, e os riscos políticos para uma gestão de turno, sem visão, sem estratégia e sem sustentabilidade na resposta aos problemas estruturais seriam mais evidentes e penalizados. Sem esses temores externos, prevalece o sentido de sobrevivência a todo o custo, mesmo em detrimento de valores de sempre do partido e de um posicionamento do PS como partido moderado, gerador de equilíbrios, defensor do interesse geral.
É o sentido de sobrevivência política no plano nacional que salvaguardou os interesses eleitorais locais do PCP em municípios em que o PS poderia conquistar o poder, mas abdicou de apresentar candidaturas mais fortes e ganhadoras.
É o sentido de sobrevivência que acede a visões parciais, radicais e intolerantes de alguns pequenos partidos para a viabilização do orçamento de Estado, em total divergência com a matriz do partido e sua visão equilibrada de sociedade.
É uma questão de tempo até os desiludidos do turno começarem a engrossar, porque as pretensões individuais deixaram de ser satisfeitas, a utilidade abrangente do exercício já não satisfaz os interesses instalados ou é preciso acentuar as demarcações para novas sobrevivências políticas em novo turno político.
A política como a vida assumiu uma dimensão de pragmatismo em que “o que é que eu ganho com isso” se sobrepõe a qualquer exercício cívico ou político para a generalidade das pessoas. A ponderação pode não ser tão evidente, mas o princípio está lá e gera um nível de volatilidade que, sendo expressão do pluralismo, é preocupante pela ameaça à democracia que transporta. Tudo oportunidades geradas pela gestão de turno, que dá para sobreviver, mas gera cada vez mais cansaço e ameaças às conquistas democráticas, aos equilíbrios necessários e ao sentido de futuro de uma comunidade. A gestão de turno é uma tragédia, gera mutações democráticas e não resolve os problemas estruturais. Alguns fazem-na, o povo tem gostado, a fatura é paga pelo país como comunidade de destinos.
NOTAS FINAIS
AGACHAMENTOS DE RIO. O PSD de Rio, enquanto versa sobre a realidade interna de outros, estabelece uma ambição poucochinha para as eleições autárquicas de 2021: ter mais do que em 2017. Não parece que o agachamento eleitoral, depois de tantos agachamentos perante o poder em funções, lhe valha de muito.
AGACHAMENTOS GLOBAIS. Qual triunfo dos interesses parcelares passados, depois do 11 de setembro, se tivesse de considerar a realidade do Afeganistão, como fez com a Ibéria, o imperador romano Júlio César, teria replicado que haveria naquele território “ um povo que não se governa nem se deixa governar”. A tragédia do Afeganistão é uma expressão da política de turno internacional.
Escreve à segunda-feira