As imagens originais mostram-nos um dia luminoso, os tripulantes com o entusiasmo estampado no rosto. 10 de abril de 1912 ficou marcado pela partida daquele que detinha o estatuto de “maior navio do mundo” e a fama de ser “impossível de afundar”.
O colossal Titanic partiu do porto de Southampton, Reino Unido, com destino a Nova Iorque, EUA, por volta do meio-dia. Nesta sua viagem inaugural, que seria também a última, a embarcação tinha a bordo 2.229 pessoas (entre passageiros e membros da tripulação). Cinco dias depois, na madrugada de 15 de abril, nas águas geladas do Atlântico Norte, o “impossível” aconteceu: o embate do navio num icebergue levou a um dos acidentes mais trágicos e marcantes de todo o século XX.
Uma vez que a lista de passageiros incluía nomes de pessoas que cancelaram a viagem no último momento e que alguns passageiros embarcaram sob pseudónimo, o número exato de mortos no naufrágio continua incerto. Contudo, segundo a Junta Comercial britânica, aproximadamente 1.500 pessoas terão perdido a vida e apenas cerca de 700 sobreviveram.
Ao longo dos anos, a história tem sido contada e investigada vezes sem conta em reportagens, livros, filmes, com destaque para o campeão de bilheteiras, Titanic, realizado por James Cameron, em 1997. Nele, é contada uma história de amor protagonizada por Leonardo DiCaprio, como Jack Dawson, um jovem humilde, e Kate Winslet como Rose DeWitt Bukater, uma rica herdeira, que se apaixonam durante a fatídica viagem inaugural no navio.
Passando da ficção para a realidade, houve episódios que passaram à posteridade, como o do empresário Benjamin Guggenheim, que ao saber que o navio estava a afundar-se, vestiu as suas melhores roupas e anunciou: “Estamos dispostos a ir para baixo como cavalheiros”. Inversamente, houve histórias de sobrevivência que caíram no oblívio, como a dos seis chineses que conseguiram escapar à morte, mas não ao esquecimento. Até agora.
Uma história "desconhecida" Ao todo, havia a bordo do transatlântico oito passageiros chineses: Ah Lam, Fang Lang, Len Lam, Cheong Foo, Chang Chip, Ling Hee, Lee Bing and Lee Ling. Os nomes aparecem todos num mesmo bilhete, para a terceira classe, a mais modesta da embarcação – o Titanic não era só luxo. Segundo o jornal americano Washington Post, é provável que os oito se conhecessem. Ao chegarem aos EUA, o plano seria apanhar outra embarcação rumo a Cuba, onde ficariam a trabalhar. Obviamente o plano saiu “furado”, com o icebergue a mudar o seu destino para sempre: dos oito passageiros chineses, só seis saíram com vida.
Uma história esquecida que chamou a atenção do escritor Steven Schwankert. Depois de ter falado com o realizador Arthur Jones, juntos, em 2014, começaram a explorar a possibilidade de realizar um documentário que se debruçasse apenas sobre esta parte da história. À medida que a pesquisa se aprofundava, foram percebendo a imperatividade do projeto: “Não se conhecia nada sobre estes marinheiros chineses”.
Decidiram então avançar com um projeto intitulado The Six, lançado na China a 16 de Abril de 2021 (109 anos após a viagem), que percorrerá agora o circuito de festivais internacionais. O filme revela uma história para lá do afundamento do Titanic, moldada pela discriminação racial e pela política anti-imigração que adquiriu uma ressonância particular atualmente após os recentes crimes de ódio contra pessoas de origem asiática nos Estados Unidos.
Para onde foram os chineses? Três dias após o naufrágio do Titanic, os cerca de 700 sobreviventes chegaram a Nova Iorque a partir de outro navio, o Carpathia, que os resgatou do gelo do Atlântico Norte. Alguns abraçaram familiares, outros receberam cuidados médicos, outros simplesmente suspiraram de alívio.
Mas nem toda a gente teve o mesmo tratamento: vinte e quatro horas após a sua chegada ao posto de inspeção de imigrantes em Ellis Island, Nova Iorque, os seis chineses sobreviventes do Titanic foram expulsos do país devido à Lei de Exclusão Chinesa (uma lei polémica que proibia a imigração de chineses para os Estados Unidos). No dia seguinte, foram colocados a bordo de um navio cargueiro com destino a Cuba que os recrutou para trabalhar. O problema é que nunca mais ninguém soube nada deles.
“Eu pensei: ‘Não é possível que seis homens não se tenham casado, não tenham tido filhos, não tenham contado a sua história a alguém”, contou Steven Schwankert, o principal investigador do filme, numa entrevista em Pequim.
Fang uma "inspiração" para Rose e uma criatura para os EUA Quando o casco metálico do Titanic embateu no icebergue, os chineses agiram rapidamente, tentando saltar para os barcos salva-vidas. Mas três deles caíram à água ao mesmo tempo que o navio era engolido pelo mar. Acredita-se que dois desses três marinheiros, Lee Ling e Len Lam, morreram na água.
O terceiro, Fang Lang, agarrou-se a um destroço e esperou até que um único barco salva-vidas voltasse para procurar sobreviventes, tornando-o um dos últimos a serem salvos. O resgate de Fang serviu de inspiração para o final do filme Titanic, e foi até retratado numa cena que acabou por não estar incluída no filme (não se sabe porquê).
Mas, ao contrário de outros sobreviventes que receberam elogios por parte da imprensa, de acordo com os historiadores e investigadores, os homens chineses foram “desprezados” por conta do “sentimento anti-chinês no Ocidente no início do século XX” (o que poderá justificar o facto de terem vivido até agora na escuridão, não chegando sequer a contar a sua história a alguns dos seus descendentes).
Num relatório apresentado dias após o naufrágio, por exemplo, o Brooklyn Daily Eagle chamou-lhes “criaturas”, acusando-os de terem saltado para os barcos salva-vidas “ao primeiro sinal de perigo”, escondendo-se sob os assentos. Houve também quem escrevesse que se mascararam de mulher para ter prioridade no processo de salvamento.
Mas Tim Maltin, historiador especialista na história do Titanic, afirma não existirem provas dessas duas acusações: “Foram histórias inventadas tanto pela imprensa, como pelo público após o evento”, contou o especialista à BBC.
Segundo o historiador, os rumores podem ter sido originados pelo estigma associado a muitos sobreviventes do sexo masculino, já que na época “o público em geral achava que as mulheres e crianças deveriam ter tido prioridade no resgate”.
De acordo com Maltin, os homens chineses chegaram até a tentar ajudar outros sobreviventes. Também a equipa de produção do documentário mostrou que essa afirmação era falsa. Ao construírem uma réplica do barco salva-vidas, os responsáveis pela produção cinematográfica confirmaram que seria impossível os chineses esconderem-se debaixo dos assentos sem serem vistos. “Acho que vemos a mesma coisa hoje. Vemos imigrantes que são usados omo bodes expiatórios pela imprensa”, afirmou o realizador, Arthur Jones.
Após o naufrágio De Cuba, os seis homens conseguiram viajar até ao Reino Unido, onde havia escassez de marinheiros, já que muitos britânicos se alistaram no Exército durante a Primeira Guerra Mundial. Chang Chip ficou cada vez mais doente após a noite fatídica no Titanic e acabou por morrer de pneumonia em 1914. Os demais trabalharam juntos em Inglaterra até 1920 a recessão do pós-guerra começou a fazer-se sentir, acentuando os sentimentos “anti-imigração.
Alguns desses homens chineses casaram-se com mulheres britânicas e tiveram filhos. Porém, uma política anti-imigração forçou-os a abandonar o país sem aviso prévio, deixando os seus entes queridos para trás. “Não foi culpa deles. Todas essas famílias foram realmente separadas pela política”, sublinhou Jones. “Em vez de usar um Ato de Exclusão, eles usaram apenas a lei contratual para se livrarem de milhares de chineses”, acrescentou Jones, falando das autoridades britânicas.
Para contornar as leis, milhares de pessoas nascidas na China entraram nos EUA com documentos falsos. Proteger as suas novas identidades exigia, por vezes, manter as suas vidas passadas em segredo. Ah Lam foi deportado para Hong Kong, enquanto Ling Hee embarcou num barco a vapor com destino a Calcutá, na Índia. Lee Bing imigrou para o Canadá, enquanto Fang Lang, após velejar entre a Grã-Bretanha e Hong Kong durante anos, se tornou cidadão do país que outrora o havia rejeitado – os EUA.
O estigma que ainda impera Portanto, sobreviver ao Titanic foi apenas um dos muitos obstáculos que os seis homens enfrentaram como migrantes chineses no início do século XX, quando “eram alvos específicos de políticas discriminatórias em países como Grã-Bretanha, Canadá e Estados Unidos”.
O impacto dessas políticas continua a fazer-se sentir gerações depois, inclusive na onda de racismo anti-asiático desencadeado pela pandemia da covid-19: “Não é algo que tenha começado com o último Presidente, que falava muito do nosso relacionamento com a China”, defendeu Schwankert, referindo-se às políticas e comentários de Donald J. Trump. “São questões que abordamos há mais de 100 anos”.
Os descendentes “Ainda há pessoas para as quais isto é uma história familiar muito íntima”, explicou Schwankert. Nas suas investigações, a equipa de produção conseguiu chegar até ao filho de Fang Lang, Tom Fong, que afirmou que o seu pai faleceu em 1985, aos 90 anos, deixando essa parte da sua história em segredo. Fong sabia que o progenitor, embora não falasse muito sobre a sua vida, havia passado por um naufrágio.
Tom Fong nasceu em Milwaukee, Wisconsin, quase meio século após a tragédia do Titanic: “Ele nunca falou sobre isso. Nem comigo nem com minha mãe”, esclareceu Fong à BBC. Só em 2003, através de um membro da família, é que o filho ficou a saber que o pai foi um dos sobreviventes do épico naufrágio. Ao pesquisaram online, encontraram o apelido da família na lista de passageiros, com grafia um pouco diferente (como pode acontecer quando nomes chineses escritos com o alfabeto ocidental). Em seguida, encontraram uma descrição do homem agarrado a um destroço do navio até ser resgatado, que combinava com a história de Fang Lang. Fong acha que o seu pai pode ter mantido a sua sobrevivência do Titanic em segredo por causa de uma mistura de “trauma e estigma”.
Quando a equipa de pesquisa do filme seguiu o rasto dos descendentes dos sobreviventes, muitos deles ainda se sentiam relutantes em partilhar a história das suas famílias, precisamente por esse estigma vivido há um século atrás. Tendo crescido no Wisconsin, Fong testemunhou muitos incidentes em que o seu pai teve que lutar contra o racismo: “Fang Lang era um bom cavalheiro, até sentir que o estavam a discriminar pela sua etnia”, lembrou.
Mais de cem anos depois, a hostilidade vivida pelos seis sobreviventes chineses ainda ecoa. Só nos Estados Unidos, houve milhares de casos de abuso relatados nos últimos meses, desde cuspidelas e assédio verbal a agressões violentas.
Fong diz ter escolhido partilhar a história do seu pai “na esperança de que o público aprenda sobre a verdadeira história dos sobreviventes chineses do navio e reflita sobre os eventos atuais”. E agora, com 61 anos, só quer que “a verdade seja conhecida”: “Se não conhecermos a história, é muito provável que ela se repita”.
A maldição dos "gémeos" do Titanic Os navios Olympic, Titanic e o Britannic eram três barcos “irmãos” da Classe Olympic, encomendados pela White Star Line (companhia britânica de transporte marítimo que operou desde a metade do século XIX até meados do século XX e se concentrava principalmente na operação de grandes transatlânticos em rotas entre o Reino Unido e a América do Norte). Criados quase da mesma forma e com nomes parecidos, tiveram todos eles um destino “infeliz”.
O RMS Olympic, construído nos estaleiros da Harland and Wolff em Belfast, Irlanda, foi o primeiro transatlântico do seu tipo construído para a White Star Line, acabando por batizar a Classe Olympic. E teve a melhor sorte entre os três. A sua construção começou em dezembro de 1908, tendo sido lançado ao mar a 20 de outubro de 1910 e realizado a sua viagem inaugural a 14 de junho de 1911, partindo de Southampton, rumo a Nova Iorque.
Ao contrário dos irmãos, que afundaram antes de completarem uma única viagem, o Olympic teve uma longa e distinta carreira entre 1911 a 1935, que lhe granjeou a alcunha de “Velho Confiável” – talvez, em parte, pelo facto de o naufrágio do Titanic ter imposto uma revisão dos equipamentos de segurança em 1912.
Apesar do “sucesso”, a sua carreira foi marcada por vários acidentes, como a colisão com o cruzeiro HMS Hawke, em setembro de 1911, e com navio-farol LV-117, em maio de 1934 (um ano antes de se retirar). Além disso, o Olympic serviu a Marinha Real Britânica como navio de transporte de tropas durante a Primeira Guerra Mundial.
Dois anos após a “reforma”, em 1935, foi desmontado e muitos dos seus elementos decorativos foram leiloados ou reutilizados. Grande parte deles estão nas mãos de colecionadores particulares do Reino Unido; muitos adornos de madeira de diferentes instalações da primeira classe estão localizados no White Swan Hotel, em Alnwick, Inglaterra (talvez a maior coleção de artefatos do Olympic).
Os painéis do seu restaurante foram instalados no restaurante principal do navio GTS Celebrity Millennium, pertencente à companhia Celebrity Cruises; o relógio que se exibia na sua grande escadaria de aparato também está preservado, atualmente em exibição no SeaCity Museum, em Southampton.
Durante a pré-produção do filme Titanic, James Cameron e a sua equipa visitaram vários dos locais onde há objetos do Olympic, de forma a retratar de uma forma mais fiel a construção dos cenários que representariam o Titanic.
Como o mais novo membro da “família” o RMS ‘Britannic’ teve o seu projeto alterado para corrigir as falhas verificadas no naufrágio do seu mais famoso “irmão”, o Titanic. Tais mudanças, no entanto, não impediram que uma explosão ocorrida em circunstâncias até hoje por esclarecer o afundasse em plena Primeira Guerra Mundial, quando operou como navio-hospital.
Começado a construir em novembro de 1911, o Britannic foi lançado ao mar a 26 de fevereiro de 1914, três anos e quatro meses depois do Olympic e dois anos e nove meses após o Titanic. Originalmente batizado Gigantic – ambicionava ser “o maior, o mais seguro e o mais luxuoso navio da sua classe” – o naufrágio do Titanic levou a companhia White Star Line a mudar-lhe o nome e a exigir aos engenheiros navais a alteração do projeto já com a construção em curso. Naufragou durante a guerra, provocando cerca de 40 mortos, e nunca atraiu o mesmo interesse e entusiasmo que os seus ‘irmãos’, acabando esquecido pelo grande público.