Recordar os Rolling Stones é, além de fazer uma lista mental de infindáveis músicas que marcaram gerações, é pensar em todos os excessos de substâncias e nas personalidades excêntricas que marcaram a vida da banda inglesa.
No entanto, existe uma figura central nesta história que não podia estar mais longe da extravagante vida de estrelas como Mick Jagger ou Keith Richards.
Charlie Watts, baterista e fundador do grupo, preferiu viver uma vida longe dos holofotes, focando-se em prazeres mais terrestres: como a sua família, estar sempre dentro do compasso de músicas como ‘Brown Sugar’ ou ‘Sympathy for The Devil’ ou a sua quinta de criação de cavalos.
Agora, o músico vai deixar de marcar o ritmo na banda inglesa. Esta terça-feira, foi anunciado que o lendário baterista faleceu num hospital em Londres, notícia que foi confirmada pelo seu agente, Bernard Doherty, em comunicado citado pelo The Guardian, e também partilhada pela banda nas suas redes sociais.
No início deste mês, o baterista de 80 anos já tinha anunciado que não iria participar na digressão dos Rolling Stones nos EUA após ter sido submetido a um procedimento médico não especificado que, segundo o próprio, tinha sido bem-sucedido.
Este foi o primeiro concerto que Watts falhou desde que integrou a banda em 1963. “Pela primeira vez, estou um pouco fora de tempo”, brincou o baterista, quando anunciou que iria falhar os concertos, para desilusão de muitos fãs. “Aceitei o conselho dos peritos e encaixei que isto vai demorar algum tempo», revelou, acrescentando ainda que o seu “grande amigo Steve Jordan”, iria ocupar o lugar na bateria.
Do amor ao jazz à maior banda de rock da história Charles Robert Watts nasceu no dia 2 de junho de 1941 em Bloomsbury, uma área residencial em Londres.
Apesar de nutrir uma enorme paixão pela música desde muito cedo, nomeadamente pela música jazz e pelo grande saxofonista Charlie Parker, Watts não enveredou logo por esta área. A sua primeira experiência profissional foi o design gráfico, tendo exercido esta profissão na Dinamarca e, mais tarde, na agência de publicidade britânica Charles, Hobson and Grey. Uma experiência que acabou por dar jeito aos Stones, que aproveitaram os talentos de Charlie, para lá da bateria, para ajudar a projetar os cenários de várias tours da banda, assim como o design dos primeiros discos da banda.
Nos seus tempos livres, o baterista sentava-se no kit do instrumento de percussão dos Blues Incorporated, a primeira banda inglesa de blues formada exclusivamente por músicos brancos, que contava com futuros grandes talentos da música britânica como Jack Bruce, baixista e vocalista dos Cream, assim como Brian Jones e Ian Stewart, futuros guitarrista e teclista, respetivamente, dos Stones.
Em meados de 1962, o baterista foi convidado pela banda, que já contava também com Jagger e Richards na formação, para participar em alguns concertos. No ano seguinte, passaria a fazer parte da banda a tempo inteiro.
Com os Stones, o resto é história. Juntos, entre os anos 1960 e 1970, escreveram discos como Sticky Fingers, Exile on Main Street ou Let It Bleed, que se tornaram autênticas bíblias da história da música rock enquanto o estilo de Watts ajudou a moldar o som da banda.
“O Watts complementa perfeitamente Jagger, Richards e o resto da banda com o seu groove, os seus ritmos e a capacidade impressionista, raramente se exibindo, durante mais de 50 anos”, escreveu a Rolling Stone, quando o elegeu para a lista dos melhor bateristas de sempre.
“Quando o Charlie entrou na banda foi o que realmente nos impulsionou”, disse Richards à revista.
Crise de meia idade e uma vida terrestre Apesar de Watts ter vivido um estilo de vida calmo e relativamente “limpo”, durante os anos 1980 enfrentou um sério problema com drogas e álcool, algo que ele próprio atribuía a uma crise da meia-idade. Esta fase da sua vida chegou ao fim depois de ter Watts ter partido o tornozelo quando estava alcoolizado.
Mas, lá porque vivia um estilo de vida limpo com algumas das maiores estrelas de rock de sempre, Watts não se deixava rebaixar perante os seus pares.
Em 1984, um Mick Jagger embriagado levou o calmo Watts ao limite depois de lhe ligar para o quarto do hotel e lhe ter perguntado: “O meu baterista está aí?”.
“Uns vinte minutos depois, escutámos alguém a bater à porta e lá estava Charlie Watts hiper bem vestido, de fato, gravata e barbeado”, recordou Richards no seu livro de memórias. “Ele entrou no quarto foi direito ao Mick e disse-lhe: ‘Nunca mais me chames teu baterista’, agarrou pelo colarinho e deu-lhe um gancho de direita. O soco foi tão forte que Jagger deslizou numa mesa cheia de salmão fumado em direção à janela aberta, sobre o canal. A sorte do vocalista foi Keith Richard o ter apanhado pelo casaco. “Porque não o deixaste cair?”, resmungou no dia seguinte Charlie Watts para o guitarrista.
Após a loucura caótica que era fazer parte dos Stones, Watts optou por outros planos. Apesar de nunca ter abandonado o grupo, o baterista explorou a sua paixão pelo jazz, tendo formado inúmeros grupos de jazz, boogie-woogie e big bands, como Rocket 88, Charlie Watts Quintet e Charlie Watts Tentet. Com a sua esposa, Shirley Ann Shepherd, com quem se casou em 1964, era proprietário de uma fazenda em Devonshire, Inglaterra, onde criavam cavalos árabes e possuíam vários galgos adotados.
A morte de Charlie Watts chega depois de um período em que o músico se confrontou com diversas doenças graves, como um cancro na garganta, em 2004, de que conseguiu recuperar, e deixa um buraco impossível de preencher tanto nos Rolling Stones como no mundo da música.
“O Charlie é o nosso motor. Não vamos a lado nenhum sem o motor”, revelou o guitarrista Ronnie Wood no documentário Tip Of the Tongue.