“Como as pessoas estão sempre, sozinhas com os seus pesadelos”. É com esta frase que Elizabeth Strout encerra o conto “Pedicure”. A este somam-se mais doze. Mas não há nada de errado com os pesadelos. Muito pelo contrário. Só os pesadelos nos permitem atravessar a fímbria de uma solidão que em carne viva vemos apodrecer pela janela.
Editado em julho pela Alfaguara, A Segunda Vida de Olive Kitteridge dá continuação ao romance vencedor do Pulitzer em 2009 intitulado com o nome da personagem principal.
Dividido tal como o anterior em treze fragmentos, estes contos independentes entre si encontram-se estreitamente ligados por uma soturnidade desconcertante. Neles nada nos parece promissor. Há em cada um uma exaustão que se cola como eletricidade estática às casas, à memória, às amarguras, às pequenas renúncias, a todas as personagens.
São personagens pouco soalheiras, na maioria desenquadradas de tudo e de todos. Contornamos-lhes os perfis como se contornássemos um arquipélago. Como se nos engasgássemos com pequenas golfadas de terra seca ainda em alto mar.
Por mais normais que algumas delas nos possam parecer, acabamos por lhes encontrar sempre um desalinho. Como uma nódoa num vestido de seda. Como uma lágrima deslaçada num meio sorriso. Há sempre uma particularidade pronta a revelar-se estranha. Um olhar vago, uma fobia, um diminuto colar de pérolas, um vício, um beijo soprado, um copo de whisky bebido com sofreguidão, um sussurro ao ouvido.
Também em relação à maioria das descrições sobre Olive recaem indícios que apontam para uma certa estranheza. Ela é-nos descrita repetidamente em diferentes textos como sendo uma mulher grande e alta, desabrida, egocêntrica ou ainda por marcar profundamente diversos personagens com os seus pensamentos suspeitos.
Em “Limpezas” lemos: “era uma mulher grande e alta e, quando Kayley se cruzara ali pela primeira vez, um mês antes, parecera-lhe um bocadinho assustadora”. Da mesma maneira que em “Luz” também voltamos a ler “Olive Kitteridge era uma mulher grande; falava praticamente por cima da cabeça de Cindy”. ou ainda em “Pedicure”: “Tinha a sensação nessas alturas que Olive só falava de si própria. Sabia que não era (inteiramente) verdade, mas ela estava fascinada consigo mesma, o que cansava Jack nessas noites, e seria por querer falar de si próprio em tais momentos? Sim”.
Por sua vez, em “O Fim dos Dias da Guerra Civil”, Lisa recorda um episódio com a professora de matemática que a perturbaria para sempre. “Uma vez, há anos e anos, nas aulas de Matemática, a professora Kitteridge disse uma coisa que nunca hei-de esquecer. Ela parou de resolver um problema no quadro, virou-se para a turma e disse: ‘Todos vocês sabem quem são. Se olharem para vocês próprios e se escutarem, sabem exatamente quem são. Não se esqueçam disso’. E eu nunca me esqueci. Isto deu-me coragem ao longo dos anos, porque ela tinha razão. Eu sabia mesmo quem era. – Sabias que eras uma … uma dominatrix?”.
Na verdade Lisa sempre soube que queria ser uma dominatrix porque sempre gostou de se mascarar, dar ordens às pessoas e satisfazê-las. Lisa já tinha abandonado o Maine há muitos anos, mas voltou à disfuncional casa dos pais (que viviam separados sob o mesmo teto), para lhes dar conhecimento acerca de um documentário sobre sexo onde ela apareceria várias vezes ora a espetar alfinetes no pénis de um homem ou a defecar em cima dele. Esse documentário iria em breve passar na televisão e Lisa achou por bem avisar os pais e a irmã Laurie.
Uma vez mais, como em todos os outros contos, Strout, depois de uma montanha russa de emoções, vai terminar este texto com uma subtileza dramática que é já uma constante na sua obra.
Depois das mais bruscas e inusitadas colisões no desenrolar dos acontecimentos Strout parece servir-se de asas para não nos despenharmos no asfalto da banalidade. E dessa forma, a sua subtileza resulta de um género de despressurização natural que ameniza a carga dramática de cada enredo. Senão atentemos, depois das mais violentas discussões entre todos os elementos da família, Fergus, o pai da dominatrix, entra na sala de sua casa e vê as filhas junto de Ethel, a sua mulher a assistir o documentário na televisão. Ele literalmente colapsa e tem um ataque cardíaco. É internado e quando acorda, estranhamente o diálogo que mantém com a mulher não podia ser mais pacífico.
Diante deste desfecho não há como não nos sentirmos surpreendidos. Porque na verdade, são sempre finais como este que nos flagram. Finais que ao contrário do que imaginamos estão longe de trovoar. Geralmente povoados de ironia, estes finais emanam um efeito de sedação turva no leitor. É como se de um momento para o outro assistíssemos com menos ansiedade ao desfecho dos acontecimentos. Mas menos ansiedade não significa quebra de pulsação literária. De todo. É importante não confundir subtileza com purpurina. Strout está longe de adoçar o caos ou de colocar um par de pompons em cada dilema. Ela está sim, pronta a “suportar o fardo do mistério com o máximo de graciosidade que nos for possível”.
E é sem dúvida graças a essa graciosidade que nos sentimos absurdamente próximos de todas as personagens que se debatem a toda a hora contra o maior e mais felpudo dos fardos, a culpa, a melancolia. Uma melancolia hirta, encovada, pronta a alavancar-se sobre cicatrizes invisíveis. Uma melancolia pronta a desenhar um alfabeto de gravilha. “As pessoas vivem com o peso de uma série de coisas”. E sem grande dificuldade, os leitores reveem-se nesse peso. Reveem-se nesse caos ouriçado.
A velhice, a maternidade, o amor Continuamos em Crosby no Maine, na terra que viu casar a ateia Olive Kiteridge com o farmacêutico católico Henry. Na terra que lhe viu nascer Cristopher, o seu único filho. Na terra que a fez viúva e órfã de filho.
Olive, a professora de matemática mais assustadora da escola, nesta segunda vida vai casar com Jack Kennison, um antigo professor universitário em Harvard que sempre considerara snob e petulante. Ela vai recomeçar. É duro recomeçar. Mas os leitores de Strout sabem que Olive já tinha recomeçado antes. Há tempo demais. Ela já tinha recomeçado quando Jim O’Casey, o homem cheio de filhos por quem se apaixonara na escola onde lecionava morrera no momento em que o carro onde circulava se despistou.
Acontece que recomeçar não torna uma mulher mais ou menos desassossegada, ou mais certa do que a move ou do que a detém. Recomeçar não nos torna mais ou menos assustadoramente desconhecidos perante os outros, ou mesmo perante nós próprios. Recomeçar não invalida os nossos segredos. Recomeçar não nos deixa menos sozinhos com os nossos pesadelos. E os pesadelos de Olive já eram vários e talvez tenham sido sempre os mesmos desde o momento em que a conhecemos. A velhice, a maternidade, o amor. São estas as farpas negras que se encravam enferrujadas numa vulnerabilidade inabalável.
Conhecemos a personagem na casa dos setenta e agora ela tem oitenta e dois anos e começa a escrever as suas memórias no terrífico lar onde se encontra. Com estas memórias há muitas coisas que se vão tornar mais lúcidas aos nossos olhos. Vamo-nos aperceber que Cristopher se mudou para Nova Iorque para fugir de uma mãe descompensada, altamente crítica e irascível. Vamo-nos aperceber que Olive vacilava e se calhar, talvez terá vacilado toda a vida perante a imagem que tinha de si própria. Perante estas constatações, também o leitor se verá vacilar. Mas é essa a corda bamba da literatura: o espelho aos pedaços onde nos vemos refletidos em infinitas, desgastadas e repetidas imagens. Onde vemos escancarados os nossos tumultos. Onde não vemos varridos os nossos passos imundos.
Do inglês Olive Again para A Segunda vida de Olive Kitteridge vai uma grande distância. Talvez não haja de todo uma segunda vida em Olive. É certo que agora encontramos uma Olive diferente. Mais ponderada, menos abrupta, mas não menos honesta. Strout apresenta-nos neste segundo livro o mesmo fio condutor do primeiro, visto que em ambos facilmente encontramos o mesmo ritmo, os mesmos flashbacks, a mesma cadência narrativa. São histórias, que graças às constantes prolepses e analepses, nos parecem cair a pique a cada página. Estamos em êxtase a todo o momento a baixar os olhos para ver onde cairá a próxima bomba, ou para averiguar qual dos corações ou dos cotovelos nos detonará ela a seguir. Mas cada bomba mais do que detonar, trespassa-nos repentinamente, transportando-nos para um grande tempo. Porque Olive é uma mulher de um grande tempo. É uma mulher do avesso. E é aí sem dúvida que a sua singularidade e o seu magnetismo reside.
São treze narrativas impiedosas. Treze narrativas que brindam com autenticidade a sociedade e o quotidiano. Que brindam a atualidade, a política, a educação, a homossexualidade, as diferenças religiosas, a velhice, o abismo familiar entre gerações, o abismo entre géneros. Ficção e política em Strout habitam o mesmo grão. Basta recordarmos o episódio de xenofobia na casa de Olive entre as duas auxiliares de enfermagem, Betty e a Somali Halima, ou a cena do autocolante de Trump no carro de Betty. “Olive estremecia sempre que se lembrava daquele autocolante”. O leitor estremecerá de cada vez que se lembrar de Olive Kitteridge.
“Strout levou-me a adorar uma mulher que eu não conhecia, de quem nada sabia”, escreveu a autora de Dentes Brancos, Zadie Smith no jornal The Guardian. Ela que nem tinha lido sequer o primeiro volume.
Agustina acerca das suas personagens dizia que “gostaria que elas não tivessem nome, que corressem pela minha pena como um delgado fio suspenso do orbe”. Mas a verdade é que as personagens de Strout ficam igualmente a correr suspensas pelo imaginário dos leitores. Isso é indesmentível. Em qualquer dos contos ou dos romances as suas personagens cirandam sobre nós e nós continuamos a cirandar pelos recantos do Maine abraçados a um abandono ou a um tédio que docemente nos aguarda sem a menor das pressas.