“Wir schaffen das”: como Merkel pôs a esquerda a seus pés

“Wir schaffen das”: como Merkel pôs a esquerda a seus pés


Ao fim de 16 anos de governação, Merkel pendurará a pele de chanceler da Alemanha. Em 2008, alguma esquerda chamou-lhe nazi. Em 2021, engrandece-a e pena a sua saída.


Ao fim de 16 anos, Angela Merkel está de saída da chancelaria alemã. Democrata-Cristã e herdeira espiritual de Adenauer, Merkel cresceu na Alemanha Comunista – uma casualidade que, descreve a própria, “moldou muito o seu estilo de liderança”. Terá tido vontade de o expandir e, em 2000, tomou a Christlich-Demokratische Union Deutschlands (CDU).

Passados cinco anos tornar-se-ia na primeira mulher chanceler da Alemanha (não é coisa pouca). Enquanto tal, a reboque, protagonizou a dignificação da democracia cristã no mundo moderno, tornando-se no seu maior farol. Wir schaffen das [nós conseguiremos] – assumiu em 2015, aquando da crise de refugiados. E conseguiram (só nesse ano a Alemanha recebeu cerca de um milhão de refugiados). 

O Wir schaffen das tornou-se num símbolo de Merkel: não só pela força da frase, em si, mas pela maneira como esta posição abanou as crenças de muitos que outrora a condenavam. A esquerda europeia, que em 2008, aquando  das sanções à Grécia, a considerou “herdeira do Nazismo”, está-lhe hoje rendida. De vilã a heroína, as posições humanistas de Angela Merkel fizeram dela, sobretudo, alguém profundamente consensual entre os moderados. Contudo, há exceções.

Wir schaffen das A frase tornar-se-ia numa roda dos ventos: havia quem a usasse para todas as direções. Foi o caso de um charmoso Boris, que, em 2019, viria a usá-la numa conferência de imprensa após reunião com Merkel sobre o Brexit: “We seek a deal (…). Wir schaffen das, I think it’s the phrase” (Nós procuramos um acordo. ‘Wir schaffen das’, penso que seja a expressão).

A sua oposição – mais à direita, securitária dos refugiados – também não a largou, fazendo dela “um peso de chumbo pendurado à volta do pescoço” de Merkel (como o descreveu Graeme Wood, jornalista do The Atlantic). E cavalgou-a, e cavalgou-a. O discurso antirrefugiados desta direita musculada ganhou expressão dentro do país, tornando-se no assunto que mais magoou Merkel politicamente: parte significativa dos alemães não quer tantos refugiados no seu país – e expressará essa vontade nas urnas.

Chegamos, então, ao status quo das eleições do próximo mês: o fim de uma valente era da chanceler da Alemanha e tendências crescentes da extrema-direita. O que pode isto querer dizer? Que mel trouxe a chanceler para colocar a esquerda europeia rendida a si? E que legado deixa?

“Fiz um julgamento precipitado” Um dos exemplos de alguém que fez esse caminho – de criticar Merkel para acabar a elogiá-la – foi precisamente João Soares, antigo ministro da Cultura. Soares, ao dizer que Merkel é “uma das pessoas vivas que mais admira”, reconhece estar a fazer uma “autocrítica”.

A seu ver, a chanceler, na crise financeira de 2008, “teve um comportamento que podia ter sido bastante mais positivo”, apontando ainda o dedo ao seu ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble (que por vicissitudes da vida era alguém “obviamente amargo”): “Merkel nunca foi grande protagonista disso, foi mais o homem das finanças”. 

Explica que, na altura, apesar de “triste” com a situação, nunca usou o “argumento mais duro que se pode usar para os alemães, que é dizer-lhes que são ‘os herdeiros dos nazis’”. Não obstante, reconhece, à hora da saída de Merkel, ter feito “um julgamento precipitado” sobre a sua pessoa, sendo que a vida mais uma vez lhe “provou que às vezes somos injustos quando nos precipitamos sobre as pessoas”. Assim, admite que Merkel “melhorou imenso”, “aprendeu com a realidade” e “reconheceu que as coisas eram diferentes”.

E o que mudou? Para João Soares, Merkel teve “um comportamento completamente exemplar na crise dos refugiados”, duvidando que “alguém à esquerda pudesse ter feito melhor do que o que ela fez”. Mas não só a gestão da crise migratória agradou o antigo ministro da Cultura.

O caso repete-se com a crise “da covid”. Tanto numa como noutra, “os alemães tiveram um papel muitíssimo importante”, que atribui a uma “especial sensibilidade” que estes têm “para a relação com os outros”, fruto das “ocupações russas, americanas e ocidentais”: “há, entre os alemães, uma genuína vontade de paz” – diz ao i João Soares.

Também Marques Mendes, em declarações ao i, encontra na crise dos refugiados o turning point da maneira como a esquerda olhava para a chanceler: “Alguma esquerda criticou-a fortemente no período da crise das dívidas soberanas, mas logo a seguir, na crise migratória, passou a elogiá-la e a tê-la como grande referência”.

Ao contrário de João Soares, que vê em Merkel uma mudança, Marques Mendes defende que a chanceler “seguiu sempre um percurso de acordo com os seus princípios e convicções”. E garante que as críticas e elogios da esquerda se devem sobretudo a “razões táticas”: “A esquerda, num momento, criticou-a, e depois elogiou-a. Isso tem muito mais a ver com questões de natureza táticas internas a alguns países – como Portugal – do que com a sua linha de orientação política”.

Mas não só de “razões táticas” se fazem críticas ou elogios. Há outras razões – teoricamente não políticas – que levam Soares a colher simpatia por Merkel: a sua simplicidade. “Merkel é uma mulher que sai do poder talvez mais importante da Europa e anuncia que vai fazer a sua vida comum e voltar para o apartamento em que viveu com o seu marido”.

Destacando-lhe este lado, que considera “simpático”, Soares prossegue explicando ter lido uma crítica de um jornal francês em que acusavam a chanceler de vestir sempre os mesmos vestidos e não mudar o guarda-roupa – “como é habitual em quem é poderoso”. Perante isto, explica que Merkel terá respondido que veste “a roupa que tem” e que “não anda a mudar de uma dia para outro”, revelando uma postura que o “agradou bastante” e que lhe deu “muito boa impressão” da chanceler.

“Um legado fabuloso” Para Marques Mendes, o “legado da Merkel na Alemanha e na Europa é um legado fabuloso”. A seu ver, a alemã tem, quer no “plano económico”, quer no “plano humanitário” ou quer no “plano do equilíbrio político”, “vários mandatos que são provavelmente inultrapassáveis em termos de resultados”, o que vai “deixar saudades tanto à esquerda como à direita”.

Destaca ter sido “exemplar”, por exemplo, ao manter “um cordão sanitário” com a “extrema-direita”, nunca permitindo “que o seu partido tivesse qualquer tipo de veleidade” com esta. Nota-lhe ainda “grande pragmatismo e coerência”, características que, para o comentador, certamente pesarão no seu “legado”. E caracteriza-a, elogiosamente: “Merkel é uma mulher eminentemente do centro: com uma visão económica moderna, mas com uma visão social arrojada. Uma grande referência na Europa”.

Apesar de, naturalmente, haver sucessão no seu cargo, Marques Mendes defende que não haverá “substituição”: “suceder-lhe pode ser fácil, substituí-la muito difícil. Substituir, nas suas qualidades, convicções, forma de agir, no modo como fazia pontes dentro da Europa para estabelecer consensos (e  nisso foi admirável) isso será muito difícil”. Esta substituição, no seu entender, exigiria “autoridade, uma legitimidade forte e uma grande dose de equilíbrio. Ela é daquelas personalidade que surge de anos a anos” – conclui.