Bezerro de pobre não chega a boi


Na sua imensa sabedoria o Estado delega, com crescente frequência, a regulação de certas profissões em corporações colegiais. Como em Roma, os collegae acabam co-optados mas nada substitui a colegialidade ditada pela natureza.


Era um restaurante gabado, com chefe estrelado e maître na antecâmara, acolhendo os habitués e os turistas enviados pelos recepcionistas de hotel que cobravam comissão e afastando os indesejáveis, os sem reserva, a quem se mostrava o menu com os preços que os faziam bater em retirada. As mesas ocupavam durante o Verão a parte descoberta do claustro do antigo convento, refugiando-se debaixo de telha nos dias invernais.

Florença acolhia, tant bien que mal, os turistas, melhor os que sabiam ao que iam. A novilíngua do turismo contemporâneo permitia os mínimos de comunicação entre a equipa visitante e os visitados. O sommelier revirava os olhos e impacientava-se com os tropeções na pronúncia bárbara do nome dos santos que elevaram a descoberta de Noé a preços estratosféricos.

Lobrigava-se um casal acidental de turistas administrativos, em romaria a um qualquer congresso de ciências semi-ocultas, separados pela casa de morada de família e pelas inconveniências do registo civil, unidos pela vontade de aproveitar os intervalos congressísticos para preencherem os respectivos vazios. São, como todos os portugueses, descrentes nas capacidades proselitistas do Instituto Camões e sempre que expatriados falam de forma despreocupada e audível.

A falta de uma política de rendimentos dentro da União Europeia fez-se sentir à mesa e o estudo da carta de vinhos prolongou-se. O sommelier, intuindo a penúria, desespera. Acaba surpreendido, mas não agradado pelo rumo ao meridiano, ouvindo o pedido de um Etna Bianco, o Pietramarina de Benanti.

Na mesa ao lado reinava a despreocupação que se estendia quer aos visitantes quer aos visitados. O Sorì Tildìn de Gaja esvaziava-se a bom ritmo e o sommelier, crente, como todos os do mester, no Piemonte sonhava com a abertura de uma segunda garrafa. O casal comunicava mas sem embotar a língua com palavras, sorrindo a cada consagração do cálice por entre os lábios. Volumosas esmeraldas com engastes de prata antiga adornavam uma segunda juventude do colo da senhora, uma devota de Pintanguy.

As libações prosseguiram e o fosso entre as duas mesas estreitou-se como só o Atlântico se estreita entre falantes de português. Fazendo jus à tropicalidade nos costumes, falou primeiro o brasileiro.

– Tá gostando desse vinho aí?
– Gostaria mais do seu.
– Você conhece?
– Conheço pois.
– E você acha ele bom?
– É muito bom. E infelizmente há muita gente a considerá-lo excelente, a começar pelos americanos que ditam os preços.
– Eu e minha mulher sempre tomamos este vinho quando vimos na Itália. A gente vem todos os anos. Vimos fugindo do Pantanal. Sabe eu tenho 10 000 pé-duro, 8 000 caracu e uns 40 000 zebu. É negócio pesado!
– Desculpe, mas não percebi o que é que o senhor faz…
– Eu faço boi!
– Ah!, então somos colegas!

Bezerro de pobre não chega a boi


Na sua imensa sabedoria o Estado delega, com crescente frequência, a regulação de certas profissões em corporações colegiais. Como em Roma, os collegae acabam co-optados mas nada substitui a colegialidade ditada pela natureza.


Era um restaurante gabado, com chefe estrelado e maître na antecâmara, acolhendo os habitués e os turistas enviados pelos recepcionistas de hotel que cobravam comissão e afastando os indesejáveis, os sem reserva, a quem se mostrava o menu com os preços que os faziam bater em retirada. As mesas ocupavam durante o Verão a parte descoberta do claustro do antigo convento, refugiando-se debaixo de telha nos dias invernais.

Florença acolhia, tant bien que mal, os turistas, melhor os que sabiam ao que iam. A novilíngua do turismo contemporâneo permitia os mínimos de comunicação entre a equipa visitante e os visitados. O sommelier revirava os olhos e impacientava-se com os tropeções na pronúncia bárbara do nome dos santos que elevaram a descoberta de Noé a preços estratosféricos.

Lobrigava-se um casal acidental de turistas administrativos, em romaria a um qualquer congresso de ciências semi-ocultas, separados pela casa de morada de família e pelas inconveniências do registo civil, unidos pela vontade de aproveitar os intervalos congressísticos para preencherem os respectivos vazios. São, como todos os portugueses, descrentes nas capacidades proselitistas do Instituto Camões e sempre que expatriados falam de forma despreocupada e audível.

A falta de uma política de rendimentos dentro da União Europeia fez-se sentir à mesa e o estudo da carta de vinhos prolongou-se. O sommelier, intuindo a penúria, desespera. Acaba surpreendido, mas não agradado pelo rumo ao meridiano, ouvindo o pedido de um Etna Bianco, o Pietramarina de Benanti.

Na mesa ao lado reinava a despreocupação que se estendia quer aos visitantes quer aos visitados. O Sorì Tildìn de Gaja esvaziava-se a bom ritmo e o sommelier, crente, como todos os do mester, no Piemonte sonhava com a abertura de uma segunda garrafa. O casal comunicava mas sem embotar a língua com palavras, sorrindo a cada consagração do cálice por entre os lábios. Volumosas esmeraldas com engastes de prata antiga adornavam uma segunda juventude do colo da senhora, uma devota de Pintanguy.

As libações prosseguiram e o fosso entre as duas mesas estreitou-se como só o Atlântico se estreita entre falantes de português. Fazendo jus à tropicalidade nos costumes, falou primeiro o brasileiro.

– Tá gostando desse vinho aí?
– Gostaria mais do seu.
– Você conhece?
– Conheço pois.
– E você acha ele bom?
– É muito bom. E infelizmente há muita gente a considerá-lo excelente, a começar pelos americanos que ditam os preços.
– Eu e minha mulher sempre tomamos este vinho quando vimos na Itália. A gente vem todos os anos. Vimos fugindo do Pantanal. Sabe eu tenho 10 000 pé-duro, 8 000 caracu e uns 40 000 zebu. É negócio pesado!
– Desculpe, mas não percebi o que é que o senhor faz…
– Eu faço boi!
– Ah!, então somos colegas!