Uma bicicleta nunca vem só. Volta à literatura em selim

Uma bicicleta nunca vem só. Volta à literatura em selim


Objeto eufórico, condutor do sonho e símbolo de liberdade, a bicicleta tem um lugar proeminente na literatura. O’Neill chamou-lhe “tubular engonço”; para o repórter criminal Maurice Leblanc “é um par de pernas mais rápidas” oferecido ao homem.


“Pneus cheios, guiador sem torção, tudo óptimo, ala!” Destino: uma alentejana Conservatória do Registo Civil, onde um funcionário aguardava o casadoiro Fernando Assis Pacheco que, rodando nas nuvens acompanhado das respetivas certidões, canto interior, tombando para a direita e para a esquerda, lhe entra porta dentro montado em selim para adquirir um duplo estado: casado e etilizado. Os ‘ésses’ e (des)equilíbrios do percurso até à Conservatória, chancelados por aquela ironia que faz da crónica uma arte pedalável, podemos acompanhá-los na crónica “O tipo que se ia casar”, incluída no livro Tenho cinco minutos para contar uma história (2017).

Presença forte, impulsionadora de transformações familiares, assim nos surge a  bicicleta num conto de infância revisitada de Lídia Jorge, “A Instrumentalina”, parente degenerado de utensílio pelo qual o avô da mulher narradora nutre um ódio maior, metálico: “Quem diria? Escondida no saco das reservas proibidas, havia anos e anos que não a soltava do seu local de abrigo, ainda que por vezes o seu selim, a sua roda pedaleira, ou a imagem caprina do seu retorcido guiador me aparecessem como coisas desgarradas”.

Como Assis Pacheco, que  passou jovialmente à posteridade ao lado de uma bicicleta em pleno, sorridente, resoluto manguito, há quem não dispense a bicicleta nos  momentos marcantes do arco existencial. Talvez seja o caso de Mário Cesariny, que desejou “uma morte boa / a uma boa hora / uma morte ginasta tradutora / relativamente compensadora / pedal espinha de bicicleta quase carapau / com quatro a cinco soltas a dizer / que se ele não tivesse ido embora / tão jovem tão salino/ boas probabilidades haveria de ter / de vir a ser / dos melhores poetas pós-fernandino”. Contra esse lugar-comum da morte como coisa escura, triste como o breu, uma surpreendente e bem humorada metáfora, um veículo zero emissões, não inofensivo, onde o real se transforma em surreal, a limpar os ares cinza da época. Quanto a Fernando Pessoa, o camisola amarela da poesia portuguesa de então, convém lembrar que Cesariny se conta entre os que se esforçaram para levantar uma barreira à inundação pessoana. Em vão: não houve heterónimo que não subisse ao pódio e ali se mantivesse.

Objeto eufórico, condutor do sonho e símbolo de liberdade, a bicicleta não é esquecida por Manuel Bandeira quando concebe esse tecnológico lugar de delícias que é Pasárgada. Para Veiga Leitão, que terá inaugurado na poesia portuguesa a viagem-fuga em selim, em 1955 com a publicação de Noite de Pedra – já Vinicius publicara a “Balada das Meninas de Bicicleta” – ela foi musa e companheira num espaço disfórico sem frestas ou saídas praticáveis. A essa companheira de duas rodas dedica o poema “A Uma Bicicleta Desenhada na Cela”: “Aqui, / onde o dia é mal nascido / jamais me cansou / o rumo que deixou / o lápis proibido… / Bem haja a mão que te criou! // Olhos montados no teu selim / pedalei, atravessei / e viajei / para além de mim”.

 

O “tubular engonço” de O’Neill Alexandre O’ Neill, que deu a volta a Portugal exercitando com muita desenvoltura a consciência de uns Lusíadas findos, chamou-lhe “tubular engonço” e fez-lhe um célebre elogio barroco que termina assim: “dá-me as asas – trrim! trrim! – pra que eu possa traçar / no quotidiano asfalto um oito exemplar!”. Não o estendeu, esse elogio, à figura do camisola-amarela, que aliás lhe mereceu um tratamento risível: “Faz-me dó o ciclista / da camisola amarela / é um canário atrás da alpista / ou pinto de flanela?” Dos seus muitos aforismos sobre o estradista amador, alguns deles incluídos em “Seixos”, publicados em Poesias Completas & Dispersos, edição de Maria Antónia Oliveira (2017) ficam alguns: “Eu não sou turista, sou ciclista!”, pensou o estradista amaldiçoando o sol”; “Suava o estradista e suavam os bentinhos que ele trazia ao pescoço”; “Dentes cerrados, grimpado na máquina, trepou à montanha como se ela não passasse de mais um furúnculo”; “Mal entrou na meta, roubaram-lhe a bicicleta”.

Quem talvez não se importasse de ficar sem a bicicleta, que associa ao tombo pouco glorioso e à mazela, é Adília Lopes: “Em 72 recebi/ o prémio literário/ dos pensos rápidos Band-Aid/ o prémio foi uma bicicleta / às vezes penso/ que me deram uma bicicleta/ para eu cair/ e ter de comprar pensos rápidos/ Band-Aid/ é o que eu penso dos prémios literários/ em geral”.

Há no entanto quem não a dispense.  Prosaico e linear é o elogio rasgado que lhe faz Maurice Leblanc nas páginas de Voici des Ailes (1898), um dos romances desportivos do repórter criminal, espécie de hino ao extraordinário veículo de duas rodas, que põe a tónica na mobilidade. Muito embora o homem não possa queixar-se do seu tamanho,  força, envergadura do tórax, nem dos pulmões, o aparelho de locomoção dos animais, do leão ao veado, passando pelo cão e pela lebre, deixa ao homem muito a desejar: “Que enorme inferioridade! O homem não corre, arrasta-se. Quando quer correr, bastam algumas centenas de metros para lhe cortar as pernas; é um mal original […] O cavalo, o camelo, a rena, as viaturas, o vapor, a electricidade são outros tantos paliativos que acentuam ainda mais a desgraça do homem, reduzido à condição de pacote, de encomenda, encerrado como um paralítico na pequena cabine das viaturas ou no caixão dos compartimentos”. Ora a  bicicleta, nascida no século XIX, matou o problema, remediou a lentidão, apagou a fadiga; mais: aperfeiçoou-lhe o próprio corpo, a bicicleta foi o seu acabamento, “é um par de pernas mais rápidas que lhe é oferecido. O homem e a máquina são um só. Não são dois seres diferentes como o homem e o cavalo, dois instintos em oposição. Não, é um só ser, um autómato feito de uma só peça. Não há um homem e uma máquina. Há só um homem mais rápido”.

Se nos mudarmos para o campo da poesia, a velocidade continuar a importar. E disso nos falaria suficientemente um poema de Herberto Helder justamente intitulado “Bicicleta, que encontramos em Quatro Canções Lacunares que, em 1965, eram Cinco, e que começa assim: “lá vai a bicicleta do poeta em direcção / ao símbolo, por um dia de verão / exemplar. […] o poeta pernalta dá à pata / nos pedais. […] O símbolo é simples. / Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais – / lá vai o poeta em direcção aos seus / sinais. Dá à pata / como os outros animais.” Uma bicicleta, essa fantástica máquina individual, desenha um rumo. É rumo ao símbolo que pedala – no singular, o Símbolo – a caminho de algo que não encontra. Segue controlado pelos pedais, deixa-se conduzir pela bicicleta em movimento controlado.

Mas lá está, para correr é preciso ter cabeça, filósofo da Volta dixit, a acreditar em O’Neill, e acrescentou: “É a terceira roda (a pedaleira) que comanda tudo? Não! É a quarta e chama-se cabeça!” É pois com um misto de indignação e complacência que olhamos para a “fotografia” do Trindade, fixada em letra de forma no romance os lusíadas de Alface e Manuel da Silva Ramos, no ano em que ganhou a volta a Portugal com dois dias de atraso.