Portugal nunca apostou verdadeiramente na criação de condições para que os seus cidadãos, independentemente do contexto de nascimento, gerassem uma capacidade crítica, de filtro e de escrutínio da realidade. Na escola, por regra, somos formatados para debitar o que nos é ensinado e o resultado só pode ser um país de desequilíbrios, nas ações e nas omissões, no uso ou no abuso dos direitos, liberdades e garantias.
Depois de décadas sem direitos, na ditadura de Salazar, temos quase cinco décadas em que muitos julgam só terem direitos, sem qualquer equilíbrio com os deveres subjacentes à condição de cidadão e à sua integração na sociedade. E depois, para além do caldo de cultura individual e comunitário, existem as instituições criadas, toleradas e permitidas apesar do seu completo desfasamento em relação à realidade.
O legislador é parte deste sistema, ora prolixo, ora inexistente face às dinâmicas do tempo atual, desperta para a vida em sobressalto, como o país, para realidades que, estando latentes ou sendo uma evidência, há muito existiam.
O sistema instalado, vigente, constitui-se em parte do problema ao permitir que a democracia, por via das distorções, das entorses e das oportunidades para os populistas seja colocada sob ameaça, num quadro em que crescem os que nunca viveram noutro contexto que não o da liberdade democrática. Sempre tivemos um encanto especial por lendas e narrativas, mas precisamos de dar condições para que cada um possa aplicar os filtros que permitem a destrinça entre a realidade e a efabulação, sobretudo num tempo de grande volatilidade, rapidez e difusão de fontes de acesso a conteúdos, algo diferente da informação.
É neste caldo que medra um funcionamento comunitário com expressões lancinantes entre a permissividade total (a bandalheira mesmo) e perigosas expressões de violações grosseiras de direitos, liberdades e garantias, por vezes, a coberto de legislação desfasada da realidade que não tem a atenção dos partidos, amiúde, muito além do que está escrito na letra e no espírito da lei.
A Comissão Nacional de Eleições é um protagonista deste contexto, cristalizado no tempo, enquistado em visões distorcidas da realidade, com perigosas derivas que violam o espírito democrático e a liberdade dos cidadãos, sem pingo de noção do tempo digital em que vivemos.
Sim, são precisas regras para o funcionamento da democracia que assegurem a todos os candidatos condições básicas igualitárias para a apresentação das ideias, dos projetos e das iniciativas a que se propõem realizar, mas não é possível querer que se omita a obra que foi realizada por uns e, eventualmente, criticada por outros ao longo do mandato ou querer cercear a liberdade de expressão de titulares de cargos públicos, nas suas páginas pessoais.
A CNE não nem uma comissão do lápis azul nem uma espécie de Torquemada das Eleições, apostolando a fogueira para uns e o paraíso para alguns, sem ter em conta o contexto de agressividade verbal, insultuosa das redes sociais e o tribalismo de algumas formas políticas de extrema-direita presentes nas redes que distorcem os factos, caluniam e modelam o ambiente eleitoral com mentiras, sem limites.
Mas a culpa não é da CNE, é de quem ano após ano, permite que a instituição persista nos termos em que existe e funciona, sem que nada seja feito para ajustar a legislação aos tempos atuais, proceder aos equilíbrios fundamentais e clarificar o papel da entidade na pré-campanha, na campanha eleitoral e na organização dos processos eleitorais, que incluem o dia das eleições, tão importante sob o ponto de vista estratégico como tudo o resto. Há quem crie condições para ganhar as eleições na campanha eleitoral e as perca no dia do voto, por falta de organização na participação nas mesas e na fiscalização do ato eleitoral.
E é assim que a CNE, sem escrutínio da composição e sem senso ou critério em muitas das deliberações, a toque da bufaria, resolve imiscuir-se nas páginas pessoais de alguns dos candidatos, alguns no exercício de funções de autárquicas, enquanto fecha os olhos a publicidade de municípios nos media a coberto da resposta à covid e da vacinação.
Uma bandalheira, também presente em múltiplas expressões da sociedade portuguesa em acelerado processo de deslaço, de desregulação e de uma espécie de nacional porreirismo gerador de desigualdades, de caos e de incerteza sobre com o que podemos contar.
Todos temos direito à liberdade de expressão e à manifestação, mesmo assente em distorções das bases científicas e da realidade, mas o que se passou à porta do pavilhão multiusos de Odivelas com um bando envergonhado de negacionistas a insultar o coordenador da task-force é mais uma expressão da falta de capacidade de definição de regras para o exercício de direitos, liberdades e garantias. Não podem ser exercidos em desrespeito pelas esferas individuais dos outros. Se não há consciência individual, o Estado tem de se impor, algo cada vez mais difícil quando o exercício político é useiro e vezeiro na desautorização de quem procura fazer cumprir a Constituição e a lei.
Estamos a construir uma sociedade sem critério, de cidadãos com pouco nível de exigência cívica e de entidades que aproveitam os vazios e as oportunidades populistas. Tem tudo para dar asneira, mas é o resultado da falta de visão política, do imediatismo e do deslaçar da sociedade em curso. O anacronismo dos Torquemadas das eleições é só mais uma expressão deste novo normal.
NOTAS FINAIS
DESLAÇAR NA EMERGÊNCIA E PROTEÇÃO CIVIL. O país não tem dinheiro para ter uma estrutura profissional de combate aos incêndios rurais em todo o país. A opção do atual governo, em linha com o que o MAI António Costa tinha iniciado, é a de reforçar as estruturas profissionais e a GNR com meios e capacidade operacional de ataque inicial. O problema é a marginalização, de atenção e de meios, a que estão votados os Bombeiros Voluntários. Não é fácil combater com um Citroen dois cavalos ao lado de Rolls-Royce.
DESLAÇAR DOS RECONHECIMENTOS MÍNIMOS DO ESTADO. Por falar em CNE, Jorge Miguéis esteve 41 anos na administração eleitoral organizando 66 eleições, a começar na primeira do regime democrático, para a Assembleia Constituinte, em 1975, e a acabar nas últimas eleições legislativas de 2015. Faleceu em abril de 2019, o Estado Português, que não reconheceu o seu trabalho em vida, já o devia ter feito a título póstumo.
DESLAÇAR PELA GERAÇÃO DE OPORTUNIDADES PARA OS POPULISMOS. Não remodelar o governo é um erro político, já o disse. Permitia aos novos membros a sintonização com o programa da bazuca e com os outros instrumentos de financiamento orientandos para o reforço da capacidade de execução e retirava argumentos sobre os titulares. Só é compreensível por falta de base de recrutamento que acrescente, à espera que melhore o ambiente geral e a atratividade.
Escreve à segunda-feira