O despertador toca pelas 6h. Ana prepara a roupa e a higiene dos filhos mais pequenos, tomam o pequeno-almoço, uns vão para a escola sozinhos e outros ainda precisam que os leve. Quando sai do trabalho, pelas 17h, inicia-se uma nova fase do dia. Chega a hora dos banhos, do jantar, de brincar e, por volta das 21h, as crianças adormecem, enquanto os irmãos mais velhos contam à mãe aquilo que aconteceu desde que saíram de casa de manhã. Depois de conversarem, ainda é preciso lavar a loiça, arrumar o resto das divisões da casa e só depois vai descansar.
Aos 39 anos e com seis filhos – Leandro de 20 anos, Bruno de 18, Vanessa de 14, Jéssica de 13, Lara de 6 e João de 4 –, Ana Pereira, que reside na freguesia de São Domingos de Rana, em Cascais, não esconde que sempre teve o sonho de ser mãe. “São os nossos filhos que nos dão força para enfrentar os desafios da vida”, garante, adiantando, porém, que nenhuma gravidez foi planeada. “Tem de ser a mulher a querer ser mãe e não pode pensar em engravidar só por pensar que o Estado tem a obrigação de a ajudar”, realça, lembrando os tempos em que passou por dificuldades e não recebeu qualquer apoio estatal. “Tive de criar os meus primeiros quatro filhos sozinha e não foi nada fácil. Deixei de comer muitas das vezes para lhes pôr comida na mesa, mas tudo se consegue com sacrifícios”.
Tendo crescido com os avós, sem receber o amor dos pais, aquela que foi mãe de primeira viagem com apenas 19 anos explica ao i que é cozinheira numa escola e gosta muito daquilo que faz. “Adoro a minha profissão e o convívio com os meninos, há muitos afetos”, sublinha. Como mãe, teme que os filhos não alcancem os objetivos que delinearam para o futuro. “O Leandro não gosta muito de estudar, mas está a tirar o curso profissional de técnico de saúde. O Bruno está a tirar o curso profissional de técnico de desenho digital 3D e quer ser arquiteto. A Vanessa ambiciona ser médica e a Jéssica insiste que será juíza. A Lara vai entrar na escola primária, no próximo ano letivo, e o João na creche”, conta, asseverando que quer dar aos filhos aquilo que nunca teve.
Apesar de não ser possível afirmar com exatidão quantas famílias numerosas (com três ou mais filhos) existem em Portugal atualmente, os últimos dados disponíveis, dos Censos de 2011, apontavam para 1.939 com 6 ou mais filhos, como a de Ana. Havia então 1.131.639 famílias sem filhos, 1.222.547 com um filho, 717.936 com dois filhos, 124.961 com três filhos, 22.349 com quatro filhos e 5.000 com cinco filhos. Se há dez anos já se verificava uma tendência de diminuição média da família, esta tem vindo a ser cada vez mais acentuada.
A título de exemplo, no final de julho, foram divulgados os resultados preliminares dos Censos 2021 pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), de acordo com os quais há 10.347.892 pessoas a viver em Portugal, menos 214 mil do que há dez anos – uma redução de 2%. Por outro lado, o país tem um dos índices sintéticos de fecundidade mais baixos da União Europeia, com 1,4 crianças por mulher em idade fértil no ano passado. Em 2013, era de 1,21, mas em 1960 era de 3,20 – o valor mais elevado registado pela Pordata. Se Portugal desceu abaixo da fasquia dos cem mil nascimentos anuais há 11 anos, tendo os valores oscilado de ano para ano, prevê-se hoje um panorama ainda mais negro: este será o terceiro ano consecutivo com quebras e, se ficarmos abaixo dos 80 mil nascimentos até ao final de dezembro, poderemos dizer que nunca nasceram tão poucas crianças em território nacional.
“O Estado não tem prestado atenção às famílias numerosas”
No entanto ainda há famílias, à semelhança de Ana, que apostam na natalidade. É o caso de Ana Cid Gonçalves, de 55 anos, mãe de cinco filhos entre os 25 e os 42 anos. A mais velha é fruto do primeiro casamento do marido – “mas criei-a como se fosse minha”, frisa a secretária-geral da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas (APFN), criada em 1999 com o objetivo primordial de “representar e defender os interesses das famílias com três ou mais filhos e promover o seu apoio mútuo”.
Em 2011, quatro em cada 100 famílias portuguesas eram numerosas, mas hoje esse valor é incerto. “Não sabemos, mas temos muitos mais associados. Neste momento, contamos com 19 mil e 331 sócios ativos, correspondentes a 9.887 famílias”, avança, começando por salientar que “as famílias numerosas são prejudicadas em muitos âmbitos porque não se tem em conta o consumo per capita. Temos tentado alterar esta situação, nomeadamente, ao nível da tarifa da água e do IMI familiar. Queremos que sejam tratados com equidade e justiça, pois têm dificuldade em todos os parâmetros”, explica. “A APFN tem lutado para que os municípios portugueses criem tarifários familiares da água, que avaliem o consumo per capita, uma vez que os tarifários base estão construídos para penalizar os consumos excessivos, através de um aumento por escalões à medida que o consumo da casa aumenta, sem terem em conta a dimensão da família”, acrescenta, rematando que “um copo de água custa mais na casa de uma família numerosa do que noutra qualquer”.
Por outro lado, “ao nível do IRS, há uma necessidade de alterar a situação atual. O que acontece é que têm um conjunto de despesas elevado e é preciso ter isso em conta. O nível de rendimentos que alimenta e veste uma pessoa não é o mesmo que alimenta e veste cinco ou mais pessoas. O Estado não tem prestado atenção às famílias numerosas”, acusa. Ana Cid Gonçalves lembra que “quantos mais rendimentos uma pessoa tem, mais pode contribuir”, mas “aquilo que acontece é que depende de quantas pessoas sustenta. Se pensarmos num casal de professores no primeiro escalão da carreira que passa a ter de rendimento ilíquido mais cem euros e, portanto, decidem ter um filho, ninguém pode dizer que têm maior capacidade financeira porque o filho até absorve mais do que esses 100 euros”.
“Mas a verdade é que vão pagar mais impostos e com a eletricidade acontece a mesma coisa: há necessidade de mais potência, paga-se mais por kilowatt”, diz. E lembra que em outubro do ano passado foi anunciado que as famílias numerosas que quisessem beneficiar do IVA a 13% na eletricidade para os primeiros 150 kWh consumidos em cada mês, a partir de março de 2021, tiveram de ser elas próprias a tomar a iniciativa de pedir esse benefício adicional – até quatro pessoas, só teriam o imposto reduzido para 100 kWh – às suas fornecedoras de energia elétrica. À sua vez, os agregados familiares constituídos por cinco ou mais pessoas somente tiveram acesso a esta majoração a partir de 1 de março e para isso o pedido teve de ser feito por escrito às comercializadoras e com base num requerimento-modelo divulgado pelo Executivo.
“Temos muitas vertentes de ação. Uma mais política, mas não partidária, no sentido de mudar as políticas aos níveis local e regional, pois avaliamos e premiamos os municípios com maior conjunto de boas práticas adotados e trabalhamos com todos os ministérios”, esclarece a dirigente da associação que acompanha uma família com 17 filhos, mas 72% das associadas têm três. Por outro lado, qualquer associado pode contactar os serviços jurídicos da APFN para “qualquer questão pontual relacionada com a resolução ou minimização de situações concretas e urgentes de famílias numerosas e defesa dos seus legítimos interesses”.
Além disso, por meio do projeto Famílias em Rede, a APFN promove “uma rede de apoio entre famílias para abordar temas atuais e outros desafios que fazem parte integrante das suas rotinas”, fomentando debates sobre temáticas como a da gestão do orçamento familiar. Como só subsistem por meio das quotas dos associados, não têm meios financeiros para auxiliar as famílias necessitadas. Por isso, no passado mês de março, a associação criou uma plataforma online para promover a ajuda direta entre as famílias numerosas associadas, servindo esta “como plataforma de partilha de informação entre a família que precisa de ajuda e a família que quer ajudar”. Para as famílias necessitadas, o SOS Famílias disponibiliza categorias, onde os associados da APFN podem integrar os seus pedidos, tais como: Apoio Alimentar e Bens Essenciais; Apoio de Tempos Livres; Desemprego; Doação de Outros Serviços; Telescola e Teletrabalho. “Desde o início da pandemia, temos famílias a passar mal com o desemprego e a redução de rendimentos. Acaba por haver um empobrecimento muito agudo agravado pela covid-19”, conclui.
Apoiar a natalidade, combater o êxodo rural
Para que mais famílias decidam ter um filho ou não apenas um, António Fernandes de Matos, professor auxiliar no Departamento de Gestão e Economia da Universidade da Beira Interior, que leciona unidades curriculares como Economia Regional e Urbana e Economia Social e Solidária, defende que devia ser criado um subsídio mensal por cada filho em função do rendimento familiar.
“Não descartaria a hipótese deste apoio ser para todo o país no sentido em que esta baixa de natalidade, com a consequente diminuição da população, é um problema nacional com nuances distintas, mas é nacional. Penso é que podia haver uma majoração para os territórios de baixa densidade populacional”, defende ao i o também investigador em desenvolvimento regional. A iniciativa teria dois objetivos: apoiar a natalidade, e atenuar ou até inverter a sua redução, e combater o êxodo rural.
“Creio que não faria sentido que esse eventual apoio fosse exatamente igual para todos. Há famílias que vivem com baixas remunerações e terão sempre mais dificuldade em ter mais filhos. Podíamos pensar num escalonamento. Por exemplo, à semelhança daquele que existe com o abono de família”, sublinha, não sendo apologista dos incentivos à natalidade pontuais.
Entre os municípios com medidas de incentivo à natalidade está Alcoutim, no distrito de Faro, que ocupou nos últimos 20 anos o ranking dos cinco concelhos com menos nascimentos em Portugal, com 16 nados-vivos em 2001 e 11 em 2020. Para contrariar a tendência, decidiu atribuir 5.000 euros por cada bebé que nasça no concelho. O município de Almeida, no distrito da Guarda, que registou o maior decréscimo do país no número de nascimentos em 2020 em relação a 2001, ao passar de 64 para 18 recém-nascidos (uma redução de -71,8%), anunciou a atribuição de 1.000 euros para o primeiro filho e de 1.250 euros para o segundo filho e seguintes.
“Quando uma Câmara Municipal dá um subsídio pelo nascimento de uma criança, tal funciona como um ‘penso rápido’ porque há muitas mais despesas posteriormente. As autarquias deviam repensar esta situação e podiam dar, por exemplo, uma contribuição mensal ou semestral para que este auxílio fosse continuado e não isolado. Até porque nenhuma política económica funciona isoladamente”, afirma Fernandes de Matos. Para o docente universitário, as autarquias têm de estar atentas a este problema e “mostrar que fazem o seu trabalho apoiando regularmente as famílias”.
Para isso, propõe que “acompanhem e ajudem as crianças desde o nascimento até ao final da formação académica”, valorizando um “bouquet” de medidas que potenciam o efeito umas das outras, essencialmente no Interior do país, como a criação de uma rede pública de creches e jardins de infância, a melhoria dos transportes públicos, o reforço da rede de cuidados primários. “A natalidade não se resolve apenas com um subsídio, mas sim com os restantes serviços de apoio à população”, finaliza.
Entre a decisão de não ter filhos e a luta contra a infertilidade
“A minha mãe diz que digo que não gosto de lavar loiça, quero viajar muito e não quero ser mãe desde os três anos. O meu relógio biológico está avariado ou nunca deu horas”, admite, em tom jocoso, Ana Pacheco, de 42 anos, que durante 12 foi emigrante na Holanda. “Fui casada com um muçulmano. Ele tinha dois filhos do primeiro casamento. Num casamento muçulmano, há um pré-acordo antes de tudo ser feito e eu sempre disse que nunca queria ter filhos. Nunca foi um problema entre nós. Se por acaso fosse um problema, sabia que o relacionamento não resultaria. Jamais diria ‘vou ter filhos porque um homem quer que eu os tenha’”, conta a mulher, que nutre uma paixão enorme pelas sobrinhas e até toma conta daquela que tem apenas 10 meses, mas não se imagina a ter esta responsabilidade constantemente.
“A sociedade não está preparada para uma mulher que não quer ter filhos. Residi num país onde a natalidade é impulsionada e o Estado dá imenso dinheiro para se ter filhos. Perguntavam-me se não queria ser mãe, tendo o dinheiro na mão. Fiz um curso, em Portugal, antes de emigrar e diziam-me: ‘Há mulheres que são inférteis’. Eu respondia: ‘Lamento muito, mas eu não vou ter só porque há quem não possa’”, declara sem papas na língua a antiga chefe de uma equipa de housekeeping do Hotel Hilton. “Tenho fibromialgia e fadiga crónica e preciso do meu tempo para acordar, ganhar baterias e tenho perfeita noção de que estaria mal com filhos”.
“Olham para mim como se fosse uma aberração, mas aquilo que os outros pensam não me afeta de maneira alguma. Tenho uma personalidade forte e sou de ideias fixas. Quando passeio com as minhas sobrinhas, perguntam se são minhas filhas. Digo: ‘Graças a Deus não são porque não tive filhos’”, assume a viúva. E vai ao ponto de dizer que “se alguma vez tivesse engravidado, não teria tido o bebé”.
Por ter consciência de que, tal como Ana, muitas mulheres não querem ser mães, Maria João Valente Rosa, professora assistente no Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa afirma que “se as pessoas não querem ter filhos, são livres, mas temos de pensar naquelas que querem. A solução para o envelhecimento não é a natalidade: podemos envelhecer um bocadinho menos. Mas, mesmo que a natalidade aumentasse, amanhã estaríamos mais envelhecidos do que hoje”.
Segundo dados do Instituto Nacional Ricardo Jorge, nasceram em Portugal, no primeiro semestre do ano, cerca de 37.700 bebés, uma redução de mais de 4.400 relativamente ao período homólogo. É o valor mais baixo desde 1989. “Não me surpreende”, diz Valente Rosa, garantindo que “este valor é muito baixo e precisa de ser enquadrado”, na medida em que “estes bebés foram concebidos em plena pandemia, ainda em 2020”. “Muitas das vezes, pensamos que é hoje que a decisão foi tomada, mas foi no ano passado. Há aqui uma relação que eu posso estabelecer entre a decisão de ter um filho e as circunstâncias. E, no fundo, tem a ver com um projeto para o futuro. Quando pensamos nisso, temos de ter algumas garantias. No período pandémico, o futuro não podia ser mais incerto”, relembra a doutorada em Sociologia, na especialidade de Demografia, e também autora e coautora de vários artigos e livros sobre a sociedade portuguesa contemporânea, designadamente sobre envelhecimento demográfico.
“Fatores como a insegurança financeira e laboral acentuaram-se e juntaram-se aos medos relativos à saúde. No final de 2021, podemos bater o recorde mínimo histórico de nascimentos em Portugal. Sempre supondo que os filhos não acontecem por acaso e não há gravidezes não planeadas, ou quase nenhumas, a covid-19 pode levar a um novo adiamento do projeto de parentalidade”, explicita a autora de obras como Um Tempo Sem Idades e O Envelhecimento da Sociedade Portuguesa. À medida que se avança na idade, acrescenta, a fertilidade vai diminuindo e, relacionando-se este fator aos obstáculos gerados pelo novo coronavírus, “podemos estar a falar de crianças que podiam ter nascido se o mesmo não existisse”.
Entre 2013 e 2019, o número médio de filhos por casal desceu de 1,03 para 0,86. O Inquérito à Fecundidade, veiculado no início de dezembro do ano passado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e referente a 2019, concluiu que neste período aumentou a percentagem da população em idade fértil que não tem filhos. “Em 2019, 42,2% das mulheres dos 18 aos 49 anos e 53,9% dos homens dos 18 aos 54 anos não tinham filhos. Em 2013 aquelas percentagens eram bastante menores: 35,3% e 41,5%, respetivamente”, observou o INE. “Em 2019, 93,4% das mulheres e 97,6% dos homens do escalão etário mais jovem (dos 18 aos 29 anos) não tinham filhos e mais de metade (54,6%) dos homens dos 30 aos 39 anos encontravam-se na mesma situação”.
O “calvário” de tentar engravidar
Ao contrário de Ana, que não é mãe por opção, há casais que não podem ser pais por motivos que escapam ao seu controlo. É o caso de Carina Baltazar, de 37 anos. “Decidi em 2014, após quatro anos de namoro com o meu agora marido, sermos pais e, por não engravidar naturalmente, e sem usar métodos contracetivos, dirigi-me à minha médica de família para uma consulta de planeamento familiar. Após vários exames, reencaminhou-me para o Hospital do Barreiro para ser seguida no apoio à fertilidade, em abril de 2015”. Começou aí aquele que designa como ”calvário”, pois teve de lidar com uma médica “pouco empática, que não tinha interesse em conhecer a vertente humana” e também não a “informava convenientemente”. Entre abril de 2015 e setembro de 2016, Carina fez ciclos de Dufine, “medicamento este que contém o principio ativo citrato de clomifeno que é um agente não esteroide que pode induzir a ovulação em casos de anovulação, ou seja, quando a mulher não consegue ovular”. A mulher teve esperança até fazer um exame que provou que tinha um bloqueio no tubo proximal da trompa direita.
“No início de fevereiro de 2017, fui para as urgências do Hospital do Barreiro com uma barriga enorme, inchadíssima, pois estava em hiperestimulação ovárica, e tinha muitas dores. As dores eram surreais, quanto mais querer ter relações com o meu marido com as dores que eu tinha… E foi nesse mesmo mês que a médica lá se decidiu a reencaminhar-me para o Centro de Infertilidade e Reprodução Medicamente Assistida”. A 4 de janeiro de 2018, Carina teve de ser submetida a uma salpingectomia, isto é, a remoção das trompas de falópio. Entre o final de 2018 e o início de 2019, aquela que já trabalhou como técnica de parafarmácia e hoje é esteticista, começou os tratamentos para fazer a fertilização in vitro. Hoje em dia, com alguns milhares de euros gastos na tentativa de ser mãe, já não sabe o que fazer para não desistir do sonho. “O facto de andar há anos nisto, ter quase passado por um caso de negligência médica no hospital do Barreiro, o deita e levanta da marquesa para os exames, o ver a cara de outras utentes que andam nisto há tantos ou mais anos do que eu, em puro sofrimento e de querer ter um filho e não conseguir fizeram-me cair numa depressão, da qual só agora começo aos poucos a conseguir sair”, assume. “Já pensei na adoção, mas a burocracia e os anos que levarei a adotar a criança terminam com a minha esperança”.
Infelizmente, o “calvário” de Carina está longe de ser caso único. De acordo com a Associação Portuguesa de Infertilidade, estimava-se que, em Portugal, em 2019, 15 a 20% dos casais em idade reprodutiva (cerca de 300 mil) sofressem de infertilidade. Apesar disto, a lista de espera para primeira consulta de apoio à fertilidade no Serviço Nacional de Saúde caiu 16,2% entre março e setembro de 2020 devido à diminuição de procura por causa da pandemia de covid-19. “O valor observado na lista de espera para primeira consulta era no final de março de 2020 de 2.940 beneficiárias e, em final de setembro de 2020, era de 2.465”, avançou o secretário de Estado Adjunto e da Saúde António Lacerda Sales numa audição, por videoconferência, na Comissão de Saúde para discussão sobre os atrasos no acesso aos tratamentos de procriação medicamente assistida (PMA) e as medidas para os recuperar, em abril deste ano.
“Acho que é um bom país para os meus filhos crescerem”
Luisa Magnano veio para Portugal em 2004, para uma “aldeiazinha perdida no meio do nada” e ficou com o ”bicho” de ficar mais tempo. Formada em arte e produção de eventos, tem 41 anos e é casada com um português de 43. Juntos, tiveram o primeiro filho no ano passado, no mês de fevereiro, e esperam o segundo. “Nos países europeus, há condições para ter filhos e eu estou absolutamente satisfeita com o Serviço Nacional de Saúde e tudo aquilo que me foi proporcionado. Fui sempre acompanhada no público por escolha. Seriamente, nunca pensei em voltar para Itália”, garante a italiana natural de Turim. “Acho que Portugal é um bom país para os meus filhos crescerem. Contudo, estamos a pensar sair de Lisboa porque queremos procurar um sítio mais sossegado. Não penso em ter mais filhos, achamos que dois é o ideal”. Natural de um país em que o índice de fecundidade, em 2018, era de 1.29 filhos por mulher, ainda mais reduzido do que os 1.42 portugueses, Luisa Magnano é um exemplo do impacto que os imigrantes têm na natalidade portuguesa.
“Normalmente, há uma motivação económica e isto significa que a grande parte está nas idades ativas, as mais férteis. Acabam por ter aqui os filhos. Temos uma situação em que os estrangeiros contribuem com cerca de 13% para o total de nascimentos. Se não existissem, a taxa de natalidade seria muito mais baixa do que tem sido”, aponta Maria João Valente Rosa. A título de exemplo, em 2018, nasceram em Portugal cerca de 87 mil crianças e, destas, mais de 9 mil eram filhas de mães estrangeiras.
Tal como Luisa, também Rossana Siqueira, de 37 anos, decidiu ser mãe em Portugal, juntamente com o companheiro português João Esteves. “Desde o início da pandemia, as coisas ficaram complicadas com os trabalhos escassos e os pagamentos reduzidos. Fiquei sem emprego em março de 2020 e pouco depois descobri que estava grávida. Graças a Deus, tivemos apoio da família”, agradece a mulher natural do Rio de Janeiro, que veio do país onde o índice de fecundidade, há três anos, se situava nos 1.73 filhos por mulher. “Pela minha idade e por ter sofrido muito para ter a Aurora, não sei se estou preparada emocional e fisicamente para ter mais filhos, mas acho que Portugal é um bom lugar”.
Segundo o Country Economy, em 2018, a taxa de fertilidade do México era de 2,13 (2,1 em 2020). Para Gonzalo Ramírez Quitl, médico e psicólogo mexicano de 29 anos chegado a Portugal no início do ano, “a pobreza e a falta de educação sexual” são os principais motivos pelos quais o índice de fecundidade do seu país de origem é mais elevado do que o português. Além disso, em 2020, ”o índice de pobreza era de 43,9% de acordo com o Conselho de Avaliação das Políticas de Desenvolvimento Social”, com a agravante de que a “desinformação que existe sobre métodos contracetivos e o acesso a serviços básicos de saúde em áreas vulneráveis das cidades” acentuam a fragilidade do género feminino. “A desinformação é maior nos homens em estratos sociais baixos. Por exemplo, pelo menos no hospital onde estagiei, quando falávamos na pílula, nos preservativos, etc., muitas mulheres diziam: ‘O meu marido não quer, ele diz que vou ser menos mulher, que vai sentir quando fizermos sexo e que o vai incomodar’”, revela o profissional de saúde formado pela Universidad Popular Autónoma del Estado de Puebla e pela Fundación Universidad de las Américas entre os anos de 2011 e 2020.
“As mulheres mais vulneráveis são as adolescentes. Com 16 ou 17 anos têm maridos mais velhos que as controlam”, lastima o jovem que passou pela especialidade de Ginecologia-Obstetrícia em 2018 e não a descarta como opção para o futuro. Contudo, espera conseguir enveredar pela Psiquiatria e está a tentar obter o reconhecimento da sua qualificação académica por uma universidade nacional para realizar o internato médico e ser oficialmente reconhecido profissionalmente pela Ordem dos Médicos.
Segundo a AFP, em janeiro deste ano, “a população do México aumentou em cerca de 14 mil pessoas na última década para chegar a um total de 126 mil, segundo resultado do censo nacional, realizado em março passado”. Gonzalo, que atendeu duas pacientes grávidas com apenas 13 anos, ressalva que o Instituto Nacional de Estadística y Geografía (INEGI), organismo equivalente ao INE, indica que deve ser prestada atenção especial à população de mulheres entre os 15 e os 19 anos, uma vez que a fecundidade dos adolescentes tem impactado o aumento da população. “Entre 2009 e 2014, a fecundidade adolescente passou de 69,2 para 77,0 nascimentos por 1.000 mulheres, enquanto em 2018 essa população registava 70,6 nascimentos” e, para o médico e psicólogo, “tal deve-se à falta de interesse e de informação em relação à sexualidade”.
“Faro, nas últimas duas décadas ocupou o ranking dos cinco concelhos com menos nascimentos em Portugal, com 16 nados-vivos em 2001 e 11 em 2020. No México, numa noite, ajudava sete ou oito bebés a nascer”, compara o rapaz que quer estar “onde tudo acontece e pode ajudar-se o próximo” e, por isso, sugere que Portugal deve implementar “maiores incentivos económicos, a par de melhorias nas políticas atuais como o pagamento de impostos sobre o número de filhos, licenças de maternidade e paternidade, bem como investir nas melhorias das políticas laborais”, pois “não é uma questão de género, o bebé tem dois pais” e “mais do que um incentivo para engravidar, tem de haver um incentivo para o cuidado pós-natal”.