“O cofre do banco contém apenas dinheiro, frustra-se quem pensar que lá encontrará riqueza”, escreveu Carlos Drummond de Andrade, em 1990. Mas nem todos partilharão dessa visão do poeta brasileiro.
Considerada “a família dos reis sem coroa da Itália”, muitas vezes comparados aos Kennedy, os Agnelli, uma das dinastias industriais mais poderosas do mundo, têm desde 2003 (ano da morte do seu “patriarca”) registado no seu seio inúmeros desacordos e desentendimentos. Depois do desaparecimento de Gianni e, em 2019, da matriarca, Marella Caracciolo, foram desenterrados fantasmas e ambições desmedidas. Agora, após alguns anos de “tréguas’’, que mantiveram a “tranquilidade” nos últimos tempos, voltou a “explodir outra bomba”. Desta vez com a sua filha, Margherita, no epicentro.
O ARREPENDIMENTO DE MARGHERITA A filha do empresário Gianni Agnelli (1921-2003), conhecido por “L’Avvocato”, contestou o acordo, por si assinado em 2004, no qual renunciava às ações da holding (forma de sociedade criada com o objetivo de administrar um grupo de empresas) da família em troca de uma indemnização de 1.300 milhões de euros, acordo esse que abriu caminho para o seu filho, John Elkann, assumir as rédeas das empresas da família. Nesse ano, a situação financeira do grupo Agnelli era muito diferente da atual. Umberto Agnelli, que após a morte de seu irmão Gianni assumiu a liderança do grupo Fiat, acabou também ele por adoecer e falecer pouco depois. Essas duas perdas agravaram a desorganização das contas da empresa que perdurava desde 2001 (ano em que começou a perder a participação de mercado, tendo acumulado perdas orçamentárias de mais de sete mil milhões de euros). Na altura, a “empresa-mãe” chamava-se Ifi (que através de várias transações societárias passou a Exor) e, em 2001-2002, atingiu níveis de endividamento colossais: as dívidas financeiras ultrapassaram os 30 mil milhões de euros e, incluindo as operacionais, as dívidas totais de 2002 ultrapassaram os 68 mil milhões. Soavam então os alarmes sobre o risco de falência do grupo.
Após os acordos assinados em Genebra, em 2004, Margherita foi substituída pelos irmãos Elkann, encabeçados por John. Todos os membros contribuíram para levantar o capital necessário para o relançamento da Fiat: o aumento de 250 milhões de euros, realizado em 2004, propiciou uma série de operações de bolsa que permitiram produzir veículos novos e uma receita aos cofres da empresa de 1,8 mil milhões de euros. Os resultados não tardaram a aparecer e, um ano depois, o grupo Fiat já obtinha um lucro líquido de 1,3 mil milhões de euros, e de 1,1 mil milhões em 2006.
Agora, Agnelli acredita que a soma milionária que recebeu, quando assinou o pacto, não corresponde ao valor da Dicembre, empresa familiar que controla o Grupo Exor (avaliada em 105 milhões de euros), que hoje detém 14,4% da gigante Stellantis (no qual a Fiat está integrada) e 22,9% da Ferrari, além do clube de futebol Juventus ou do grupo editorial Gedi, dono de jornais como o La Repubblica. Por esta razão, contestou o contrato hereditário assinado anteriormente na Suíça, defendendo que aquilo que recebeu “não foi o suficiente”. Quando Margherita renunciou, as ações acabaram por passar da sua mãe Marella, viúva de Gianni Agnelli, para o seu primogénito, John Elkann, nascido do seu casamento com Alain Elkann e que, atualmente, é presidente e CEO da Exor.
UM LUTO TURBULENTO “O número é atualmente insuficiente e muito baixo se tivermos em conta o valor que as ações alcançaram hoje”, queixa-se Margherita. Mas o seu arrependimento já vem tarde. “A Margherita nunca aceitou o facto de ter cometido um erro ao assinar aquele acordo que contemplava a opção de o contestar apenas no prazo de um ano”, afirmou a jornalista italiana Gigi Moncalvo, uma das melhores conhecedoras da família Agnelli, ao jornal espanhol El País. “Ela não se pode arrepender 18 anos depois só porque a situação financeira do grupo está muito melhor ”.
Segundo o jornal italiano La Repubblica, já em maio de 2007 Margherita havia tentado reabrir o caso, com o intuito de questionar os acordos de Genebra. Entrou então num processo contra a sua mãe Marella e os colaboradores históricos do seu pai, Franzo Grande Stevens e Gianluigi Gabetti. Como observam fontes próximas da Exor, “o processo foi alimentado por dezenas de consultores e causou grande alvoroço”, tanto na Itália como além fronteiras. Porém, os resultados não foram os esperados por Margherita e a ação judicial revelou-se improcedente: foi rejeitada por três juízes italianos até à sentença definitiva, emitida pelo Supremo Tribunal Federal, em 2015.
Para a equipa jurídica de Exor, esta nova tentativa de alteração do pacto “é manifestamente infundada e totalmente contrária à vontade dos pais e aos acordos outrora estabelecidos”. “Estes pretextos temerários, aos quais resistirá com firmeza e em todos os quartéis-generais, não são meios adequados para questionar a maioria absoluta de John Elkann na [sociedade] Dicembre”, concluem os advogados da família, em declarações ao La Repubblica.
AS RAZÕES DO AFASTAMENTO DA FAMÍLIA Margherita tem mais cinco filhos com seu segundo marido, o conde russo Serge de Pahlen, com quem mora na Suíça e cujo sobrenome adotou após o casamento. Especula-se que tenha sido essa sua “extensa descendência” que deu origem à discórdia familiar, pois para Margherita é difícil de realizar que John nunca tenha levado em consideração todos os seus outros irmãos e que apenas os Elkann ocupem cargos de relevância nas empresas familiares. Por outro lado, a tensão familiar está também relacionada, em parte, com as profundas desavenças entre Margherita e os assessores económicos do seu pai – que atualmente trabalham com o seu filho – e a quem ela acusa de esconder “a existência de bens que não foram declarados no momento da sua morte”.
Moncalvo, autor e especialista de várias biografias não autorizadas de reis da Itália, considera também que o dinheiro está na base da guerra familiar. “Margherita continua a insistir para que se termine o acordo, porque considera que a sua mãe tentou favorecer uma parte dos netos e não todos. Ela sempre desconfiou que a mãe roubou o dinheiro que lhe pertencia, depois da morte do seu pai, mas essa teoria tem que ser comprovada”, defendeu em declarações ao El País. E acrescenta: “É uma família desprovida de sentimentos, o que se demonstra pelo facto de uma avó ser capaz de deixar uma herança a apenas três dos netos, esquecendo-se dos outros cinco. São problemas que vêm de tensões mantidas por muito tempo”.
UMA PORTUGUESA NO CLÃ Neto de Gianni Agnelli e conhecido pela sua inteligência e visão empresarial, Lapo Edovard Elkann tem uma vida rica em controvérsias. Filho de Margherita e do escritor Alain Elkann e irmão mais novo de John, Lapo tornou-se, em 2003, diretor de marketing da Fiat. Dois anos depois, após ter sido notícia pelo seu sério vício em cocaína e heroína, criou a Italia Independent, uma marca de roupa e acessórios e, em 2007, fundou a agência de comunicação e publicidade Independent Ideas. Apaixonado por moda e desportos radicais, tem estado ligado aos mais variados escândalos: mulheres, drogas e chegou a ser preso por simulação do próprio rapto. Em 2005, Lapo foi encontrado nu e inconsciente no apartamento de Donato Broco, uma prostituta transexual de 53 anos conhecida como Patrizia. Foi levado para o hospital onde ficou em coma durante três dias e, por isso, passou a ser investigado pelo uso de cocaína e por solicitação de prostituição. Alguns anos depois, em 2016, na cidade de Nova Iorque, onde nasceu, Elkann foi preso por fazer um relatório policial falso alegando ter sido sequestrado, depois de entrar em contacto com a família, afirmando necessitar de um resgate de dez mil dólares.
Os Agnelli têm um longo historial de ligação a Portugal – o patriarca Gianni gostava de passar férias na Quinta do Lago e de almoçar no Gigi, assim como o seu sobrinho Andrea, atual presidente da Juventus.
Recentemente Lapo apaixonou-se pela ex-piloto de rally portuguesa, Joana Lemos, de 48 anos, de quem está noivo. O casal conheceu-se em Portugal, em 2020, num jantar organizado pelos tios do milionário, passando quatro meses de confinamento sem se afastar. Em comum, Lapo e Joana Lemos possuem a paixão pela velocidade e pelo automobilismo: “Aos 43 anos quero construir o futuro e uma família ainda maior porque vejo na Joana a mulher, a mãe e a pessoa com quem quero passar a minha vida”, admitiu Elkann, em entrevista à revista italiana Chi.