“Se fosse a ti, desistia do curso e virava stripper” foi aquilo que um dos professores de Sara (nome fictício) lhe disse na primeira aula de uma disciplina de um Curso Técnico Superior Profissional, isto é, um ciclo de estudos do Ensino Superior com duração de dois anos. “Ao longo das aulas foi-me dando nalgadas, e a outra colega, até que não aguentei mais”, explica, volvidos dois anos do sucedido. “Ó Sara, respeitinho”, terá dito o docente quando foi confrontado pela aluna, tendo esta respondido “Se quer respeito, dê-se ao respeito”. A partir daí, nunca mais houve qualquer interação entre ambos.
A jovem de 22 anos, que não quer revelar a identidade ou o nome da instituição por medo de represálias, narra a sua história ao i exatamente um mês depois de uma estudante de Direito da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP) ter sido impedida de realizar um exame devido à indumentária que apresentava. O episódio ocorreu quando o professor Paulo Pulido Adragão recusou entregar o enunciado da prova à jovem por esta estar “muito destapada” e pediu-lhe que vestisse um casaco, tendo a aluna conseguido realizar o exame, momentos depois, graças à intervenção de um colega.
No entanto, o caso de Sara é distinto e insere-se na categoria de assédio sexual. Já em 2019, na tese de mestrado O assédio sexual no contexto universitário português: a experiência de ser assediado dentro da faculdade, Carolina Melo, citando vários autores, explicava que o assédio sexual em contexto Universitário é definido como o “uso de autoridade para enfatizar a sexualidade ou a identidade sexual de um estudante, de uma maneira na qual, impede ou prejudica o estudante de desfrutar os benefícios educacionais, climáticos ou oportunidades”, sendo que este comportamento indesejado “contribui para a diminuição da sensação do sentimento de segurança dentro do campus universitário”.
Segundo a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), estes comportamentos podem ser “de caráter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”. O mesmo enquadra-se no caso de Madalena (nome fictício), que também não se sente suficientemente confortável para revelar a identidade e muito menos o nome do alegado agressor ou da instituição em questão.
“O meu orientador da tese de mestrado estava sempre a ser pouco profissional comigo. Queria ver-me em casa dele, que nos encontrássemos em restaurantes e bares. Ligava-me à noite, enviava-me mensagens privadas no Facebook… Senti-me tão desconfortável que acabei por nunca terminar a tese nem defendê-la”, desabafa a rapariga. “Tinha medo de ser prejudicada uma vez que resisti a todos os avanços por parte do meu professor. O meu mestrado tinha muitos rapazes e os professores eram quase todos homens também”.
O testemunho de Madalena vai ao encontro das conclusões deCarolina Melo que foram veiculadas no trabalho final apresentado ao Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA). “Nos estudos realizados, ao longo dos últimos anos, tem-se verificado que as estudantes universitárias reportam ser assediadas por professores, colegas e outros funcionários que fazem parte do corpo estudantil. Sendo que, algumas estudantes, reportam também ser assediadas durante os estágios académicos, pelos seus superiores e colegas”.
O estranho caso do curso de Enfermagem Depois de uma aluna ter explicado ao i que foi obrigada a usar adesivo para tapar as tatuagens em aulas práticas laboratoriais da licenciatura em Enfermagem, um aluno do mesmo curso, mas de uma instituição de ensino distinta, partilhou que foi discriminado devido ao cabelo, às tatuagens e à maneira de se vestir.
“Alguns professores já me disseram que o meu corte de cabelo ‘não era adequado à profissão’ ou que não é um ‘corte masculino profissional’ e que deveria cortá-lo ‘à rapaz’ para dar uma boa imagem”, conta Rodrigo (nome fictício), de 21 anos, jovem cujo professor ameaçou expulsá-lo do curso devido a duas pequenas tatuagens recorrendo à justificação de que transmitiria uma má imagem aos utentes.
“Disse que, da mesma forma que tenho de respeitar os meus utentes e as suas características, cabe-lhes a eles fazerem o mesmo. E que se, por acaso, não se sentirem à vontade para receberem cuidados meus – algo que nunca aconteceu até hoje –, têm o direito, enquanto utentes, de recusar os cuidados e receberem os de outro colega”, narra, assegurando que é um “ser individual” com gostos, maneiras de pensar e valores e não os deixará de parte “porque um professor acha que ‘não é ético ter tatuagens’”. “O assunto ficou por aí encerrado porque os meus professores conhecem-me bem e sabem que não me calo quando sei daquilo que falo”, declara.
O mesmo não aconteceu com a indumentária, pois após ter sido chamado “excêntrico”, “berrante” e “nada formal ou pudico”, Rodrigo deparou com uma professora que defende que todos os estudantes devem vestir-se de modo “formal”, uma vez que têm de se “preparar para o futuro”. “Num dia em que fui com umas calças rotas nos joelhos, essa mesma professora perguntou se ‘tinha ido prestar serviços para estar com os joelhos rotos’”. E o pesadelo não ficou por aqui, na medida em que, estando a estagiar num hospital, o jovem viu-lhe ser atribuída exatamente esta docente como orientadora. “O mais frustrante nesta situação toda é o facto de que, enquanto estudante, será sempre a minha palavra contra a de um professor e ele terá sempre razão. São eles que dão as notas. É uma sensação de impotência”. O futuro enfermeiro sofreu as consequências ao nível da classificação final do estágio, experiência que terminou há apenas alguns dias. “A enfermeira que esteve comigo deu-me 17 valores e a professora não quis concordar com essa nota porque não gosta de mim”.
“Tenho de me manter fiel à pessoa que sou. Se este sou eu e nada me impede de ser assim porque não estou a magoar ninguém por usar aquilo que quero e por ter a aparência que tenho, não vou mudar nada”, garante, adiantando que “não nos podemos deixar abater assim tão facilmente”. “Não devo nada a ninguém e não tenho que mudar a minha maneira de ser ou de vestir porque uma professora assim o entende”. Curiosamente, Carolina Melo cita um estudo de 2012, cujo título é “I´m too used to it”: A Longitudinal Qualitative Study Of Third Year Female Medical Student´s Experiences Of Gendered Encounters in Medical Education, através do qual os autores concluíram, por meio de uma investigação feita com estudantes de Medicina que se encontravam a estagiar, que várias raparigas “afirmaram, serem assediadas, não só por pacientes do sexo masculino durante as consultas, mas também, por membros da sua equipa, que faziam comentários sexuais, lhes tocavam de forma inapropriada e faziam solicitações ao longo do ano” e os casos não foram reportados por medo de represálias.
“Ele faz coisas do género constantemente com várias alunas” No primeiro ano do curso de Medicina Veterinária, Catarina (nome fictício) experienciou o desconforto em contexto académico pela primeira vez. “Estava a entrar numa sala de aula, com uma blusa com costas baixas, e um professor disse-me ‘Posso tirar uma foto para enviar lá para fora? Vão achar interessante’”, referindo-se ao pai do ex-namorado da rapariga. “Senti-me tão desconfortável que soltei um riso nervoso e entrei na sala”, diz, assinalando que o homem não era seu docente à época, mas tinham ligações em comum, e viria a dar-lhe aulas no semestre seguinte e nos dois do segundo ano do ciclo de estudos. “Essa interação nunca me saiu da cabeça”, declara, revelando que “infelizmente é algo que acontece diariamente e não só com este professor”. “Já apontou um ponteiro de laser ao decote de uma amiga minha durante uma aula quando estava a falar das glândulas mamárias das vacas”. Entretanto, se Catarina olhava para o telemóvel no decorrer das aulas, o professor fazia “alguns comentários parvos”, mas aquilo que a preocupa mais é o facto de que “faz coisas do género constantemente com várias alunas”.
“Tenho conhecimento de casos em que alguns docentes são menos tolerantes no que diz respeito à indumentária característica da praxe académica. Cá na Universidade dos Açores, tínhamos apenas uma quinzena de praxe no início do ano letivo e depois o momento da semana académica, em que os caloiros utilizavam alguns disfarces e adereços que nem sempre eram bem-vindos nas aulas”, começa por contar Daniela Sofia Faria, presidente da direção da Associação Académica da Universidade dos Açores, explicando que, nesses casos, “os estudantes eram apenas chamados à atenção pelos docentes, para que tivessem o cuidado de retirar os adereços antes daquela determinada aula”.
Naquilo que diz respeito a situações de assédio e/ou racismo, a jovem de 23 anos reconhece que não tem informação acerca da ocorrência das mesmas, mas menciona que o sentimento de impunidade na classe docente “é uma realidade”. “O facto de serem os docentes a decidir ‘quem passa e quem fica para trás’ pode agravar este sentimento”, aponta, destacando que “o papel de um professor exige muita mais responsabilidade do que ensinar efetivamente sobre uma determinada matéria ou disciplina”, pois “os professores são também os nossos moldes e sensibilizá-los para este facto é um passo importante”. Por isso, na ótica da licenciada em Psicologia e mestre em Ciências Económicas e Empresariais, “uma boa estratégia seria também a promoção de formações neste âmbito por parte das Instituições de Ensino, o que contribuiria para a mudança de mentalidade”.
“Quando era menor de idade, lembro-me de que não era permitido usar calções ou saias acima do joelho na minha escola. E eu não usava, mas houve um dia em que cheguei à sala e o meu professor de Português era um bocado esquisito. Uma vez, perguntei ‘O que é bom?’ a ler um texto e ele respondeu ‘Sexo em cima da mesa do professor de Português’”, começa por esclarecer Inês Marinho, fundadora da Associação Não Partilhes, cujo objetivo primordial é “apoiar vítimas de abuso sexual on-line e consciencializar o resto”, para quem os relatos que chegaram até ao i não são surpreendentes.
“Acho que é gravíssimo acharmos que podemos comentar a roupa ou o corpo de alguém. Muito menos, um professor que é superior aos alunos em termos de hierarquia”, avança, rematando que “acaba por ser um beco sem saída”. “Se alguma coisa deste estilo me acontecesse, devia fazer queixa ao professor, mas é ele próprio que o faz. Tem de se começar a dar ações de formação tanto aos alunos como aos professores. Para os primeiros estarem mais atentos tanto como quando é com eles como com os colegas e saberem que é denunciável. E os segundos têm de se adaptar à sociedade e saberem como comportar-se”, sugere indo ao encontro da perspetiva da dirigente académica Daniela Sofia Faria. “Não sei até que ponto não é benéfico afastar estas pessoas do ensino para terem ações de formação e acompanhamento para entenderem as repercussões daquilo que fizeram. E acho que isto se aplica a todas as profissões”.
“Disse que não era racista, era só uma piada” Em outubro de 2020, várias escolas secundárias e universidades em Lisboa foram vandalizadas com mensagens de ódio racistas e xenófobas. Os ataques foram concretizados nas entradas das escolas secundárias da Portela e de Sacavém, na Escola Secundária António Damásio, nos Olivais, e ainda na Universidade Católica Portuguesa e no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). “Fora com os pretos! Por uma escola branca” era uma das frases que se lia. Apesar de este poder ser visto como um ato isolado por muitos, para Beatriz (nome fictício) é apenas o espelho da discriminação racial existente na academia.
“No primeiro dia de aulas entrei na sala, o professor olhou para mim e disse que devia desistir da cadeira porque ia ser muito difícil para mim. Era a única aluna negra da turma”, conta, recordando que, posteriormente, “durante um teste, alguém espirrou e ele reclamou do barulho. Meio a brincar, disse que queria dar um tiro a quem estava a espirrar. Perguntou se alguém tinha uma arma e ninguém respondeu. E ele questionou ‘Ninguém? Será que devia perguntar aos alunos negros?’. Ele riu e disse que não era racista, era só uma piada, mas foi o único a rir-se”.
Recorde-se que em abril de 2021 foram divulgados as propostas do Governo no âmbito do Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025. O documento, apresentado para consulta pública, está organizado em quatro princípios e dez linhas de atuação, com o objetivo de “concretizar o direito à igualdade e à não discriminação, através de uma estratégia de atuação nacional que vá para além da proibição e da punição da discriminação racial”.
Por este motivo, no Ensino Superior, o plano prevê códigos de conduta, maior representatividade entre pessoal docente e não docente ou dirigente assim como a inclusão nos planos curriculares de estratégias de educação contra o racismo e sobre a história e contribuição das pessoas afrodescendentes e ciganas. António de Sousa Pereira, presidente do Conselho de Reitores, afirmou que numa altura em que “há notícias de problemas com comunidades específicas e em que temos uma sociedade cada vez mais multicultural”, as medidas preconizadas assumem uma importância extrema.
Assediada por funcionário “Faço parte da tuna da minha faculdade e íamos de autocarro para um festival. O funcionário que estava a conduzir tentou beijar-me em frente aos meus colegas. Entrei em pânico e comecei a chorar enquanto descarregava os instrumentos. Ele estava farto de s e meter comigo e chegou a puxar-me o cabelo”, conta Rita, dando a conhecer o outro lado dos abusos que acontecem na academia: o dos funcionários. Este testemunho corrobora os dados que foram divulgados em novembro de 2019, no âmbito do estudo Violência Sexual na Academia de Lisboa: Prevalência e Perceção dos Estudantes. Este revelou que um em cada três estudantes universitários da região de Lisboa foi vítima, entre 2018 e 2019, de “violência sexual física”, mas poucos denunciaram as agressões.
O inquérito contou com a colaboração de 995 estudantes da região de Lisboa, com idades compreendidas entre os 17 e os 30 anos, e as conclusões foram claras: a esmagadora maioria (93,2%) dos alunos já foi abordado no parque de estacionamento e 40,8% sentiram medo na paragem de autocarro ou estação de metro. Apenas um quinto dos inquiridos não foi alvo, pelo menos uma vez, de comentários ou olhares provocatórios de cariz sexual. Mais de metade (72,2%) já se sentiu incomodado pela forma como olharam para si e 65,5% experienciaram, pelo menos uma vez, comentários de natureza sexual.
Na tese de mestrado, Carolina Melo destacou que, para além dos estudantes, “os funcionários das faculdades, podem ser considerados grupos vulneráveis, uma vez que, podem estar sujeitos, de uma forma constante, a contacto físico, por alguém que é seu superior hierárquico e são obrigados a lidar com estes comportamentos, da forma mais pacata possível, como se nada se tivesse passado”, sendo que “nestes casos, as pessoas que são assediadas, podem não ver outra alternativa, senão fazer, o que lhes foi exigido, pois a outra pessoa, encontra-se numa posição hierárquica superior à sua”.
No entanto, o relato de Rita mostra-nos que tanto os professores como os funcionários das instituições de Ensino Superior, muitas das vezes, se aproveitam da relação de proximidade que têm com os estudantes para levarem a cabo condutas inapropriadas. “Agora, tenho medo dele e uma sensação de enjoo sempre que o vejo na faculdade”.