“Os movimentos de massas que surgem em nome da liberdade contra uma ordem opressora também não se apercebem da liberdade individual quando começam a avançar”
Eric Hoffer, “Do Fanatismo”.
A morte de Otelo Saraiva de Carvalho, estratega do golpe militar de 25 de Abril de 1974 que derrubou uma ditadura de 48 anos e abriu o caminho para a instauração do regime democrático em Portugal, abriu um debate nas redes sociais, e não só, que me parece extremamente redutor, uma vez que se centra na sua aparente dualidade de caráter. Isto é, herói da libertação, por um lado, e, por outro lado, anos depois, dirigente de uma organização terrorista que matou mais de uma dezena de cidadãos.
Embora seja um tema importante, pela sua controvérsia e pela confirmação da mais célebre máxima de Ortega y Gasset, “o homem é o homem e a sua circunstância”, parece-me talvez mais interessante analisar o simbolismo do seu desaparecimento físico, comparando-o com o fim de uma utopia, o denominado “poder popular”.
Na verdade, Otelo nunca foi um ideólogo, sendo mesmo conhecido por alguma confusão ideológica e até por um saltitar de ideologias.
Da social-democracia para o socialismo bastou um golpe de direita, falhado em 11 de Março de 1975, e a consequente viragem à esquerda do processo revolucionário.
O homem que, numa excelente entrevista a José Carlos Vasconcelos, em 2004, por ocasião do 30.º aniversário do 25 de Abril, definia como seu ideal “um regime de democracia direta, com uma pirâmide de Poder Popular até uma Assembleia Nacional de que emergisse um governo emanado do povo”, é o mesmo que, menos de uma década depois, afirma na sua biografia, escrita por Paulo Moura, que “foi o 25 de Novembro que restituiu ao país a pureza dos ideais do 25 de Abril”, o que terá deixado arrepiados muitos dos seus ex-companheiros de estrada.
O que significou, então, o otelismo?
Tentando simplificar, terá sido a visão de um poder popular utópico, que nasceria de um movimento de massas populares e que se governaria por democracia direta. Era também a crença de que as massas populares eram omniscientes e donas de todas as virtudes.
Sabemos bem hoje a que conduziu essa utopia. E de que forma regimes totalitários governaram em nome do povo.
O mais estranho é que existam partidos em Portugal, alguns sentados à mesa do poder, que alimentem ainda essa ideia.
Percebe-se que, numa fase inicial de qualquer revolução que derrube uma ditadura, como escreveu Eric Hoffer no início dos anos 50 do século passado, as liberdades individuais também sejam elas, algumas vezes, ignoradas.
A aspiração lógica que leva à utopia do poder popular é a da igualdade. Foi em nome dela que se implantaram os regimes comunistas, sacrificando a liberdade. Na verdade, não instauraram a igualdade, longe disso, e mataram a liberdade.
O sentimento de liberdade é tanto maior quanto mais tirânico tiver sido o regime totalitário deposto.
Foi o caso do regime de ditadura em Portugal. E se, a maioria se sentiu livre, uma minoria foi submetida, em muitos casos, ao arrepio de uma legalidade que invocavam, mas que, na prática, estava extinta.
Eric Hoffer escreve: “Só quando o movimento passou a sua fase ativa e se cristalizou num padrão de instituições estáveis, a liberdade individual tem hipótese de emergir”.
Assim aconteceu no pós-25 de Abril.
Otelo foi o protagonista maior dessa fase instável. Acresce o facto, idêntico na maioria das revoluções, de os militares que derrubaram o regime em Portugal serem, na esmagadora maioria, inexperientes politicamente.
Na entrevista a José Carlos Vasconcelos, que já citei, Otelo afirma que gostava de ficar na História “como um homem que, desde a juventude, lutou por um ideal e conseguiu alcançá-lo”.
Terá morrido, no entanto, com um sentimento de frustração.
Pelo 25 de Abril, obrigado Otelo.
Jornalista