Quem atenta, com algum cuidado, na imprensa e nas televisões portuguesas – na rádio acontece menos – ficará com a ideia de que Portugal é fustigado por uma vaga de insegurança e de crime.
E, no entanto, não é isso que afirmam os diversos relatórios, nacionais e europeus, que insistem em qualificar o nosso país como um dos mais seguros da Europa e mesmo do mundo.
Ao contrário do temor dos muitos securitários que pululam, hoje, nos mais diversas instituições e setores da nossa sociedade, verificou-se que nem a libertação antecipada de alguns presos por causa da pandemia fez inverter tal realidade.
Uma imagem impressiva de insegurança e medo é, todavia, permanentemente difundida aos portugueses pelos, ou através, dos media nacionais.
Tal ideia de insegurança é completada, depois, por discussões públicas, mais ou menos teóricas, mais ou menos impressivas, apenas, sobre a necessidade de se reforçarem os instrumentos de investigação criminal.
A urgência no reforço de tais mecanismos raramente se centra, porém, na necessidade de mais bem estruturadas e coordenadas forças de polícia, mais bem preparados agentes policiais e mais e melhores meios materiais de fiscalização e investigação: por exemplo, melhores laboratórios de polícia científica, maior disponibilidade na área das perícias económicas e financeiras, mais eficazes sistemas digitais.
Menos ainda se centra na evidente necessidade de refletir os métodos de organização e trabalho das magistraturas, mormente os do Ministério Público.
Quase sempre – e pergunto-me se por acaso – a discussão incide, privilegiadamente, sobre os instrumentos processuais intrusivos, capazes de devassar mais facilmente a vida privada e profissional dos cidadãos, bem como a vida económica e o funcionamento das instituições do país.
Curiosamente, ou talvez não – a coscuvilhice alimenta sempre as notícias e alguma política – a questão é sempre apresentada na perspetiva do impulso dessa limitação excecional das garantias constitucionais de privacidade pessoal e da reserva institucional.
Raramente, tal discussão incide, de facto, na prévia e mais óbvia necessidade de criação de mecanismos de normal transparência da vida cívica e na repercussão que, a título preventivo, estes teriam, desde logo, no mais fluido funcionamento da economia e na prestação das instituições do Estado.
Ideias de transparência e controlo prévio reforçado da despesa (e algumas receitas) do Estado, da origem e destino dos proventos das empresas, dos processos concursais públicos, da qualidade e utilidade das obras encomendadas pela administração central e local, da objetividade da gestão da carreira dos funcionários públicos – por exemplo – não têm a atenção e, menos ainda, o favor dos media e, principalmente, dos seus comentadores encartados.
O medo e a insegurança não se alimentam e nem se contentam, na verdade, com a criação de um modo de vida mais normalmente transparente e – digamos assim – mais adulto do ponto de vista cívico.
Entre a insubstituível – mas normal – transparência da atividade pública de todos e a excecionalidade dos métodos intrusivos de natureza processual nas áreas mais privadas ou reservadas das vidas de alguns, os pensadores do sistema e os media e seus comentadores – que ora são diretores, ora são entrevistados, ora são jornalistas e entrevistadores – orientam, claramente, o seu interesse para as armas mais excecionais.
E, note-se, não digo que, em alguns casos, não seja necessário calibrar melhor o alcance e efeito prático de algumas dessas medidas.
O que me preocupa é a ilusão de maior eficiência que se cria e que, depois, se frustrará.
O que me preocupa é a opção sistemática e pouco coerente, portanto, pelas soluções mais radicais, em detrimento da institucionalização de uma transparência normal que altere o paradigma de obscuridade da administração e dos negócios.
Claro está que, desta forma, se evita discutir a racionalidade de um modelo de sociedade, que favorece, inevitavelmente, no seu funcionamento corrente, desígnios e interesses de difícil compatibilização e que, portanto, não podem deixar de ser, também, pouco transparentes na sua execução.
Aumentando sempre e sempre mais a artilharia processual intrusiva e, por vezes, de contornos pouco constitucionais – armas contra as quais, de resto, o mesmo sistema rapidamente contrapõe novos e eficazes escudos – reforça-se, porém, a ideia pública de empenho no combate a uma criminalidade mediaticamente avolumada.
Assim, se enfraquecem as liberdades e garantias constitucionais, mas, na verdade, pouco se contribui para atingir as causas que estão na sua génese.
Pouco se faz, afinal, para evitar a obscuridade que alimenta o crime. Pouco se avança na clarificação das suas circunstâncias sistémicas e concretas.
O sistema económico e social é, como dissemos, mais flexível do que se imagina e sempre encontra soluções para evitar os tiros mais devastadores contra ele disparados pelas autoridades judiciais, mesmo que, para isso, tenha de lhes sacrificar, por vezes, alguns dos seus atores, já pouco influentes e escassamente úteis.
Ora elogiando tais métodos, quando atingem os alvos gordos que perderam já, todavia, os favores do público, ora recriminando o seu uso, quando são também por eles atingidos, os media acabam – mesmo que involuntariamente – por adensar um clima de deslegitimação geral em torno do estado de direito e da democracia.
Cuidado, pois o cheiro a pólvora e a sangue excita os chacais que querem corroer a democracia e que – como todos sabemos – pouco se incomodam, deveras, com a liberdade de imprensa e, já agora, com o crime.