Netto não é um nome vulgar, nem na Rússia de hoje nem na URSS de outros tempos. E, no entanto, Igor Aleksandrovich Netto é um nome famoso para todos os que gostam de futebol para cá e para lá dos Urais. Agora que o futebol russo se cruza, novamente, com o futebol português, por via da pré-eliminatória da Liga dos Campeões, cuja primeira mão tem já lugar no próximo dia 4 de agosto entre Benfica e Spartak de Moscovo, é boa altura para recordar um jogador extraordinário que foi, precisamente, estrela maior do Spartak, mas sobretudo um daqueles ídolos nacionais ainda do tempo do país dos sovietes.
Igor nasceu em Moscovo, mas os pais eram naturais da Estónia. Decorria o ano de 1930 e um sujeito de ideias monstruosas chamado à nascença Ioseb Besarionis Jughashvili, vindo ao mundo na atual Geórgia, na cidade de Gori (na altura pertencente ao vice-reinado do Cáucaso), e que ficou para a História com o pavoroso nome de Estaline, decidira que o Homem Soviético só tinha uma pátria e, para acentuar essa realidade, obrigou milhões de famílias a trocarem de repúblicas, de tal forma que muitos dos conflitos que ainda existem nos países da desaparecida União Soviética ainda são causa dos enclaves populacionais por ele programados.
Igor Aleksandrovich era, como o patronímico indica, filho de Aleksander Netto, um carpinteiro de Livónia que se viu recrutado pelo exército e colocado no Corpo de Atiradores Vermelhos Letões. Comunista até às raízes dos dentes do siso, foi para ele um orgulho. Era tão arreigado à política soviética que nunca ensinou os filhos a falar senão russo. O irmão de Igor, Lev, que assim fora baptizado em honra de Lev Trotski (num tempo em que este ainda não tinha sido expurgado, claro), não se deixou entusiasmar pelo ideal paterno e acabou por se ver encerrado durante oito anos no Gulag de Norilsk.
Igor nunca quis saber de política. Só lhe interessava o futebol. O apelido que soava estranho, Netto, terá vindo de um jardineiro italiano emigrado na Estónia ainda no tempo do império dos Romanov. Era um nome simples de decorar. Poucos são os que o esqueceram.
O ganso. Aos 19 anos, Igor era um muito prometedor defesa-esquerdo do Spartak de Moscovo com o atrevimento suficiente para se atirar com a bola nos pés para o meio-campo dos adversários. Era tal o seu à vontade nas funções atacantes que passou a ser utilizado muitas vezes como médio.
Ao mesmo tempo que se dedicava de alma e coração ao futebol, dedicava-se igualmente, com mais alma do que coração, ao hóquei sobre o gelo. Não tardou a perder a alma também e abandonou de vez os patins.
Entre os companheiros era conhecido pela alcunha de Ganso: porque tinha uma voz anasalada e os pés com as pontas viradas para fora, assim ao jeito de às dez para as duas. Mas eram pés de excelência. Cumpriu toda a sua carreira de jogador no Spartak Moscovo, de 1949 a 1966 – já não disputou o Mundial desse ano nem o jogo para o terceiro e quarto lugares frente a Portugal – e tornou-se internacional pela URSS em 1952. A sua personalidade fez dele, rapidamente, um dos líderes de uma equipa de inequívoca qualidade da qual faziam parte o guarda-redes Yashin, a Aranha Negra, Metreveli, Ivanov, Bubukin e Ponedelnik, por exemplo. Nomeado capitão, liderou a vitória soviética nos Jogos Olímpicos de 1956, batendo a Jugoslávia na final, por 1-0, golo de Ilyin, e sobretudo a conquista do Campeonato da Europa de 1960, vencendo mais uma vez a Jugoslávia, desta vez por 2-1 (após prolongamento), com golos de Metreveli e Ponedelnik. A sua foto agarrado à Taça Henry Delaunay ficou pendurada na parede branca da memória do futebol do mundo.
No Campeonato do Mundo de 1962, no jogo frente ao Uruguai, Netto revelou a sua faceta de homem de integridade absoluta ao asseverar ao árbitro italiano Jonni que o golo do seu companheiro Igor Chislenko (que faria o 2-1) não era válido apesar de assim ter sido considerado. A bola entrara por um buraco exterior da rede e o guarda-redes Roberto Soza desesperara-se até arrancar os cabelos. Anulado o tento, foi preciso Ivanov marcar no último minuto para que a URSS se qualificasse para os quartos-de-final. Em 1965, Igor Netto abandonou a seleção. No ano seguinte deixou o Spartak e transformou-se num treinador sem fama nem sucesso. O seu lugar era no campo. Comandando os seu camaradas. A maldição do alzheimer apagou-lhe as lembranças. Morreu num buraco sem fundo aos 69 anos.