Não existe nada de romântico em Chernobyl. Do centro da ponte do Rio Pripyat, vemos pela primeira vez o grande sarcófago que cobre o reactor nuclear n.º 4 da central de Chernobyl. É o sarcófago da Vinci, cuja complexa construção terminou há cerca de cinco anos. Talvez o concurso público que esteve na sua origem tenha sido o mais importante da história da Europa de Leste – e o mais interessante e trabalhoso, ainda que não conheçamos as peças do procedimento, mas não imagino menos do que vários milhares de documentos concursais, entre projecto, engenharias, arquitectura e a componente científica que permite garantir-lhe uma esperança de vida de 100 anos. O contrato foi adjudicado à empresa francesa, e dezenas de países contribuíram para o financiamento da monumental estrutura metálica, entre os quais a improvável Federação Russa. “Antes dos conflitos, em 2012”, explica-nos a nossa guia, uma jovem mulher que conhece os cantos à casa, que sorri a cada um dos habitantes e dos trabalhadores da Zona de Exclusão de Chernobyl, e que não mostra qualquer pudor em trazer para a discussão aquilo – “aquilo” é uma guerra – que está a acontecer em Donbass. “À direita, fica a fronteira com a Bielorrússia”, avisa. Conta-nos que há um par de anos guiou dois jornalistas mexicanos que simularam interesse na visita para poderem insistir em aproximar-se da fronteira. “É ilegal”, informou-os. “Sim, mas podemos ir?”, questionaram-na com esperança de que o sistema de organização fosse o mesmo aqui que na restante Zona de Exclusão: uma garrafa de cerveja ou de vodka e um saco de comida facilitam a passagem pelas dezenas de checkpoints internos, que têm regulamentos à margem dos que organizam a vida na República Popular da Ucrânia. Estamos muito perto, tão perto que há quem receba mensagens das operadoras telefónicas bielorrussas a dar as boas-vindas ao território branco – quão irónico? “Então, podemos ir?”, pergunto-lhe, e sobre esse tema não falaremos mais.
Estava a dizer que nada existe de romântico em Chernobyl. Não há frase de promoção que lhe baste, nem sequer aquela que sentencia que é o lugar onde a natureza venceu o homem, onde fauna e flora podem desenvolver-se ao seu ritmo, longe dos efeitos perniciosos da civilização. Chernobyl é uma doença: um conjunto de cidades fomentadas em função de um empreendimento inovador e logo devastadas, 16 anos mais tarde, sem que houvesse tempo para criar uma história própria e para consolidar um povo e uma identidade. As “cidades” são regidas da mesma forma desde então, como se o mundo soviético não tivesse caído, e como se todo o estrangeiro fosse um potencial espião. Por esse motivo, certas estradas são vedadas aos visitantes enquanto um vagão antigo transporta matéria residual, e também por isso devemos cumprir aqui um código de conduta rigoroso, mesmo que em certos momentos da visita cheguemos a poucos metros do reactor nuclear n.º 4. Ele foi outrora o centro de tudo, representado em esculturas e pinturas espalhadas pelo “recinto” como se fora a sexta trombeta soprada pelo anjo do Apocalipse. Não é senão uma busca pela romantização de um desastre puramente físico, químico, carnal. Porém, para quem se embebeu na cultura popular, torna-se impossível percorrer a área sem se imaginar absorvido pela Zona de Stalker, o filme de Tarkovksy que precedeu a tragédia (1979), quando se tornam visíveis as primeiras poças de água suja, as vigas enferrujadas, os edifícios degradados e esvaziados, e os cogumelos que crescem nas árvores, aparentemente saudáveis. Logo descobriremos que aqui não existe, como ali, uma “sala dos desejos”, que não é em Pripyat que vamos pedir pela consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, e que os mutantes e as armadilhas não se reproduzem nestas florestas de quilómetros. São antes os cães vadios que se aproximam de nós, pedem comida e um afago, e são correspondidos por aparentarem uma certa normalidade. “São normais”, garante a guia (ou, se preferirmos, a stalker de serviço), que pode até – pode – ter ousado misturar um deles no “mundo lá fora”, propiciando uma miscigenação que já não acabará nunca. Dão-nos as boas-vindas a Prypiat, e eis a cidade fantasma por detrás dos arbustos, eis a cidade evacuada, pilhada e abandonada, que é a essência de um mito desgraçado, e cujo destino final ninguém – pessoas, entidades, organizações ou Governos – conhece.
O único deus de uma cidade sem templos À cidade, conhecemo-la de cor. Nos últimos anos, a sua história foi espremida em cada pormenor, pelos que visitaram a Zona de Exclusão, pelos que sobre ela escreveram e por quem adaptou os textos à televisão, numa das poucas séries que atinge o desejado patamar do cinema. Graças a todos estes narradores, conhecemos até o mapa de Pripyat, sabemos o que ali funcionava e o que ficou por estrear: é que o acidente deu-se a 26 de Abril, poucos dias antes da Festa do Trabalhador, data em que deveria ter-se inaugurado a nova arena e o parque de diversões de uma das cidades mais “abertas” da União Soviética. Assim, torna-se menos urgente repetir que dezenas de milhares de pessoas ficaram sem casas, sem empregos e sem as suas vidas. A única que conheciam, no caso das pobres crianças que carregaram e carregam junto de nós o fardo da radiação; os restantes, perderam os seus anos de “sonho nuclear”, cativados que foram pela promessa da mudança para uma cidade artificial onde se desenhava a energia inovadora que viria a mudar o mundo. Não sabiam elas o quanto. Nestas páginas, as das vidas que não o foram, escreve-se o romance. Tudo o resto é um anti-romance cru: as ruas desta cidade são a prova da incúria de uma potência tendencialmente efémera, que sofreria a sua desfragmentação formal poucos anos depois do acidente, mas cuja longa-mão continua a assombrar um grupo de países em que Moscovo deixou falantes, infra-estruturas e somas que atingem a ordem dos milhares de milhões de dólares. No cimo de um dos edifícios mais altos da praça principal de Pripyat, vemos ainda o emblema da União Soviética, o símbolo do comunismo, visto que o processo de “descomunização” da Ucrânia não chegou até aqui. “Era o único deus desta cidade sem templos”, diz-nos a stalker, que graceja com o facto de uma ideologia sem deuses colocar uma múmia – que partilha o nome com a central nuclear – à mercê da veneração dos fiéis, em plena Praça Vermelha.
A stalker graceja onde o radiómetro ainda alerta para as radiações, e aos seus pés estão os restos das moradas que ficaram para trás, mas não haveria erro maior do que moralizar uma viagem, como se os ecos das vozes de Chernobyl deixassem de se ouvir entre os gracejos, como se devêssemos esperar mil anos até andarmos sobre a campa dos gladiadores, evitando assim cometer um crime de perversão. Ou haveria?