Gaspar Castelo-Branco foi baleado à porta de casa, em 1986, pelas FP25. Manuel Castelo-Branco, seu filho, encontrou-o sobre uma poça de sangue, reconhecendo-o pelo tweed que usava. Atribui a força ideológica do atentado a Otelo Saraiva de Carvalho que, na Serra da Estrela, de braço dado com os seus camaradas, assim o decidiu. Ao i, garante que este nunca respondeu pelo seus atos, havendo uma tolerância injustificável à sua figura por medo que condená-lo signifique condenar o 25 de Abril. Não celebra a sua morte. Pelo contrário, sente dor: da memória – sua, e dos outros, que, pelo desejo da extrema-esquerda, acabariam por ceder ao vermelho: não ao bolchevique, mas sim ao do sangue, no chão. “Para mim morreu o homem que mandou matar o meu Pai”, escreveu.
Como é possível uma figura ser vista de forma tão díspar por uns e outros?
Isto tem a ver com uma história que começou a ser contada recentemente e que ainda não terminou. Durante algum tempo Otelo era o capitão de Abril, depois do COPCPN e responsável pelos mandados de captura em branco. Mais tarde, perde as eleições de 1980 com 1,5% de votação, a seguir às quais resolve formar as Forças Populares 25 de Abril (FP25). Isto em 1980, num período em que já tínhamos pedido a adesão à Comunidade Europeia – e estávamos prestes a entrar –, estávamos num processo de extinção do Conselho de Revolução e de nos tornarmos numa democracia sólida e moderna. E é neste contexto que as FP surgem, lideradas pelo Otelo Saraiva de Carvalho. Surgem num contexto completamente fora da época, queriam utilizar a violência armada como arma política. E com isso morreram dezoito pessoas, três terroristas, um dissidente assassinado e cerca de 14 vitimas inocentes que pagaram com a vida. Durante algum tempo – é bom não nos esquecermos –, o Otelo foi condenado pelo tribunal de primeira instância, a sua sentença confirmada pelo supremo (que inclusive a agravou para dezassete anos) mas depois o tribunal não conseguiu provar os crimes de sangue. O que aliás é muito normal em terrorismo: os crimes de sangue muito dificilmente são prováveis. A prova é difícil, porque além da principal testemunha estar morta, há um clima de intimidação passivo ou ativo sobre as testemunhas que ficam. Os crimes de sangue não só em Portugal, mas noutros países, têm uma taxa de condenação bastante mais baixa. Mas o crime de associação terrorista – de atentar contra o estado de direito – foi provado, e comprovado, com várias sentenças e vários recursos. Depois houve a amnistia, que todos sabemos, aprovada a pedido do então Presidente da República (PR) Mário Soares e por uma maioria PS-PCP. E a partir daí houve uma total branqueamento da história: uma total relativização do que tinha sido o papel do Otelo nesse movimento e sobre aquilo que tinha sido o próprio papel das FP25 nesses anos de 80 a 87, que foram de terror absoluto. Não foram só estavas vítimas, dezenas de outras foram baleadas – algumas delas não morreram – e dezenas de atentados à bomba com prejuízos materiais enormes. Houve claramente uma tentativa de tomada de poder do Otelo, com uma ideologia claramente alinhada com a Extrema esquerda. Eu diria que não há hoje qualquer partido que se aproxime desse ideologia, havendo apesar de tudo alguns partidos herdeiros desse caminho que o Otelo tentou traçar. Este branqueamento foi algo que aconteceu ao longo dos tempos. Felizmente, com os 25 anos da Administia, publiquei um ensaio e o Nuno Gonçalo Poças publicou um livro que conta a história das FP25, intitulado de “Presos por um fio”. Acho que pus a nu, declaradamente, o que foi o processo das FP25, que diga-se de passagem: as provas são factuais e inequívocas. Não há duvidas nenhumas que o Otelo foi o líder daquela organização que matou 18 pessoas.
Porque acha que a Esquerda faz este “branqueamento”?
Acho que, tradicionalmente, a Esquerda sempre sobrepôs a ideologia à justiça e à verdade. Isso não é novo, não é de agora: sempre foi assim. Por outro, lado há aqui uma perspetiva bastante errada que é achar que condenar o Otelo é condenar o 25 de Abril. O que ele fez depois do 25 de Abril foi atentar contra os valores da liberdade e da democracia. Se a violência armada tem atenuantes em ditadura, tem óbvias agravantes em democracia. E ao Otelo era-lhe exigido muito mais do que aquilo que ele conseguiu dar. Era-lhe exigida uma atitude impoluta, exemplar. E o que ele fez foi destruir, por forças das armas, aquilo para o qual contribuiu em 1974. Estamos a falar de uma pessoa que nunca se arrependeu. As provas que o condenaram foram absolutamente factuais e objetivas, nomeadamente os cadernos que apreenderam em casa dele, vária documentação na sede da Força de Unidade Popular (FUP), documentação da célebre “Invasão dos dez reclusos”, dos quais nove pertenciam às FP25. Não há dúvida sobre o envolvimento do Otelo e o seu papel de liderança. Não consigo perceber porque é que há esta tentativa de branqueamento. Acho uma desonestidade intelectual brutal.
Disse ter havido uma “tentativa de poder por parte do Otelo”. Mas o mesmo afirma ter rejeitado convites do Vasco Gonçalves para ser primeiro-ministro e nunca ter aderido às tentativas em que os seus camaradas tentavam fazer dele PR sem ir a eleições.
Otelo nunca foi PR porque nunca foi eleito. Nas eleições de 1976 teve realmente uma votação expressiva, mas nas de 1980 teve metade do que teve o Tino De Rans nas últimas eleições, e portanto foi totalmente inexistente enquanto posição. Ele como PR era uma imaginação que só existia na cabeça dele. Não sei que cargos recusou, sei que tentou tomar o poder através das armas. É inequívoco. Estás nos autos, nos processos. Não há dúvida, as provas estavam lá. Ele liderou e fundou as FP25, e com isso tentou criar um clima de intimidação e violência no qual matou 18 pessoas. Umas eram as pessoas erradas no lugar errado, outras foram verdadeiramente condenações à morte, onde Otelo esteve presente. Otelo esteve presente numa reunião na Serra da Estrela – que aliás está bem descrita no julgamento e em que estavam todos de cara tapada (ele estava com o capuz número sete, a procuradora Cândida Almeida descreve-o bastante bem) – na qual foi julgado e condenado à morte o meu pai, o Almeida Cruz e a procuradora Cândida Almeida etc. Felizmente ou infelizmente só executaram o meu pai, mas todos os outros tinham a cabeça a prémio.
Escreveu no Facebook que durante muitos anos não sabia como reagiria a este dia. O que sente?
É um dia de memórias, e um dia em que me lembro de todo o sofrimento que senti ao longo da minha vida. Desde o dia em que o meu pai morreu, desde o dia em que desci à rua e vi o meu pai numa poça de sangue, reconhecendo-o pelo padrão do casaco. Desde o dia em que vi a memória do meu pai ser absolutamente violada, porque para o terrorismo a vítima era responsável pela sua própria morte e havia que condená-la. No caso do meu pai, eram as condições das prisões, no caso de outros empresários eram os salários em atraso. A vítima era sempre responsável pela sua própria morte, e não aqueles que o tinham executado. Depois assistimos à Amnistia, que foi uma total injustiça com as vítimas. Depois a própria indemnização. Foi surreal o que se pagou às vítimas: 43 vezes menos para cada família de vítimas do que aquilo que o Governo pagou ao ucraniano morto no SEF. Esta é a realidade. Não nos esqueçamos que o próprio Otelo enriqueceu com o dinheiro dos assaltos. Fez uma empresa com o seu advogado Romeu Francês e com Mota Liz – chamada Roteliz –, algo que, aliás, está bem descrito nas suas biografias. Tudo isto é patético e surreal. Hoje, de facto, não é um dia particularmente feliz para mim. É um dia de memórias, de dor, de sofrimento, em que me lembro do meu pai, do bebé Nuno Dionísio, lembro-me do Alexandre Souto, assassinado de braço dado com a filha, do Henrique Agostinho, assassinado no Cacém. Há uma série de vítimas que me vêm à memória. É um dia particularmente duro para mim. Não é um dia que abra uma garrafa de champanhe a comemorar a morte de alguém. Aliás a morte de uma pessoa não me traz felicidade especial. Para mim é um capitulo que se encerra, apenas isso. Mas não me venham dizer que o Otelo não pertenceu às FP25, ou que, como eu hoje ouvi, que as FP25 foram “uma aventura”. Não foram uma aventura, foram um grupo terrorista particularmente mortífero em Portugal.
Acha que a partir de agora, com Otelo morto, o debate será mais honesto?
O grande monumento aqui foi o livro do Nuno Gonçalo Poças. Pôs-se de uma forma clara, assertiva, contextualizada tudo aquilo que se passou. Acho que o Otelo será julgado pela história e que esta será crítica. A história não o verá como herói de Abril. A democracia hoje sobrevive apesar do Otelo e não por causa do Otelo.
Acha que essa honestidade poderá magoar certas pessoas partidárias das FP25 ou de Otelo e consequentemente tornar o debate mais irritado?
Não acho que haja alguém partidário das FP25, ou pelo menos alguém particularmente relevante. Mesmo Mário Soares, Almeida Santos, Salgado Zenha, que foram muito ativos na defesa e na amnistia das FP25, obviamente não eram partidários de um movimento terrorista que usavam a luta armada como arma. O que eles acharam é que condenar o Otelo podia pôr em causa os valores de Abril e a própria hegemonia da Esquerda na condução do processo. É a minha visão dos factos.
O próprio Otelo disse que se soubesse como o país iria ficar depois do 25 de Abril não o teria feito, tendo depois desdito essas palavras.
Otelo diz tudo e o seu contrário. Vivia até quarta-feira com uma mulher, e a partir de quarta com outra. Faz odes ao Salazar e faz o 25 de Abril. Estamos a falar de uma pessoa profundamente tonta e incoerente. Não olhem para o Otelo como avô cantigas simpático. Otelo era um homem profundamente mau que trouxe dor a muita gente. Em 1975 passava mandatos de captura em branco. O Otelo que mandava prender todos os potenciais fascistas, tal e qual um regime estalinista ou maoista, foi um Otelo que esteve três meses preso e ao qual lhe foi permitido concorrer à Presidência da República. Foi-lhe permitido tudo. Em 1980 cria uma organização terrorista. Ainda assim, alguma esquerda continuou a ter tolerância com o Otelo e ignorou completamente o sofrimento das vítimas. Com o passar do tempo esta proximidade, cumplicidade, tolerância que alguma sociedade, ou alguma elite, teve para com ele, desaparecerá. Daqui a vinte ano serás sempre visto como alguém que usou e abusou da democracia que ele próprio contribui para implementar.
Diz ter sido o “capítulo final de um livro de dor e sofrimento” que marcou toda a sua vida. Acha que após a morte do Otelo e do debate que lhe seguirá poderá, por fim, descansar do assunto?
Isto foi um processo particularmente complicado, que em mim evoluiu de uma determinada forma e que nas minhas irmãs evoluiu de outra. Cada pessoa olhar para este tema de forma pessoal. Tive um familiar de uma vítima que me telefonou a chorar quando publiquei aquele ensaio. Dizia-me: “É a primeira vez que falo do tema”. Estamos a falar de uma pessoa que há 30 anos não conseguia falar do tema. Este é o traumatismo que existe hoje em boa parte das vitimas. Calaram-se pelo medo, sentiram-se injustiçadas, calaram-se porque viram uma narrativa que na prática condenava e as vítimas e idolatrava os seu assassinos. É um capítulo que se encerra, porque vou deixar de o ver convidado para todos os programas cada dia 24 de abril para falar sobre liberdade e democracia. Isto era uma profunda hipocrisia e gerava-me uma revolta enorme. Felizmente, isso não vai voltar a acontecer. Isto é um dia de sofrimento para as vítimas, porque ouvem falar do assassínio do seu pai, do seu irmão, do seu tio. Não conheço ninguém que tenha fica satisfeito com a morte do Otelo Saraiva de Carvalho. Tenho a certeza de que as pessoas vão tentar fechar o capitulo, passar à frente, arrumar o tema nas suas cabeças, de uma forma certamente mais saudável. Não é um dia de alegria. Nem para os familiares do Otelo, que obviamente sentirão a sua perda, nem um dia de alegria para as vítimas das pessoas que ele mandou assassinar.