Há 200 anos, no dia 25 de julho de 1821, era publicada, em Jornal Oficial, depois de ter sido promulgada por D. João VI 13 dias antes, a primeira Lei de Imprensa portuguesa. Esta já havia sido votada nas Cortes Constituintes, reunidas em Lisboa, no Palácio das Necessidades, a 4 de julho do mesmo ano. Esta Lei vigoraria, em Portugal, até 1834, e no Brasil até à Implementação da Constituição Brasileira de 1825.
“Acho que a liberdade de imprensa não é um absoluto: nunca existirá uma liberdade total, integral._Depende dos jogos de força e de interesse que existem numa determinada sociedade e da legislação que a protege e de várias outras medidas que possam existir à sua volta”, começa por explicar Mário Mesquita, de 71 anos, vice-presidente do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, desde 14 de dezembro de 2017.
“Penso que esta data, de 4 de julho de 1821, é simbólica e, para o nosso país, muito relevante. Até aí, houve sempre sistemas de censura em Portugal que resultavam de uma combinação entre a Igreja – fosse a do episcopado nacional, fosse a de Roma – e o Estado”, continua o professor-adjunto da Escola Superior de Comunicação Social que também exerce o cargo de professor convidado da Universidade Lusófona, tendo publicado obras dedicadas ao jornalismo como O Quarto Equívoco.
Jornalista do República nos anos compreendidos entre 1971 e 1975, diretor (1978-1986) e diretor-adjunto (1975-1978) do Diário de Notícias e diretor do Diário de Lisboa (1989-1990), defende que, até à Revolução Liberal de 1820 – que abriu caminho para a eleição do primeiro Parlamento português –, “Portugal viveu sempre sob sistemas de censura”, sendo “a primeira vez em que há uma lei constitucional acerca da imprensa que se vai refletir na Constituição de 1822”.
“A liberdade de imprensa funciona sempre num equilíbrio entre o uso legítimo da mesma e o abuso, por exemplo, em termos da devassa da vida privada que só é lícita quando está em causa o interesse público. Uma coisa é a curiosidade das pessoas e o gosto que têm em espreitar pela fechadura, outra é a necessidade de ter acesso a informação adequada”, explica, adiantando que esta lei teve um efeito na criação de um grande número de jornais.
A título de exemplo, no âmbito desta Lei, foi criado, no Brasil, o jornal Diario de Pernambuco (1825), que ainda hoje se publica. Em território nacional, O Açoriano Oriental, o mais antigo jornal português em publicação continuada desde 1835, isto é, foi criado já na vigência da Lei de Imprensa, que sucedeu à Lei de 1821. “As consequências práticas da legislação foram o aparecimento de inúmeros periódicos e, por outro lado, o debate era muito intenso”, refere Mesquita, acrescentando que houve um grande período que culminou na Guerra Civil – entre 1832 e 1834 – e, por este motivo, a aplicação da lei não foi imediata. Assim, “houve um retorno do sistema de censura que durou até à República” e “os períodos de liberdade de expressão alternaram-se com períodos de censura”.
Condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique, em 1981, pelo Presidente António Ramalho Eanes, não esconde que, quando trabalhava no República, os seus artigos eram submetidos à apreciação da censura. “Umas vezes, vinham com cortes, outras vezes eram aprovados integralmente e, por vezes, eram totalmente proibidos”.
Por ocasião das ‘eleições de 1973’, as últimas da regime salazarista, Mário Mesquita preparou um livro de entrevistas com personalidades políticas oposicionistas como Mário Soares, João Bénard da Costa, Salgado Zenha, Jorge Sampaio, Ernesto Melo Antunes, Manuel de Lucena, Eduardo Lourenço, José Medeiros Ferreira e outros. Todas estas entrevistas foram gravadas. “Não foi possível publicar o livro na íntegra, dada a ausência de liberdade de expressão. A entrevista com Mário Soares saiu no Brasil, a de Eduardo Lourenço, já depois do 25 de Abril, na editora Cosmos. Outras ficaram em rascunho, como a de Ernesto Melo Antunes, que foi descoberta no seu espólio, pela historiadora Maria Inácia Rezola”, explica, avançando que, no ano de 1973, “aproveitando alguma tolerância das encenações eleitorais só foi possível publicar um pequeno opúsculo, algo desproporcionado à grandeza do título ‘Portugal sem Salazar’”. No entanto, saiu, na então recém-criada Assírio e Alvim, o produto de uma longa entrevista com Manuel de Lucena, então exilado em Paris, assim como o de uma mesa-redonda (cortada pela censura no República), efetuada em Genebra.
“Já em fevereiro de 1974, quatro meses após a publicação do livro, fui convocado para um interrogatório pela polícia política (PIDE), previsto para as instalações da Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, mas logo transferido para Caxias, onde se realizou em duas fases, com uma semana de intervalo”, conta o jornalista que viveu o período do “lápis azul”.
Pedindo ajuda a Herculano Pires, advogado e oposicionista de Almada e membro do Partido Socialista, foi inquirido pelo “inspetor Pinto Galante, que se apresentou como licenciado em Filosofia na Faculdade de Letras de Coimbra” e “fez incidir o interrogatório em dois pontos principais: pediu-me que lhe fornecesse o endereço em Genebra dos entrevistados”. Mário Mesquita recusou-se a fazê-lo, “argumentando que não estava autorizado a fazê-lo pelos próprios e, além disso, estavam enunciadas no livro as Universidades que frequentavam” e, em segundo lugar, interpelou-o sobre umafrase de Manuel de Lucena “que, no entender da Pide, poderia ser entendida como apelo à luta armada contra o regime, o que não era de todo o caso”.
“Da primeira para a segunda inquirição o clima mudou e foi mais cordato, talvez porque, entretanto o editor José Ribeiro, conversou no Chiado com António Alçada Baptista que tinha nessa época, relações cordiais com Marcelo Caetano, com quem publicara pouco antes um livro de entrevistas”, lembra o docente universitário, explicitando que o Presidente do Conselho de Ministros terá dito que ‘Portugal sem Salazar’ “fora o único livro com interesse publicado do lado da oposição nas eleições de 1973”.
Assim, o jornalista foi autorizado a citar na PIDE essa opinião. “Não invoquei, no interrogatório de Caxias, a opinião do Presidente do Conselho de Ministros, mas julgo que o editor o terá feito, até porque o ambiente, nesta segunda entrevista, era mais ameno”, diz, em declarações ao i, acrescentando que “próximo do período de campanha, o livro foi posto à venda e pouco depois apreendido pela Direção-Geral de Informação, mas o processo instaurado acaba por ser arquivado, nas vésperas do Golpe das Caldas”.
“Não sei o que é trabalhar sem liberdade de imprensa”
“Já senti pressões – internas porque, por vezes, os sítios onde trabalhamos têm esse desrespeito”, conta Rita Rato Nunes, jornalista de 25 anos, que começou a carreira com um estágio no jornal Público, seguiu para o Diário de Notícias e, agora, encontra-se na revista Visão. Foi aluna de Mário Mesquita, na licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social, mas, ao contrário dele, nunca viveu em censura.
Apesar disso, a jovem declara que, nas redações, atualmente, faz-se sentir pressão na vertente financeira. “Ter autonomia financeira leva à independência e, por outro lado, a dependência económica leva à subserviência e limita a objetividade”, diz. “Se estamos a fazer um trabalho e temos de ir a um sítio, mas não temos dinheiro, a forma como este trabalho chega aos leitores não é a ideal”, partilha a profissional que ganhou o Prémio de Jornalismo Direitos Humanos & Integração com uma reportagem sobre o Casal Ventoso.
“É claro que, para além disto, recebemos comentários e emails baseados no insulto fácil, mas nunca senti a minha integridade física e psicológica ameaçada”, confessa. “Não vivi no tempo da censura, portanto, não sei o que é trabalhar sem liberdade de imprensa. Acho que há liberdade, mas igualmente abusos. Por termos essa liberdade, não quer dizer que possamos escrever tudo aquilo que queremos como queremos”, clarifica a jovem que, devido ao escândalo Pegasus, terá sido questionada por uma fonte, há alguns dias, acerca da segurança da chamada que realizavam.
“Na semana passada, uma fonte, quando me atendeu o telemóvel, perguntou se era seguro falar. Não entendi o significado, mas depois tive o clique e disse ‘Sim, é o meu telefone pessoal, esteja à vontade’. E a pessoa respondeu ‘Pois, não sei se está a ser vigiada’. É um episódio caricato, mas mostra que as fontes podem não confiar em nós”, exemplifica, referindo-se à investigação que revelou que milhares de jornalistas, ativistas, advogados e políticos, globalmente, foram selecionados como alvo de uma tentativa de espionagem através de um software israelita, Pegasus, que permite aceder a mensagens, fotografias, contactos e até ouvir as chamadas do proprietário.
Esta operação, denominada de Projeto Pegasus, resultou de uma investigação publicada por um consórcio de 17 órgãos de comunicação internacionais, incluindo o Le Monde, o Guardian e o Washington Post, tendo por base uma lista obtida pelas organizações não-governamentais Forbidden Stories e Amnistia Internacional.
“Não encontrámos indícios de números de jornalistas portugueses”
A lista suprarreferida continha aproximadamente 50 mil números de telefone selecionados por governos que são clientes da NSO Group desde 2016 para potencial vigilância, no entanto, segundo o Guardian, isto não significa que essas pessoas tenham efetivamente sido vigiadas.
“Nesta investigação, não encontrámos indícios de números de jornalistas portugueses. No entanto, não significa que tenham sido vigiados somente os proprietários dos contactos listados, até porque há empresas com softwares idênticos noutros países. Esta é israelita, mas há mais. Inclusivamente, havia indícios de que um software idêntico foi proposto à Polícia Judiciária (PJ)”, diz o diretor de Comunicação e Campanhas da Amnistia Internacional Portugal, Paulo Fontes, afirmando que “no fundo, as autoridades portuguesas não estão completamente livres de lhes serem propostos estes softwares”.
“As autoridades têm de compreender que, neste momento, há um vazio regulamentar enorme acerca deste tipo de spywares e softwares de vigilância e, enquanto não houver uma regulamentação clara e as empresas que providenciam estes serviços não conseguirem demonstrar que os mesmos estão completamente enquadrados na legislação e nos direitos humanos, deve de se parar com a sua comercialização”, pede, lembrando que, de acordo com o jornal Expresso, a PJ garante que nunca usou nem esse nem qualquer software da NSO Group. É de frisar que a tentativa de venda veio a público depois de uma troca de emails ter sido publicada no site Wikileaks, mas o órgão de informação deixou claro que o Centro Nacional de Cibersegurança (CNCS) nunca encontrou indícios do Pegasus em Portugal.
“Quem tem dinheiro pode ter acesso a este ou outro software. Todas as pessoas podem ser visadas porque é muito fácil de instalar. Eu já recebi mensagens com links duvidosos e basta isso para instalar este software nos telemóveis. E, a partir daí, quem quer vigiar-nos tem acesso a tudo. Até mesmo quando estamos a dormir, pois podem aceder ao microfone e à câmara”, alerta Paulo Fontes, censurando estas práticas porque “a liberdade de imprensa pressupõe que os jornalistas se sintam seguros quando estão a fazer o seu trabalho” e, se forem incómodos para um Governo ou para uma empresa, por exemplo, que possa ter acesso a um software destes, o seu trabalhado e a sua vida podem estar em risco.
“A questão da liberdade de expressão é como todas aquelas que parecem estar garantidas enquanto não se perdem e, depois, perdem-se completamente de um momento para o outro”, avisa, recordando, porém, que Portugal é o 9.º país melhor classificado no Índice Mundial da Liberdade de Imprensa 2021 elaborado pelos Repórteres Sem Fronteiras (RSF), subindo uma posição em relação a 2020, segundo o documento divulgado no passado mês de abril.
Entre os países lusófonos que constam no índice, Brasil é o pior (111.º), tendo descido quatro posições. Cabo Verde desceu dois lugares (27.º), Timor-Leste subiu sete (71.º), Guiné-Bissau desceu um (95.º) e Moçambique quatro (108.º), enquanto Angola subiu três (103.º).
“Podemos afirmar que o nosso panorama é positivo, mas há outra leitura: há muitos países que estão com situações muito negativas. E depois há outra questão: um jornalista, em Portugal, que faça trabalho sobre países que não são tão concordantes com as liberdades e os direitos humanos poderá estar em perigo”, remata. “Os índices de liberdade de expressão e imprensa seriam bons se fossem universais porque todos os jornalistas deviam poder fazer o trabalho livremente”, destaca, indo ao encontro do documento dos RSF onde é sublinhado que houve uma “deterioração dramática” da liberdade de imprensa desde o início da pandemia.
Os RSF concluíram que 73% das nações do mundo têm problemas com a liberdade de imprensa e muitos deles utilizaram o novo coronavírus “para bloquear o acesso dos jornalistas à informação, fontes e reportagens no terreno”.
Por estes motivos, “os 200 anos da Lei da imprensa são obviamente algo a celebrar”, na ótica de Paulo Fontes. “A atividade jornalística tem um papel importantíssimo na garantia das liberdades, das democracias plurais e saudáveis, dos direitos humanos e, por isso, devemos celebrar, mas também devemos recordar os jornalistas que não podem exercer o seu trabalho livremente”, realça, lamentando que a associação indicou que 59% das pessoas inquiridas em 28 países afirmaram que os jornalistas “tentam iludir o público de forma deliberada, divulgando informação que sabem ser falsa”.
“O meu caso é o maior ataque há liberdade de imprensa dos últimos 20 anos”
No passado mês de janeiro, a Procuradora-Geral da República (PGR), Lucília Gago, na qualidade de presidente do Conselho Superior do Ministério Público (MP), instaurou um processo de averiguações à atuação da procuradora Andrea Marques no caso da vigilância de dois jornalistas. A procuradora do DIAP de Lisboa, ordenou à PSP que vigiasse Carlos Rodrigues Lima, subdiretor da Sábado, e Henrique Machado, ex-jornalista do Correio da Manhã e atual editor de justiça da TVI.
É de recordar que a 6 de março de 2018, os dois jornalistas divulgaram a detenção de Paulo Gonçalves, assessor jurídico da SAD do Benfica, que foi detido no âmbito da investigação do processo e-toupeira por crimes de corrupção. Posteriormente, os profissionais foram alvo de um processo de violação de segredo de justiça pela titular do inquérito, a procuradora-adjunta do DIAP Andrea Marques, que pretendia investigar os crimes de violação de segredo de justiça, de violação de segredo por funcionário e de falsidade de testemunho.
Deste modo, a 3 de abril de 2018, a procuradora ordenou a vigilância dos jornalistas, mas o pedido não foi validado por um juiz. Por outro lado, a procuradora “não revelou qualquer preocupação legal com a quebra do sigilo do jornalista através da vigilância”, adiantou a Sábado, explicando que “segundo a lei, só um tribunal superior pode ordenar a quebra do sigilo dos jornalistas”. Porém, durante aproximadamente dois meses, a PSP vigiou os jornalistas, seguindo os seus movimentos.
Por seu lado, Carlos Rodrigues Lima foi fotografado em frente ao DIAP, onde os agentes da autoridade captaram um cumprimento circunstancial entre o mesmo e o procurador José Ranito, que liderou a investigação do caso BES.
Dois meses depois, os diretores do Correio da Manhã/CMTV e da revista Sábado, Octávio Ribeiro, Eduardo Dâmaso e Carlos Rodrigues Lima foram absolvidos pelo Tribunal Judicial de Lisboa dos crimes de desobediência de que eram acusados por causa da divulgação das gravações dos interrogatórios prestados por José Sócrates e Ricardo Salgado durante a fase de inquérito da Operação Marquês. Em declarações ao i, Carlos Rodrigues Lima clarifica que “apesar de consagrada formalmente na Constituição e outras leis, em Portugal não existe uma cultura de liberdade de imprensa”. “Para muitos setores da sociedade, a imprensa é um mero utilitário dos seus interesses, servindo apenas como veículo dos seus interesses”, expõe, alegando que “há setores na justiça que apenas aceitam a liberdade de imprensa se for para veicular posições sindicais e apenas a admitem, no âmbito dos processos, se for circunscrita aos comunicados”.
“O meu caso, infelizmente, é o maior ataque à liberdade de imprensa dos últimos 20 anos. E a forma como alguns magistrados se colocaram aos lado dos seus é o melhor exemplo de como encaram a liberdade dos jornalistas”, conclui o jornalista de 44 anos.
“Nada mais é do que um profundo respeito entre o leitor e o acontecimento”
Formado em Teologia e doutorando em História, Nuno André decidiu inscrever-se no mestrado em Jornalismo, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no ano letivo passado, aos 35 anos. “Acredito que, no que toca às questões da liberdade, tudo o que se possa dizer nunca é suficiente. Aproxima-se de uma tendência que pode estar mais ou menos perto da verdade, mas nunca é absoluto. É como nas sondagens, há a margem de erro. Devíamos estar todos em primeiro lugar. Seria bom, mas também utópico”, diz, em declarações ao i, Nuno André, que já tinha explicado que sempre nutriu um profundo interesse pela comunicação e pela História.
“Sempre tive um gosto pelas duas áreas, mas não faço nada disto pelo reconhecimento de um diploma. Faço-o pelo conhecimento e porque adquiro instrumentos que me ajudam a completá-lo”, explicou em entrevista ao i, em março deste ano, tentando agora unir as duas paixões academicamente. “Uma coisa é a liberdade de opinião – todos podem partilhá-la publicamente seja onde for – e aí a liberdade que temos é substancial. Outra é a liberdade de imprensa: falta cumprir-se a libertação do jornalismo da política e da economia para que o jornalismo esteja ao serviço da verdade. Se queremos um produto final muito bom, o segredo está nos ingredientes: os acontecimentos são sempre bons, têm sempre conteúdo, o problema é quando o cozinheiro é mau. Se queremos um resultado final muito bom, temos de atribuir as ferramentas certas às pessoas certas”, indica, apontando que é necessário levar a cabo um investimento elevado com o qual nem todas as chefias parecem estar dispostas a comprometer-se pelos mais variados motivos, entre eles, a falta de meios financeiros.
“A História revela que ao longo do tempo o jornalismo esteve permanentemente refém do poder ou do contrapoder. Logo aí reside um grave problema de liberdades. Existe um interesse intrínseco em cada reportagem, investigação ou entrevista. O jornalismo afirma-se como um verdadeiro poder”, afirma, alinhando-se com Mário Mesquita, que, n’O_Quarto Equívoco, citando o escritor britânico Martin Amis, redigiu:_“Este Quarto Poder está numa fase peculiar da sua evolução. Por um lado, está cada vez mais satisfeito com o poder que o corrompe; por outro, vai no sentido de uma impotência elefantina relativamente a todas as questões que realmente interessam”.
“Alguém pode acreditar que um dos pilares do poder possa ser verdadeiramente livre?”, pergunta Nuno André. “Quem manda controla e quem mais controla manda. É uma regra de ouro e quem não a compreender talvez não entenda o que é o jornalismo”, constata, finalizando que “a liberdade de imprensa nada mais é do que um profundo respeito entre o leitor e o acontecimento”.
“A precariedade do jornalismo é caminho aberto à autocensura”
Licínia Girão tem 56 anos, foi diretora do jornal Folha do Centro e entrou pela primeira vez numa redação com apenas 17 anos. Foi no Diário de Coimbra que se apaixonou pelo ofício e dali seguiu para meios como o Jornal de Coimbra, o Comarca de Arganil, a agência Lusa e o Jornal de Notícias, sendo sempre apaixonada pela imprensa regional. “Só tive um episódio de uma proposta indecente de um patrão, mas que não tinha a ver com liberdade de expressão. Ele propôs-me trabalhar como jornalista e publicitária ao mesmo tempo. Outro patrão, que também era meu diretor, tinha palavras que não queria que usássemos e temas que não gostava que abordássemos. Por exemplo, o tabagismo, porque achava que promovíamos o tabaco e, aí, já me sentia censurada”, conta a jornalista que conta com quase 40 anos de carreira.
“Uma vez, estava a fechar o jornal e publiquei uma notícia da Lusa. No dia a seguir, o chefe de redação disse-me que o diretor não gostou muito disso e que tinha de fazer um relatório para justificar o motivo pelo qual tinha escolhido aquele tema e não outro. A verdade é que acontecia tudo por interpostas pessoas”, partilha a jornalista, que sempre se dedicou ao aprofundamento das temáticas que dizem respeito ao interior de Portugal e, por isso, lidava diariamente com assessores de autarcas e até mesmo com os próprios dirigentes que, por vezes, a impediam de realizar o trabalho como ambiciona.
Em retrospetiva, Licínia ri-se quando recorda o dia em que o presidente de uma Câmara Municipal lhe vedou o acesso a um programa de uma festa porque não o tinha entrevistado. “A senhora esteve aqui e não veio entrevistar o presidente da Câmara?”, perguntava a assessora, e Licínia limitava-se a explicar que a sua intenção não era essa e o artigo seguiria outros moldes.
Contudo, quando levou a cabo alguns trabalhos de investigação, temeu ser agredida. “Por exemplo, investiguei um mercado negro de venda de leitões. Andei a explorar o tema de noite com um colega e queriam bater-nos com os próprios animais. Conseguimos que a PSP acabasse com esse mercado porque milhares de leitões eram vendidos sem controlo sanitário, vindos de Espanha”, recorda, acrescentando que, certo dia, numa greve de camionistas, encontrou um deles a beber álcool e o mesmo quis agredi-la. Já na Serra do Açor, “a população estava toda contaminada pela brucelose e isso foi discutido na Assembleia da República. Havia pessoal do Governo a querer levantar-me um processo por alarmismo”.
Mas Licínia nunca desistiu e, há dez anos, investigou a manipulação de contadores da EDP, que era feita por funcionários da empresa que recebiam dinheiro por essa prática. “A investigação nunca foi publicada. Sempre achámos que aquilo teve a mão de terceiros. Na altura, falámos com a EDP e o meu colega, que era dos quadros, era fotógrafo, tentou saber. Diziam-lhe que seria publicado, mas até hoje, nunca aconteceu. Desisti de perguntar”, admite. “Na verdade, acho que a liberdade de imprensa não existe. A precariedade no jornalismo é caminho aberto à autocensura”, explica a autora da dissertação A Liberdade de Expressão no Jornalismo e na Comunicação, Um Direito a Ofender?, defendida a 31 de outubro de 2019.