Ao longo dos anos, a ideia de fazer da pele “uma tela” tornou-se quase universal. E, no contexto da sociedade contemporânea, são cada vez mais as pessoas que pretendem gravar nela as suas ideias, valores, gostos, amizades ou vivências.
A tatuagem, que começou de uma forma rudimentar e que nos faz viajar até mesmo antes de “existirmos”, foi-se transformando ao longo dos tempos através das novas formas e métodos desenvolvidos que permitiram alcançar as mais variadas estéticas com inúmeras possibilidades interpretativas e significados.
Contudo, independentemente da época, desde as múmias aos romanos, aos marinheiros ou até mesmo a membros de máfias, todas estas variações parecem ter o mesmo objetivo: comunicar visualmente, marcar algo ou transmitir informação sem precisar de a verbalizar.
Por outro lado, atualmente, são cada vez mais aqueles que as removem. Ou por arrependimento, ou por desejarem fazer algo diferente, ou por “obrigação” resultante das imposições profissionais. Mas por que razão a tatuagem continua a possuir esta conotação negativa? De onde vem essa ideia e para onde caminhamos?
A "origem"
Não existe uma data específica que nos diga quando é que começámos a modificar o nosso corpo. No entanto, já foram encontradas provas arqueológicas em locais como o Egito, o Alasca, a China, a Áustria e a Itália, que datam até 10.000 a.C, existindo também evidências arqueológicas, como múmias tatuadas datando até 3370 a.C.
Exemplo disso são as múmias provenientes do período Neolítico (4000 A.C. até 3000 A.C.): a do tirolês Ötzi e as múmias pré-dinásticas de Gebeleim, que são tidas como os exemplares mais antigos de tatuagens já resgatados pelo homem moderno.
Foi em setembro de 1991, na fronteira da Áustria com a Itália, que foi encontrada uma múmia do sexo masculino (bem conservada) com 57 tatuagens não figurativas “compostas apenas por sequências de traços paralelos ou cruzes”. Na altura, o corpo foi levado para Innsbruck, capital do estado do Tirol, no oeste da Áustria, e, ao ser analisado, os investigadores estimaram que tivesse pelo menos 5200 anos (3370 a.C.), dando-lhe o nome de Ötzi.
Depois de várias análises, foi possível identificar que o pigmento utilizado para gravar esses “traços” foi composto por “fuligem misturada com cristais de silicato”, como a almandina e o quartzo, e foi também possível concluir que esses desenhos foram marcados na pele com o auxílio de espinhos ou ossos afiados (técnica muito parecida com a Stick and Poke Tattoo).
Com isso, a maior parte dos investigadores e historiadores acredita que, dentro do grupo cultural de Ötzi, e já que o lugares tatuados coincidem com pontos usados na acupuntura, a tatuagem estava relacionada com “práticas terapêuticas”, exercendo uma função medicinal, espiritual ou de apenas “auxílio”, sempre interligada à cura ancestral.
As múmias pré-dinásticas de Gebeleim são um caso diferente. E, por mais que os egípcios tenham deixado material que nos permite ter umas “luzes” da sua “época”, como é o caso do enorme “espólio” de múmias, das enormes pirâmides, esculturas, templos, esfinges – entre muito outro património – comparar e validar as inúmeras teorias e estudos é um trabalho difícil, não sendo, por isso, possível decifrar as reais motivações.
Segundo a National Geographic, num estudo publicado em 2018, antes de ser descoberta “a primeira múmia egípcia tatuada do sexo masculino proveniente de tempos anteriores a 2000 a.C”, já haviam sido encontradas “representações de mulheres egípcias tatuadas nos seus hieróglifos e esculturas”: representações de homens tatuados (líderes de tribos libanesas) datadas até 1300 a.C., assim como múmias femininas tatuadas entre 2000 e 1000 a.C.
Contudo, os investigadores acreditam que, durante muito tempo, os egípcios do período pré-dinástico (anterior a 3100 a.C.) não faziam tatuagens figurativas. Trabalhavam com geometria, padrões e simbologia, tatuavam apenas as suas mulheres e os seus motivos estavam quase sempre relacionados com religião e espiritualidade.
Em 2017, um grupo de investigadores conseguiu autorização para reanalisar as seis Múmias Pré-Dinásticas de Gebeleim, com cerca de 5000 anos de idade e descobertas em 1896 pelo egiptologista Wallis Budge. Aquilo que inicialmente pareciam manchas, foi examinado com imagiologia de infravermelhos, que permitiu aos cientistas ver as marcas na pele mumificada com maior clareza.
No corpo da múmia masculina, os investigadores identificaram imagens de um touro selvagem e daquilo que parece ser um “carneiro-da-barbária”. O corpo da mulher apresenta quatro símbolos em forma de “S” sobre a articulação do ombro, bem como uma linha em forma de “L” no abdómen.
“O carneiro é muito usado no pré-dinástico (período egípcio) e o seu significado não é inteiramente claro, ao passo que o touro tem especificamente que ver com a virilidade e o estatuto masculino”, disse Daniel Antoine, autor do estudo e curador do Museu Britânico, à National Geographic, em 2018. “Para já, não creio que haja uma explicação satisfatória”, frisou Antoine.
Relativamente ao significado por trás das tatuagens da figura feminina, o curador afirmou acreditar que foram feitas para “dar ênfase a alguma coisa”: “Talvez tenha servido para chamar a atenção para um bordão torto. Isto pertence a uma era anterior à escrita, portanto só podemos estabelecer paralelismos.”
O artigo publicado, na altura, na revista científica Journal of Archaeological Science, sugere ainda que o posicionamento das tatuagens, no ombro e no abdómen da mulher, significa que esta seria alguém com conhecimento religioso ou um alto estatuto.
Esta descoberta “recente” acaba por qualificar os egípcios como “a primeira civilização a realizar tatuagens figurativas remetendo a símbolos que espelham os mesmos motivos celebrados em suas próprias obras de arte”.
Os gregos e os romanos
Na Grécia antiga (1100 a.C. até 146 a.C.) as tatuagens ou “inscrições na pele” eram utilizadas para marcar prisioneiros, escravos ou criminosos. Portanto, acredita-se que seja a partir deste momento (contacto dos gregos com os povos bárbaros) que tenha acontecido o primeiro “choque” entre duas culturas que possuem a mesma prática mas com significados “opostos”: os gregos “ofereceram” à tatuagem uma conotação “negativa”; enquanto para os Citas, Trácios e outros povos (considerados bárbaros), a tatuagem era tida como essencial, fazia parte da “comunicação visual das tribos” e servia a diversos fins, indo da espiritualidade até a ornamentação dos nobres com desenhos elaborados e complexos.
Entretanto, algumas mudanças culturais foram acontecendo e, com o tempo, as tatuagens começaram a ser usadas também pelos soldados romanos. Primeiramente, serviam para marcar o exército e evitar deserções, mas, gradualmente, os guerreiros começaram a criar as próprias marcas, que, na maior parte das vezes, estavam ligadas à coragem e às vitórias conquistadas na guerra – muito por influência de comunidades consideradas bárbaras, conquistadas pelos romanos, como foi o caso dos bretões e celtas, que usavam as tatuagens como “insígnias de honra marcadas na pele”.
Nas cruzadas, do século XI, as tatuagens ganharam ainda outro significado entre o povo romano: aqueles que eram marcados com desenhos de cruz tinham a garantia de um enterro cristão caso morressem em batalha.
Até que estas acabaram por ser totalmente banidas pela igreja Católica, por ordem do imperador Constantine (306 – 373 d.C), em toda a Europa até o final da Idade Média (século XV), por serem consideradas “uma profanação do corpo” (visto na época como um templo do Espírito Santo). Ou seja, nesse período, possuir tatuagens era pecado e quem o fizesse era condenado duramente pela Inquisição Católica.
Os Maoris
Talvez sejam, de todos os inúmeros povos que já antes da Idade Contemporânea marcavam o corpo, os que têm “a relação mais profunda com a tatuagem”, pelo facto de darem ênfase à dor durante o processo. Os Maoris, povo tradicional da Nova Zelândia, via as tatuagens como uma parte importante da sua cultura.
Para esta tribo, estas “inscrições” eram muito mais do que apenas um elemento estético: os “desenhos” representavam verdadeiras narrativas sobre a personalidade, a descendência e a história pessoal de cada pessoa e começavam a ser feitos na adolescência, crescendo conforme as realizações da pessoa (quanto mais nobre um homem, mais tatuagens tinha).
Ao invés de perfurar a pele para inserir a tinta, eles faziam cortes profundos utilizando materiais como “dentes de tubarão”, “ossos de pássaros”, “pedras afiadas” e até mesmo facas, de modo a conseguirem “administrar os pigmentos dentro das feridas”.
As tatuagens eram feitas sempre durante rituais acompanhados de canções e o indivíduo que estava a ser tatuado tinha de suportar toda a dor do processo “para ser digno das marcas que eram consideradas pela tribo como sinal de distinção e nobreza”. Enquanto os homens tatuavam no rosto, nas pernas e nádegas, as mulheres recebiam suas marcas no queixo, pescoço e costas.
O capitão James Cook
Um dos mais conhecidos registos sobre tatuagens é do capitão inglês James Cook, quando o mesmo tentava entrar em contacto com os nativos do Taiti. O conceito “tattoo” surgiu na Polinésia e deriva do termo “ta tau” – utilizado pelas tribos locais pela associação com o som feitos pelas “batidas realizadas durante o processo da tatuagem”. O navegador Cook, responsável por documentar as expedições ao arquipélago em 1769, anotou “tattow” no seu diário de bordo e foi esse o termo que apresentou quando retornou à Europa, elucidando sobre o que tinha “retido” dos polinésios.
Por isso, os marinheiros ingleses são tidos como os responsáveis por difundir a prática da tatuagem em todo o mundo, tendo marcado o “primeiro registo histórico” no qual um homem da Idade Moderna “consumiu” uma tatuagem de outra cultura que potencialmente teve a sua origem na Antiguidade Tardia (intervalo entre a Antiguidade clássica greco-romana e a Idade Média), trazendo um tatuador nativo para a Europa. O termo “tattow” foi rapidamente espalhado (assumindo diversas formas linguísticas em cada país) e adaptado para “tattoo”, que se tornou no “termo final” até aos dias de hoje.
A reprodução de monstros do mar, âncoras, pin ups, caveiras e embarcações na pele “contavam” as aventuras desses homens que passavam várias temporadas no mar. Sendo os mesmos sujeitos de pouca condição financeira ou influência social, fizeram da tatuagem algo popular entre os considerados “marginais”, lutadores de rua, criminosos e prostitutas, por exemplo. Esse tom marginal dado à tatuagem também fazia com que corpos tatuados fossem presença garantida nas atrações circenses dos chamados freak shows.
As tatuagens associadas à máfia
Com o passar dos anos, as tatuagens foram também adquirindo um cariz mais “coletivo”, uma forma de pertencer a um determinado grupo e viver ancorado em determinadas ideologias – prática muito comum dentro das máfias. Federico Varese, professor de criminologia em Oxford que estudou este fenómeno, descodifica no livro Máfia Life, lançado em 2017, o sistema de códigos das tatuagens no seio da máfia russa (os vori).
Segundo Varese, a partir do momento em que “o novo membro do grupo” é “batizado”, deve marcar a sua pele com a ajuda de uma agulha e de uma lâmina de barbear. A escolha das tatuagens recai sobretudo sobre imagens religiosas (enquanto o número de cúpulas de igrejas indica o número de penas cumpridas).
Tal como se lê no livro, estando dentro da máfia, todas as etapas da vida do indivíduo vão sendo gravadas na pele, chegando-se até a tatuar “as pálpebras e o pénis”, explica o autor. “Se os vori descobrem que um recluso ostenta tatuagens às quais não tem direito, é de esperar a aplicação de um castigo cruel, que poderá passar pela morte. Se o impostor tiver tatuado um anel no seu dedo, por exemplo, este é amputado. Em certos casos, a tatuagem é arrancada à força juntamente com a pele com a ajuda de uma faca, uma lixa, um pedaço de vidro ou de tijolo”, revela.
Entre os membros da Yakuza, a máfia japonesa, as tatuagens também são populares. Normalmente os indivíduos recebem-nas entre o final da adolescência e os vinte e poucos anos (momento em que se tornam membros ou quando ainda ocupam um posto nos escalões mais baixos da hierarquia da organização).
Segundo David Stark, antropólogo autor de uma tese de doutoramento sobre a Yakuza, em 1978, todas elas requerem “autorização do chefe” e a maioria dos membros começa por fazer uma tatuagem no ombro, a qual cobre metade do tórax superior, uma omoplata e o braço correspondente. Posteriormente, tatuam o outro ombro. Por fim, segundo descreve Stark, é acrescentada uma imagem nas costas que cobre toda a parte superior do corpo.
Quando esta fica concluída, fazem uma tatuagem no estômago. Tal como entre os vori, “as tatuagens nas pálpebras e no pénis são consideradas o grande teste de resistência à dor e conferem enorme prestígio”. As tatuagens mais comuns deste grupo são os dragões, as carpas, demónios, crisântemos e monges embriagados.
Em Portugal, no final do século XIX e início do século XX, as tatuagens começaram a tornar-se também elas cada vez mais comuns entre as “camadas populares”. E eram mesmo consideradas uma marca distintiva de quem se movimentava nos meios marginais: havia por isso, uma relação entre “a tatuagem, o tatuado e o criminoso”.
Somente na segunda metade do século XX é que a tatuagem “ultrapassou” barreiras e começou a representar um símbolo de personalidade, “ramificando-se” em várias direções.