Num tempo em que as estrelas Michelin têm o prestígio dos títulos nobiliárquicos, das canonizações religiosas, dos prémios literários, dos óscares do cinema ou das taças do desporto, como assinala um editorial recente da revista Electra, cujo dossier é dedicado ao tema da comida, Anthony Bourdain foi o Humphrey Bogart na elevação dos chefs a vedetas espectaculares. Poucas figuras das que emergiram para ditar as leis da “ciência da boca” levaram existências mais pródigas na busca do sabor supremo enquanto novo graal, nesta época em que os restaurantes, sejam os mais inacessíveis e luxuosos ou aqueles clandestinos e que obrigam a um certo risco, se tornaram “lugares de veneração e liturgia”. Bourdain cultivou como ninguém a imagem do safardola que se anima na busca desses prazeres que roçam o lado selvagem da vida, e isto com uma lendária atitude despudorada, a de quem não estava com merdas e revelava os podres a par dos aspectos mais gloriosos do mundo da cozinha. A sua vida estendia aos milhões de pessoas que o seguiam, fosse na série de programas televisivos que fizeram dele uma celebridade internacional, fosse nos vários livros que escreveu, um convite a que o invejassem abertamente. Ali estava um tipo que parecia ter sido investido pelas aspirações de todos nós de um dia nos libertarmos das servidões do quotidiano para atingir o zénite nesse desejo tão comum de dar cabo da traça, encher o bandulho com o manjar dos deuses. Mas se Bourdain era o Virgílio para o nosso Dante nessa descida às cozinhas mais diabólicas e inspiradas à volta do globo, isso deve-se à sua fama não provir da irradiação de um brilho distante, essa graça estelar que associamos aos actores e aos músicos, mas era algo mais como sentir um braço passar-nos sobre os ombros. Como notou Helen Rosner na The New Yorker, ele era como um irmão, aquele tio bacano ou um pai em perpétuo estado de graça – o mais espontâneo e iluminado dos teus amigos, esse que ficava ainda pela rua depois de terem erguido um bom cemitério de garrafas no bar da esquina e que, certo dia, acabou por ser apanhado pelos holofotes e se deixou ficar por lá. Assim, sendo uma figura que se tornou tão íntima de tantos, a notícia do seu suicídio, aos 61 anos, num quarto de hotel enquanto filmava um dos episódios da 12ª temporada do programa Parts Unknown, em França, foi um dos mais rudes e desconcertantes golpes nos últimos anos sentidos pelo público que se interessa seja por comida seja por viagens. Num dos seus livros, Bourdain explicava como as duas coisas se ligam, e como, no fim de contas, o que interessam é as marcas mais fundas, aquelas que atingem os ossos e podem depois ser lidas no exame post mortem: “As viagens transformam-te. À medida que cruzas por esta vida e este mundo, as coisas são subtilmente alteradas pela tua passagem. Deixas marcas, mesmo que pequenas. E, em troca, a vida – e as viagens – marcam-te a ti. A maioria das vezes, essas marcas – no teu corpo ou coração – são belas. Mas acontece também, por vezes, estas magoarem.”
Tendo em conta a proximidade que Bourdain cultivou com a sua audiência e leitores, era de esperar que um documentário sobre a sua vida provocasse reacções apaixonadas, ainda para mais um com a assinatura de Morgan Neville, que tem já no seu currículo uma série de explorações do género sobre figuras como Keith Richards (Under the Influence, 2015), Brian Wilson (A Beach Boy’s Tale, 1999) ou Johnny Cash (Johnny Cash’s America, 2008). Foi também produtor de dezenas de títulos e venceu o Óscar de Melhor Documentário por Twenty Feet From Stardom (2015), sobre os cantores que fazem os coros das estrelas. Tudo servia para elevar as expectativas em relação a Roadrunner: A Film about Anthony Bourdain, documentário que estreou a 16 de julho, e que logo no trailer se esquivava do simples registo hagiográfico, prometendo mergulhar nalguns aspectos mais negros, apresenta-o como um homem capaz de ser nuns momentos o herói e noutros o vilão. Como se ouve logo no início e na própria voz de Bourdain, que aqui e ali é chamado ao papel de narrador deste documentário póstumo: “Provavelmente ias acabar por descobrir isto mais tarde ou mais, por isso, aqui vai uma espécie de aviso preventivo: Isto não vai acabar num final feliz.”
Ao longo de duas horas, contando com material inédito dos bastidores, vídeos caseiros e entrevistas não só com os colegas de produção ou restauração, mas também com alguns dos seus entrevistados mais marcantes, Neville traça um retrato sensível e complexo de Bourdain, ficando claro que por baixo da vivacidade e de toda a ousadia, estava ali um tipo marcado por experiências bastante duras. Já as suas memórias, em Cozinha Confidencial como noutros livros, davam conta de que passou boa parte da adolescência e da juventude a lidar com acessos de raiva, tendo-se virado para as drogas duras entre outros comportamentos destrutivos. O divórcio dos pais foi uma ferida que não cicatrizou inteiramente, e depois ele mesmo acabaria por divorciar-se da namorada do liceu, tendo o casamento durado mais de duas décadas, com a ruptura a dar-se em 2005, pouco depois da sua ascenção à fama. Anos mais tarde, quando a dissolução do seu segundo casamento, com Ottavia Busia, mãe da sua filha, foi tratada entre os mexerciso dos tabloides, Bourdain deu sinais de estar a ficar agastado com o lado mais perverso da fama, que leva o público a sentir-se autorizado para espiolhar a vida íntima de figuras como ele.
O documentário salta o período da infância, não perde demasiado tempo com os primeiros 43 anos da vida de Bourdain, e prefere arrancar com o seu renascimento ao tornar-se uma celebridade intântanea graças ao imenso sucesso de vendas de Cozinha Confidencial, publicado em 2000. O filme relembra-nos os contrastes e até os desequilíbrios de um personagem que, antes de se dedicar ao registo memorialista se dedicou à ficção, e durante anos estduou com fascínio essas existências que resvalam para as zonas de treva e os actos inconfessáveis. Porque Bourdain começou por escrever romances com “tipos que se levantam todas as manhãs, escovam os dentes, passam pelo duche, barbeiam-se, e depois vão para o trabalho e se dedicam com empenho à arte de cometer crimes”, como escreveu num ensaio. “Estes seus os personagens que continuam a dominar os meus devaneios”, adiantava. E Helen Rosner vinca que no crime não há apenas transgressão, mas clareza: viver num estado conspirativo, descobrindo o mecanismo interno da máquina, sabendo o que realmente se passa. Foi com este balanço, acrescenta ela, que se lançou na escrita do ensaio “Don’ Eat Before Reading This”, que, publicado nas páginas da The New Yorker, em 1999, causou um tal fuzué que logo Bourdain deu por si com uma série de editoras à perna, querendo oferecer-lhe um avanço chorudo pelo livro que ali se adivinhava. Detenhamo-nos numa das mais célebres passagens do ensaio e do livro: “A gastronomia é a ciência da dor. Os profissionais da cozinha pertencem a uma sociedade secreta cujos rituais ancestrais derivam dos princípios do estoicismo perante a humilhação, a lesão, o cansaço e a ameaça da doença. Os membros de uma equipa de cozinha coesa e bem oleada parecem-se muito com a tripulação de um submarino. Confinados durante a maior parte do tempo em que estão acordados a espaços quentes, sem ar e comandados por líderes despóticos, frequentemente adquirem as características dos miúdos pobres alistados nos navios reais dos tempos napoleónicos: superstição, desprezo pelos forasteiros e lealdade a nenhuma bandeira que não a sua.”
O documentário passa a maior parte do tempo de volta da súbita ascensão à fama de Bourdain, de como deixou o trabalho as funções de cozinheiro no restaurante novaiorquino Brasserie Les Halles, se despediu igualmente do anonimato, da mulher de sempre, escapou ainda de uma série de outros vícios e se virou para o jiujitso, enquanto produzia e protagonizava programas para a CNN que o faziam passar 250 dias do ano na estrada. O filme não se fica por aqui, mas é preciso interromper aqui a transmissão porque, depois de este se ter apresentado no mês passado no festival de Tribeca, em Nova Iorque, sendo recebido de forma entusiástica pela crítica, e depois de uma estreia nas salas de cinema que, tendo atraído bastante gente, representou um balão de ar para esses cinemas de bairro mais ameaçados pela pandemia, na semana passada Neville deu por si enredado numa dessas tempestades nascidas num copo de água que ameaça pôr em causa a seriedade das duas horas do filme por causa de uma opção questionável que afecta 45 segundos deste. Em duas entrevistas dadas pelo documentarista à The New Yorker e à GQ, este admitiu que tinha recorrido a um programa de inteligência artificial para simular a voz de Bourdain, usada então para ler três frases que ele nunca disse em voz alta, mas escreveu. O modelo criado partiu de 10 horas de gravações e conseguiu enganar toda a gente. Mas depois de Neville ter confessado o truque que usou, as reacções indignadas começaram logo a borbulhar no tacho antes de fazerem explodir a tampa com o maior estardalhaço possível, derramando a sopa. “Quando eu escrevi a minha crítica ao filme não sabia que os autores tinham recorrido à inteligência artificial para falsear a voz de Bourdain”, escreveu no Twitter Sean Burns, crítico da estação pública de rádio de Boston, que fizeram já uma apreciação negativa do documentário. “Parece-me que isto vos diz tudo o que precisam de saber sobre a ética das pessoas por trás deste projecto.”
Depois do drama e do horror, dessa ira inflacionada e que cansa mais do que convence seja quem for, vale a pena lembrar as palavras de Sam Gregory, um realizador que se tem dedicado a explorar as implicações éticas na utilização do vídeo e da tecnologia, e que, numa entrevista a Helen Rosner sobre o recurso ao programa de inteligência artificial para recriar a voz de uma pessoa desaparecida, lembrou que quando um narrador num documentário lê uma carta escrita por algum soldado no tempo da guerra civil ninguém se lembra de vir barafustar e falar em questões de ética. E aqui, a propósito da arte de contar histórias, seja em filme, seja por escrito ou por qualquer outro meio, o melhor é dar a palavra a Bourdain, um ávido leitor e um cinéfilo obsessivo, que não se limitava a buscar ali uma forma de diversão mas que afinava assim as ferramentos do seu ofício, e que provou ser um fabuloso criador com os meios audiovisuais, tendo desenvolvido cada episódio de Parts Unknown “como se se tratasse de uma longa-metragem, planeando com detalhe cada plano, cada excerto musical, cada floreio visual”, como anota Rosner. E com este mesmo espírito de empenho elevado à transgressão falava igualmente sobre o balanço que o animava nas suas viagens em Cozinha Confidencial: “Queremos realmente viajar hermeticamente selados num papamóvel pelas províncias rurais da França, do México e do Extremo Oriente, comendo apenas nos Hard Rock Cafés e McDonalds? Ou o que queremos é comer sem receios, atacando os guisados locais, devorando a humilde carne mistério da taqueria, a sincera dádiva que nos fazem ao estenderem-nos a cabeça de um peixe passada levemente pelas brasas? Eu sei o que quero. Quero tudo. Quero experimentar tudo pelo menos uma vez.”