Os homens e as suas máquinas que vão desfazendo o mato que cresceu do lado de lá do rio, até junto da sua margem, fazem um barulho monótono como o de milhares de vespas que ameaçassem, ao longe, a tranquilidade quente da manhã. Um cheiro a salsugem mistura-se com o das sardinhas que a vizinha do café em frente assa na Travessa do Batel num grelhador tão pequeno como eficiente. Um céu azul-ferrete, igual ao céu de Lisboa do Eça, vai de horizonte a horizonte, sobrepondo-se à verdura esmeralda dos arrozais.
Só o Sado se mantém teimosamente castanho dos lodos que a corrente e as marés remexem. É uma imagem de revolta, ao mesmo tempo, em toda esta pacificação quente, de um calor que ferve. Uma mãe pássaro trouxe o filho até ao parapeito da minha varanda e usa os grãos de arroz que lá deixo todos os dias para o alimentar nesse carinho único de pássaros que é o de lhe levar com o bico a comida ao bico aberto e ávido. Fico preso esse momento, talvez vulgar mas ao mesmo tempo de uma magia que desmente a frase assassina de Shakespeare no seu inimitável McBeth: “A vida é uma sombra que vagueia e uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, que não significa nada”.
Faulkner soube aproveitá-la para escrever um livro inquietante – O Som e a Fúria. Não há fúria para lá da varanda, só sossego. O som repetitivo das vespas gigantes que sobrevoam poças de água apodrecida. Benjy Compson, o deficiente mental de William Faulkner, escreve-nos desarticuladamente, perdido no tempo, não distinguindo o presente do passado. Há homens que precisamos de ler para aprender a escrever. Há livros que precisamos de ler para aprender a existir. Sento-me por momentos, numa das minhas fases de hélio tropismo, rodando a favor do sol. É engraçado. O sol, hoje, está furioso e queima-me a pele como se me castigasse por não escrever. Não há livro nenhum que me ensine a verdade escondida do sol.