Quando lançou o mercado interno Jacques Delors tinha perfeita consciência dos efeitos destrutivos da abertura dos mercados nacionais à concorrência de agentes económicos externos. A liberalização (ainda que parcial) de diversos sectores foi profundamente destruidora de tecido produtivo e de empregos, em muitos casos de trabalhadores que já não voltaram a encontrar ocupação remunerada durante a vida activa. Por estas razões o mercado interno foi acompanhado de uma mecanismo re-distributivo de riqueza, a financiar pelos Estados-membros cujas economias mais lucrariam com a abertura dos mercados e em benefício dos Estados-membros cujo tecido económico mais sofreria com esta abertura. Nasceram assim os “fundos europeus”, com natureza compensatória e, supostamente, temporária, limitados ao período necessário ao equilíbrio das diversas economias. O que Portugal fez com os fundos está, em parte, à vista de todos, sob a forma de rotundas (símbolo da verdadeira economia circular). A outra parte dos fundos desapareceu, rápida como os Ferraris que no final do século passado se multiplicaram pelo Vale do Ave, conduzindo à maior capitação mundial de Ferraris por milhar de habitantes.
O programa recentemente apresentado pela Comissão Europeia para mitigar os efeitos das alterações climáticas tem uma ambição semelhante à criação do mercado interno. Com o “Fit for 55” a União Europeia torna-se, a par da Albânia, uma superpotência na produção de slogans.
O programa tem um potencial destrutivo de tecido económico e de emprego semelhante ao do mercado interno. No entanto o envelope financeiro alocado à compensação dos custos sociais e económicos é infinitamente mais pequeno (77 000 milhões de euros distribuídos por vários anos) e assenta em novos recursos próprios de natureza contingente como são os resultados dos leilões de direitos de emissão de gases com efeito de estufa ou dos direitos alfandegários que onerarão alguns produtos importados de espaços económicos onde não há tributação do carbono.
A descarbonização da economia implica energia mais cara e, consequentemente, produtos e serviços mais caros. A descarbonização opera como um imposto indirecto, cego e igualitário, perante os consumos de ricos e de pobres. Como todos os impostos indirectos o potencial multiplicador da desigualdade é enorme. “Carbono é coisa de pobre!”, seja-nos permitido mais um slogan. A descarbonização afectará desproporcionadamente os não possidentes. Proíbam-se os motores de combustão fóssil! Que percentagem da população tem disponibilidade financeira para adquirir veículos eléctricos num contexto em que o transporte público é disfuncional ou, em inúmeras geografias, inexistente?
A descarbonização promoverá a luta de classes, por via da multiplicação do desemprego em indústrias tradicionais assentes em mão de obra intensiva, futuros ex-trabalhadores demasiado velhos para a requalificação e demasiado novos para a reforma. O potencial revolucionário da descarbonização não deve ser menosprezado num contexto em que por mor do Covid assistimos à explosão do conflito social na África do Sul ou em Cuba.
A descarbonização não se fará sem capital, coisa escassa em Portugal. Atrair investimento estrangeiro para os melhores projectos em matéria de energias renováveis exige pro-actividade por parte dos que governam a coisa pública. E exige coordenação entre os diversos departamentos da Administração em defesa da indústria nacional. Convirá que a negociação do pacote legislativo apresentado pela Comissão nos corra bem, para que não tenhamos só carbono onde os outros conseguem ter economia.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990