Pavel Chigrin e Aleksander Koslov, dirigente do Torpedo de Moscovo, tinham tido direito, na véspera, a uma noite especial. O presidente do Benfica, Ferreira Queimado, resolvera receber com pompa e circunstância o primeiro clube da então URSS a cruzar-se com os encarnados nas provas europeias. Meteu um jantar lauto. E brindes. E uma notícia que agradou especialmente aos benfiquistas. já se tinham vendido 80 mil bilhetes para o jogo, qualquer coisa como 11 mil e 500 contos em caixa. Convenhamos: não é propriamente de admirar. A URSS despertava a curiosidade de todos.
Os regimes políticos de ambos os países, acentuavam as distâncias. Não faltava exotismo na festa da Luz.
John Mortimore, o inglês que treinava o Benfica, não era de deixar coisas ao acaso. Percebeu que, tendo uma equipa com várias caras novas e sem poder contar com o magnífico Vítor Martins, o popular garoupa, que cerca de dois meses mais tarde, após uma operação ao menisco, viria a sofrer uma embolia o que tiraria definitivamente dos campos de futebol, não havia condições para se lançar à bruta para cima de um adversário que tinha a fama de defender com extremo rigor.
Viviam-se momentos de saudade. Saudade de Eusébio, de Coluna, de José Torres. Saudade de um verdadeiro Benfica com estofo europeu capaz de despachar facilmente o campeão da URSS e não sair da Luz com um preocupante e evitável zero-a-zero. Zarapin, o guarda-redes do Torpedo teve noite de trabalho, mas ninguém o obrigou a milagres. O ritmo foi lento e os campeões nacionais pouco clarividentes. O povo queixou-se.
Oitenta mil ansiosos por um golo, pelo menos um golo, e os moscovitas ali, firmes, sem tremerem, de disciplina quase militar, marcando em cima quem criava perigo, mantendo ao longe os mais criativos do meio-campo encarnado – José Luís, Shéu e Chalana -, dominando por completo a dupla de ataque formada por Nené e Celso. Quem fora à Luz com a curiosidade de espreitar uma equipa vinda lá das imensidões soviéticas, ficara com a certeza de que não era fácil desmembrá-las, por maior que fosse o otimismo guardado para o jogo de Moscovo, quinze dias depois.
Repetição Não havia quem não batesse na tecla da excessiva juventude do plantel encarnado. Só para que fique um exemplo, o melhor em campo no jogo de Moscovo foi Eurico Gomes que, por acaso, comemorara nesse dia uns tenros 22 anos. A média do conjunto que entrou no relvado para a segunda mão foi de 23,5 anos.
Por seu lado, Vítor Baptista, o tresloucado ponta-de-lança que viera de Setúbal por um balúrdio mais José Torres, resolveu ter uma das sua crises de vedetismo bacoco e recusou-se a jogar, justificando que precisava de se manter em forma para o encontro da seleção nacional daí a uns dias, na Dinamarca. Foi de imediato suspenso pela direção do clube, como está bem de ver, e largou os companheiros à fúria dos moscovitas que se convenceram profundamente de que iriam apurar-se para a segunda eliminatória.
Mortimore, apesar de inglês, tinha uma habilidade especial para montar rígidos esquemas defensivos. Eurico secou Iurine, Pietra deu cabo da noite a Sakharov com uma marcação perfeita, Alberto tirou proveito do seu enorme pulmão para defender e atacar à sua vontade provocando na defesa russa meia-dúzia de aneurismas. Contra os 90 minutos em branco de Lisboa, seguiram-se noventa minutos em branco em Moscovo, mas agora com a obrigação de mais trinta do prolongamento.
Ora, como seria de esperar, pelo que já se vira, foi mais do mesmo. Ambas as equipas protegeram ferreamente as suas balizas, os guarda-redes Bento e Zarapin aplicaram-se, aqui e ali, em movimentos elásticos que fizeram o povo bradar de entusiasmo, mas as grandes penalidades foram praticamente inevitáveis. Manuel Galrinho Bento, nascido na Golegã a 25 de Junho de 1948, esfregava as luvas com força uma na outra. Não era apenas o frio, era a convicção profunda que chegara a sua vez de decidir o jogo. Tal e qual.
Pietra foi o primeiro a marcar – 0-1; Iurine, o segundo, não teve nem arte nem engenho para se libertar do voo do keeper português; José Luís foi simples e prático – 0-2; Nikonov, talvez assustado pela forma como Bento, com o seu metro e setenta e três parecia ocupar a baliza por inteiro, tanto tentou desviar a bola dele que a chutou para fora; Chalana foi o seguinte – 0-3.
Tudo estava praticamente arrumado. Finalmente, Belenkov acertou com a baliza – 1-3. Com a maior tranquilidade do mundo, como se andasse a passear pelos campos do seu Ribatejo, apanhando papoilas e miosótis por entre a gipsofila, Bento, o Manel, pegou na bola e foi lá medir-se taco a taco com Zarapin. O pontapé levou força e colocação, o Torpedo estava fora, o Benfica continuava na Taça dos Campeões, embora não por muito mais tempo.
Houve quem fizesse as contas, logo ali ao lado: era o sexto penalti que Bento marcava na sua carreira, não falhara sequer um, estava mais do que habilitado para fazê-lo. O Benfica regressava a Lisboa com a alma tranquila e com a sensação do serviço cumprido, mas a braços com um problema daqueles chatos como a potassa: o de perceber como endireitar o seu avançado-vedeta, Vítor Baptista. Com o tempo, os seus dirigentes perceberam que era caso sem remédio…