Rachilde. O Farol Pérfido

Rachilde. O Farol Pérfido


Publicado pela primeira vez em 1899, O Farol De Amor de Rachilde (1860-1953) é um romance impactante que se impõe entre as vagas de um mar colérico e tenebroso e o abismo de dois homens que há muito andavam ao largo deste mundo.


Editado pela Sistema Solar, com tradução e apresentação de Aníbal Fernandes, esta obra testemunha um universo ‘fantástico realista’ de uma autora contemporânea de Gide, Georges Duhamel, Mallarmé, Jules Romains, ou Colette, que, no século XIX, soube com maestria e originalidade roer o feminino até ao tutano. 

Lemos no excelente texto de apresentação de Aníbal Fernandes que “esta amazona estreia-se como romancista numa época bastante descrente de talentos literários na Mulher. Desde as Madames de la Fayette e Stael, desde Georges Sand, nada via em letras no feminino que merecesse respeito”. Mas Rachilde à custa de uma perversidade inquieta e um carisma assombroso veio dar provas daquilo que seria o escudo do seu percurso literário.

Considerada por Huysmans a única mulher de letras que era realmente um escritor ou por Barbey D’Aurevilly uma “pornógrafa distinta”, Rachilde já anos antes desta obra tinha escrito Monsieur Vénus, cujo conteúdo era, de acordo com Maurice Barrès, também “malignamente feminino e peregrinamente infame”.
 
Casada com Alfred Valette, crítico literário, ensaísta e proprietário da Mercure de France, Rachilde rapidamente ocuparia um dos lugares de maior destaque no campo das letras. Um destaque que, acima de tudo, se pautou por estar envolvido em laivos de imoralidade e escabroso fetichismo. É curiosa a epígrafe de Léon Bloy que Aníbal Fernandes resgatou para a sua introdução: “A literatura de Rachilde, essa vermelha e ardente loucura”.

Teatro, poesia, novelas, esta autora publicou entre muitos outros livros, Nossa Senhora Dos Ratos (também editado pela Sistema Solar), Animal, A Hora Sexual, O Homem dos Braços de Fogo, Porque Sou feminista ou Retratos de Homens.

Neste último livro, Retratos de Homens, apenas constam escritores que muito admirava: Verlaine, Lorrain, Tailhade ou Delafosse. Mas, dessa lista, nomes como Gide ou Proust não se fizeram constar. Rachilde abominava Proust por exemplo. E a par destes Retratos nunca se viu uma edição dos mesmos no feminino. Isto porque Rachilde tinha pouca estima pelo que as mulheres da sua geração escreviam, considerando-as profundamente medíocres ou insignificantes.

Conhecida também por escrever num ritmo alucinado, Rachilde nunca se desviou de temas escabrosos, mesmo que a crítica nem sempre a vangloriasse. Mas, embora este livro em particular, tenha sido um romance considerado imoral, nem por isso o público deixou de se fascinar com a história macabra destes homens.

“O público, esse, fascinava-se com O Farol de Amor, que encontrou percorrido por uma linguagem de oralidade naturalista de boa carreira na escola de Zola, rendida embora a uma sinfonia romântica recuperada, sentia-se, dos juvenis infernos de Victor Hugo no seu primeiro romance Han de Island, e dos momentos mais bravios de Petrus Borel. O seu lado feiticista e necrófilo acrescentava a este quadro a ‘pimenta fim-de-século’ que andava em Paris pelo ar.”

Não é de espantar que esta oralidade movida pelos ideais românticos e somada a um universo fantasioso tenha mobilizado o imaginário do público. Logo a começar pelo título facilmente podemos adivinhar que este tenha causado uma certa estranheza e curiosidade, já que é um título que imediatamente associamos a elementos sexuais. De acordo com Aníbal Fernandes, “o farol, símbolo fálico, e as águas, símbolo matricial feminino, passam em Rachilde por uma relação demente; e o que aprendemos como metáfora neste Farol de Amor resulta em grande parte de uma escolha nada inocente de palavras, de uma sugestão de cheiros e cores”.

Nada é inocente em Rachilde. O mar, a terra, os animais, as palavras, as mulheres. Nem de propósito, as mulheres são nesta narrativa o maior exemplo de malícia. Uma malícia que nos faz transir. Elas são as moscas varejeiras a zumbir o coração consumido dos homens. São elas os vermes a caracolear a sua virilidade gretada. São elas a fantasia e a demência a apertar-lhes a corda à volta da garganta.  

Jean Maleux e Mathurin Barnabas, as duas personagens principais, são os guardiões do farol Ar-Men. Um farol pérfido amaldiçoado pela fraqueza humana.

Maleux é um jovem que é colocado como ajudante ao lado de Barnabas, o guarda-chefe experiente e assustador que há anos não pisava terra firme. Um homem bizarro que bebia de golada cada naufrágio que dava à costa deste farol.

São naufrágios que despejavam além de pipas, traves de madeira, latas de conserva e marinheiros insuflados de água, corpos de lindas e formosas mulheres. Mulheres que aguçavam o apetite mórbido do velho Barnabas. Mas se ao jovem Maleux todos esses corpos provocavam vertigens, ao velho homem provocavam regozijo.

Esta dicotomia do belo versus horrível e da candura de Maleux em oposição ao canibalismo de Barnabas é também um eixo importante no delinear dos perfis das personagens, assim como no julgamento que delas fazemos. 

Embora ao longo do texto Rachilde nos vá dando pistas do que se irá passar, o clímax da acção dá-se quando Maleux descobre o corpo de uma mulher presa num armário.  

“Fiquei por um instante colado à parede, com cabelos que o terror punha de pé e as palmas das mãos molhadas, a aguentar-me ali por milagre. Era um engano, com certeza, eu devia estar a sonhar! Podia lá ser. Atrás da grelha de ferro, o vidro intacto estava embaciado. Dir-se-ia que dentro da janela havia água. Como que eram paredes de um aquário onde nadava um monstro raro. Mas eu via ainda assim o suficiente para identificar ali uma comprida cabeleira lacrimosa, loura e deslavada, quase branca, a rodear o oval de um rosto horrivelmente triste, um jovem rosto de mulher que contemplava o oceano com olhos cheios de lágrimas.”

É importante nesta descrição termos em conta que esta é a primeira e única vez que nos deparamos com uma mulher em lágrimas, já que em todos os outros momentos as mulheres são sempre associadas à supremacia. Uma supremacia enraizada nas garras do mal. Um mal que de certa maneira as eleva colocando-as num plano inatingível.

São elas as dissimuladas, as traidoras. São elas as rameiras que lhes ficam engasgadas nas gargantas. Também é importante frisar que Marie, a jovem por quem Maleux se apaixona numa das suas folgas, se aparenta com um rapaz. “Ela olhava para mim intensamente, com um ar de rapaz descarado… era realmente mais garçon do que garce…”

Descaradas, atrevidas, afoitas, arrapazadas. São assim as mulheres Rachildianas. Pressentimo-las dissimuladas a arrastar atrás de si um manto de malvadeza viciosa. Uma malvadeza vigilante e sedutora que encapela, tiraniza e tresvaria o sexo masculino. Uma malvadeza incurável. “No casamento, a mulher é a desgraça.”

Nesta ficção a mulher é invariavelmente o reflexo enegrecido da má sorte, da desgraça. O velho Barnabas nunca conseguiu ultrapassar a traição da mulher, da mesma maneira que Maleux também nunca ultrapassaria o facto de uma apaixonada de Brest ou de Marie, a jovem rapariga que lhe tinha prometido noivado, não ter esperado pelo seu regresso a terra. “(…) as mulheres são carraças”. É o amargo faroleiro quem o diz, mas Jean Maleux contraria a todo o momento as ideias do seu chefe em nome de um amor e de uma cabana. Afinal ele é o protótipo do homem sonhador, o homem que idealiza uma casa e uma família, embora no fim ele jure, desacreditado de tudo, não mais voltar a ver terra.

Perante esta sua alienação, só existem duas situações em que o leitor não fica do lado dele. Uma quando Maleux esfaqueia a prostituta que lhe cai em beijos nos braços no meio da rua, e outra aquando da primeira mulher nua que vê morta a boiar junto aos rochedos do Ar-Men. Nesta passagem ele reage de uma forma perversa quebrando as expectativas que tínhamos criado sobre a sua personalidade.

“Cabelos… cabelos muito compridos e soltos, uma mulher, e esta sem cinto de salvação. Uma mulher que o sol morno de junho ia decompondo. Apetecia-me chorar e … Apetecia-me rir com um mau riso de rapaz que troça da vergonha das raparigas nuas.”

Mais do que denunciar e reduzir o comportamento de Maleux a uma infantilidade masculina abominável, Rachilde compromete o leitor com este rivalizar inesperado de atitudes. Porque só desta forma ela pode deter e controlar em absoluto o íntimo dos seus personagens. Só assim ela poderá confirmar ao leitor que ele não pode ou deve ficar obcecado com uma certa e determinada imagem que idealiza acerca de uma personagem. Acerca de uma personagem ou mesmo do amor. “Ai dos que amam o amor!”

Como se pode confirmar uma vez mais, as mulheres são sempre seres sem salvação. “Eu teria salvo a pobre galdéria se estivesse viva. Mas dá-se o caso de estar quase podre, e por isso… assim como assim, prendi-a com dois laços de corda.”

Vejamos como a morbidez de Rachilde é vertiginosamente hipnótica, pasmante e imprevisível e como o leitor se sente sugado por uma maré de mistério e devassidão. E é nessa devassidão, especialmente na do velho, que ele sente o marulhar da realidade. O despedaçar da realidade. “Apareceu como um anjo (…) Veio atrás de um barco que se virou… e tinha morrido apenas há dois dias, não estava inchada nem esverdeada; novíssima, a pobre galdéria … e virgem … uma menina rica.”

São estas passagens que nos intimam para um universo de total horror e é aqui que que se consuma em pleno o fantástico na literatura de Rachilde.
Sabemos que a dimensão onírica é algo que cruza vários trechos do enredo, mas o culminar do fantástico dá-se no momento em que Maleux com a chave do velho já moribundo abre o armário onde estava escondida a mulher. “Nenhuma mulher! Nenhum cadáver, nenhum esqueleto. No vão da janela, mesmo à sua frente e com um véu de embaciado verde, só uma estranha planta num vaso de cristal, um desses vasos largos que servem para pôr frutas a cristalizar … e onde os farmacêuticos põem venenos. Era uma planta que expandia à volta da jarra luxuriosos ramos louros, untuosa ao toque, muito parecida com uma cabeleira. Dei uma volta ao frasco e vi a cabeça oscilar um pouco, os olhos vazios encherem-se de claridades, irisarem-se através do álcool. Trouxe-a comigo; e, para não ver aqueles olhos, durante a descida atirei para cima deles o casaco. O velho acariciou com tenazes de caranguejo a cabeleira que a partir de uma base de cortiça se derramava em cascatas leves.”

É incrível como, até mortas, os olhos das mulheres são capazes de aturdir os homens, são capazes de os açambarcar. Mas nem assim, em nenhum momento, a expressão corporal feminina é condizente com a masculina. E Rachilde é perita em criar essa impossibilidade, essa desarmonia e rixa entre géneros. Daí o factor excitação. Porque é neste conflito de géneros, nesta mutação centrifuga, que o seu pulsar literário se intensifica.

Mas o conflito de géneros não se vivencia apenas entre homem e mulher já que Rachilde atribui à natureza, neste caso ao oceano, um misto de características masculinas e femininas indeslindáveis umas das outras. Não estamos diante de uma simples personificação. 

Porque se ao velho Barnabas ela concede atributos femininos (tal como aconteceu com o florista efeminado de Monsieur Vénus), como a voz estridente ou o facto dele várias vezes usar colado ao seu boné diferentes melenas de cabelos rapados das mortas que apanhava sem vida, também vemos sublinhada a sua brutalidade ou os seus modos selvagens, tão associados à virilidade dos homens do mar. “Punha com todo o cuidado o boné, para deixar bem penduradas as orelhas de cão escuro, orelhas de lobo que tapavam orelhas de homem e lhe davam um ar mais velho ou mais novo, ora pondo à mostra no seu rosto nu de velha bêbada, ora um ar de mundana a caminho do baile, encapuchada com uma capelina muito ridícula para não estragar o edifício construído pelo cabeleireiro. Mas ele também me fazia lembrar uma negra de Argel que andava pelas ruas sujas de venda na cara porque tinha acabado de arrancar os dentes.”

Como se pode constatar em Rachilde nada, nem ninguém está catalogado. Tudo é vertiginoso, transbordante. É como se o desgosto fosse uma cárie inadiável e necessária. “Quem quebrou o homem solitário, tão farto de isolamento? A vida, a implacável vida. Quem embalou o homem solitário, para lhe dar no repouso um instante de consolo? A morte, a implacável morte! E quando despertamos, vamos ver a erva nascer, à procura de uma esperança…”

A ironia é sem dúvida outro farol que Rachilde nos oferece. Mas este é um farol, que ao contrário do amor, não nos permite cegar.

Debrucemo-nos novamente na combinação efeminada do velho guarda-chefe e vejamos como também ao próprio mar é atribuída essa mesma combinação de características femininas e masculinas. Vejamos como muitas vezes, o próprio mar também nos é descrito ora como se fosse uma fêmea, ora como se fosse um macho. “Corria por baixo de mim com ar inocente, deitava-me olhares de donzela.” ou “O grande queixume do mar subiu, rodeou-nos com os seus soluços convulsivos (ele chora sempre sem saber porquê). E impressionava-me tanto como o lamento de uma esposa atraiçoada.”

Mas embora encontremos um rasto masculino neste mar, durante toda a tragédia ele é na maioria das vezes uma Ela, “uma expulsadora de homens”. E o próprio farol não passa de um joguete, de um “homenzinho de pé” nas suas entranhas femininas.  

Esta imagem de “homenzinho de pé” coloca uma vez mais os homens emparedados em fachos de betão armado. É que mais do que as galdérias afogadas, são eles as criaturas indefesas e desalumiadas desta narrativa. Mas tal e qual estes homens indefesos, o leitor também se sentirá frágil como um mastro de um navio a naufragar na Baía dos Finados. Também ele sentir-se-á aterrado ao ouvir o canhão das marés e o eco calafetado da solidão.