À primeira vista, Kashe Quest aparenta ser apenas mais uma criança tímida e feliz. Com seus cachos selvagens, seus grandes olhos esbugalhados e grande sorriso aberto, na verdade, nunca desconfiaríamos da genialidade por trás dessa pequena e brilhante figura. Talvez por estarmos demasiado habituados aos processos “naturais” desta idade: aprender a brincar, explorar os sentidos com a entrada no “mundo” das palavras, com a gestão do equilíbrio motor… Começar a fantasiar e a ser curioso…
Na realidade, Kashe também faz parte do grupo dos “curiosos”. Contudo, as suas curiosidades foram para além daquilo que os pais pudessem sequer imaginar e, com apenas dois anos e um QI de 146, em março do ano passado, tornou-se o membro mais jovem dos EUA que a famosa associação Mensa – a mais antiga e mais famosa sociedade de alto QI do mundo que se destina à associação entre pessoas com quocientes de inteligência nos 2% do topo de qualquer teste de inteligência padrão aprovado – já aceitou.
O crescimento "singular" de Kashe
“Aos 18 meses, ela já dominava praticamente o alfabeto todo, os números, as cores e formas”, começou por revelar Sukhjit Athwal, mãe de Kashe, ao programa de televisão matinal norte-americano transmitido diariamente pela rede televisiva ABC, Good Morning America (GMA). “Começámos a perceber que isso era algo bastante avançado para a sua idade, decidimos falar com a pediatra, que nos sugeriu continuar a observar e vigiar esse processo”, continuou. A criança, agora com três anos, sabe nomear todos os elementos da tabela periódica, identificar todos os 50 estados dos EUA (por forma e localização), decifrar padrões de acordo com os países, contar até 100 e está a aprender espanhol.
“Mais do que qualquer coisa, ela mostrou-nos a sua propensão para explorar e perguntar o porquê das coisas”, afirmou Devon, pai de Kashe, em entrevista à CNN. “Se ela não sabe alguma coisa, quer saber o que é e como funciona e, uma vez que aprende, retém!”, adiantou, acrescentando que, assim que Kashe disse a sua primeira palavra, as suas habilidades começaram a desenvolver-se rapidamente, ao ponto da menina conseguir construir frases que continham cinco ou mais palavras. A família voltou a aconselhar-se e a pediatra sugeriu-lhes, desta vez, examinar o caso.
Sendo Athwal educadora de infância, sempre disponibilizou em casa todos os recursos de aprendizagem necessários para a sua família, contudo, a mãe afirma nunca ter “empurrado” Kashe para uma “direção específica”. “A maneira como gerimos o processo de aprendizagem nunca conteve qualquer pressão da nossa parte”, sublinhou. De acordo com os pais, foi aos dois anos que a criança memorizou os 50 estados por forma e localização e aprendeu a nomear todos os elementos da tabela periódica. Foi nesse momento que começaram a explorar as opções de “testagem”. Decidiram então levá-la a um psicólogo, que aplicou o teste Mensa: Kashe tinha um QI de 146, enquanto o QI médio na América é de 100.
Segundo Lisa Fonseca, ao telefone com o i, existem marcos de desenvolvimento que categorizam o que é “normal”, mas de forma geral aos dois, três anos “o cérebro está quase totalmente desenvolvido e é duas vezes mais ativo do que o do adulto”, declara a especialista em Health and Life Coach e Programação Neurolinguística.
As emoções e as relações sociais também têm uma grande influência: “É a partir dos dois anos que a compreensão das palavras começa a tomar lugar, ainda que o tempo de atenção seja ainda curto devido à maturidade neurológica. As competências motoras finas aprimoram-se e a criança começa a ganhar mais autonomia. A parte motora também começa a expandir-se e aparece aqui a fantasia e a imaginação em força. Começam a identificar-se com pares e começam a ter mais noção temporal e social”, esclareceu.
Mas Kashe foi mais longe e acabou por se tornar o membro mais jovem da Mensa. Para ingressar na organização, os candidatos devem “pontuar” um número igual ou acima do 98º percentil num teste de inteligência padrão. Segundo a mãe, os detalhes exatos do teste são mantidos em segredo, mas este teste foi sempre muito “performativo”: “Ela era testada continuamente até que os materiais se tornassem desafiadores ou não conseguisse determinar a sua pontuação. Estava a trabalhar a sua memória recetiva, as habilidades cognitivas e o raciocínio lógico”, explicou Athwal. Embora estimulem o desenvolvimento de Kashe e a deixem definir o ritmo do que deseja fazer, os pais dizem certificar-se que esta se mantém equilibrada.
Os interesses incluem “Frozen”, “Paw Patrol”, melancia, natação, pinturas e experiências científicas, tal como outra criança normal. “Ser criança é o mais importante”, referiu a mãe na entrevista ao GMA. “Queremos mantê-la jovem o máximo que pudermos. A socialização e o crescimento emocional são as coisas mais importantes para nós”, apontou.
E Augusto Correia concorda: “Estas são situações completamente excecionais. Uma criança que faça todos este tipo de coisas, não é ‘normal’, possui uma capacidade intelectual e cognitiva acima daquilo que é expectável para esta idade”, esclarece ao i, frisando que em muitos desses casos as famílias tendem a “estimular” esse desenvolvimento.
De acordo com o pediatra, esse pode ser um dos principais perigos inerentes a estes casos específicos: “Não é só dizer que a menina sabe contar e sabe os estados… Há muito outras coisas que são importantíssimas de avaliar numa criança desta idade! Se é uma criança que brinca, se é uma criança que socializa com as outras… Se isso não estiver a acontecer, é preocupante”, alerta o especialista.
Neste caso em específico, de acordo com todas as declarações dos pais, isso também é um parâmetro ao qual dão primazia: “Acho que a maior lição que tiramos daqui é que queríamos ter a certeza de que estávamos e estamos a dar-lhe tudo aquilo de que precisava, tanto em termos de desenvolvimento, como de curiosidade natural. Quando criamos um filho queremos oferecer-lhe todas as habilidades e essa mentalidade construtiva, para que ele se torne num bom indivíduo”, explicou a mãe.
Uma escola "especial"
Outra maneira de estimular o progresso de Kashe foi a criação (a cargo da mãe) de uma pré-escola. Sukhjit tem formação em educação e, entre trabalhar com Kashe em casa e a necessidade que se formou na sua comunidade durante a pandemia da covid-16, nasceu a Modern Schoolhouse. Nessa altura, a criança ainda tinha dois anos e a mãe explicou: “Com esta idade ela precisa de estar com crianças da sua idade e não ser pressionada a ser ou parecer mais velha do que aquilo que é”. A pré-escola foi inaugurada em outubro, para crianças dos seis meses aos cinco anos, e “alberga” 12 crianças presentes. A responsável espera agora poder expandi-la para um prédio maior para poder dar “vazão” à lista de inscrições.
Este espaço tem como objetivo “imitar um ambiente familiar natural para que as crianças se sintam seguras e confortáveis enquanto aprendem no espaço”, contou. Além da “estimulação sensorial” e brincadeiras, os alunos aprendem coisas como espanhol, linguagem gestual, como usar várias tecnologias e ioga.
Uma das coisas que aprenderam ao criar Kashe, disse Athwal, é como manter uma boa comunicação e ser “intencional com as palavras de forma eficaz”: “Além do seu alto QI, Kashe entende as emoções, entende o contexto e a maneira como comunicamos”, frisou. “Se dissermos algo incorretamente, ela corrige-nos, relembrando-nos de que não a ensinamos assim”, admitiu.
Os perigos nas crianças com alto QI
Segundo Lisa Fonseca, as “piores consequências” de uma má gestão neste tipo de situações, em que uma criança é mais desenvolvida do que aquilo que é “normal” na sua idade, prendem-se com o possível “diagnóstico errado” que poderá levar a uma “desmotivação generalizada” e até a alguns “distúrbios de relacionamento social” ou de personalidade: “A criança poderá sentir-se sempre diferente, desmotivar com tarefas diárias, ter problemas de aprendizagem entre outras promovendo uma maior sensação de vazio na vida”, elucidou, acrescentando que outro perigo é, sabendo da sua condição “especial”, a criança sentir que tem de corresponder sempre às altas expectativas – o que pode promover uma “enorme pressão no seu crescimento e desenvolvimento”.
Augusto Correia realça também a importância do equilíbrio entre o intelecto e o emocional: “Às vezes acontece que, estas crianças, ao mesmo tempo que têm grandes capacidades cognitivas, têm poucas capacidades de socialização… Uma sobrecarga de estímulos cognitivos em detrimento de outros parâmetros fundamentais do desenvolvimento. A socialização é um alimento emocional e isto mais tarde é repercutido na sua vida adulta”, alerta.
E a especialista reforça que a “humildade intelectual deve ser algo desenvolvido acima da proeza intelectual’’. Segundo Lisa Fonseca, é importante que se saiba assumir “tanto as capacidades como as vulnerabilidades”. Nestes casos, os pais devem ter atenção em não desenvolver “muito foco em toda a grandeza da criança”, pois esse tipo de incentivos podem originar ou acentuar alguns traços de personalidade mais nocivos.
Alguns sinais de QI elevado
Interrogada sobre alguns dos sinais que podem alertar para que alguma coisa “tem de ser avaliada”, Lisa Fonseca explicou que os mais comuns podem estar relacionados com a rapidez na aprendizagem da leitura, interesse em manter conversas com pessoas adultas, fazer perguntas muito reflexivas e existenciais, emissão de opiniões rapidamente, preocupação com questões sociais, preferir tarefas mais dinâmicas e mudar de interesse com facilidade. Muitas vezes, segundo a especialista, pode haver “alguma confusão com características de diagnóstico de hiperatividade mas estas não estão correlacionadas”.
Ou seja, nem toda a criança hiperativa é sobredotada e vice-versa. Quando esta é detetada é fundamental que se dê início a um trabalho multidisciplinar, criando atividades que auxiliem a criança a lidar com suas necessidades específicas, “por forma a aumentar a sua qualidade de vida e a possibilidade de atingir o seu pleno potencial humano”.
Por mais que existam testes estruturados, Lisa Fonseca afirma que “é redutor fazer-se uma avaliação deste género apenas através desses testes, sendo necessário avaliações neuropsicológicas e avaliação dos contextos familiares, escolares, bem como recolher informação sobre a sua personalidade, temperamento, habilidades e interesses.”