O justicialismo mediático


O alarido mediático à volta das detenções por alguns dias, ou de prisões preventivas por alguns meses, de figuras mediáticas, não retrata minimamente o lento desenrolar da justiça, com processos que duram anos, com crimes a prescrever…


Nos anos 40, 50 e 70 do século passado, a Argentina foi governada por um líder populista e nacionalista, Juan Perón, cuja doutrina inspirou um movimento político denominado Justicialista. O Partido Justicialista é, ainda hoje, o maior partido argentino.

Apesar de, na sua origem, estar uma visão autoritária do poder, a verdade é que os diferentes líderes justicialistas, começando obviamente por Perón, foram eleitos.

O termo, na sua versão pejorativa, é aplicado ao aprisionamento do poder judicial pelo poder político, influenciando assim decisões judiciais e controlando a seu bel-prazer o exercício da justiça.

É uma realidade típica dos regimes ditatoriais e um veneno das democracias que, uma vez instilado, as asfixia e pode mesmo matar.

Atualmente, acrescenta-se o justicialismo mediático.

A Justiça é exercida através dos meios de comunicação social, condenando ou ilibando cidadãos muito antes do seu julgamento.

Os cidadãos envolvidos vêm nas primeiras páginas dos jornais ou em longos minutos de jornais televisivos as acusações de que são alvo, vazadas a conta-gotas para alimentarem mais dias e mais minutos.

Os interrogatórios são filmados e mostrados nas televisões. As escutas telefónicas são transcritas nos jornais. Os cidadãos são seguidos minuto a minuto.

Claro que, uma vez instalado este clima, as defesas usam também as suas armas e servem-se da comunicação social da mesma forma, num comércio pouco saudável para o jornalismo.

O alarido mediático à volta das detenções por alguns dias, ou de prisões preventivas por alguns meses, de figuras mediáticas não retrata minimamente, antes esconde, o lento desenrolar da justiça, com processos que duram anos, com crimes a prescrever, para não falar da luta entre juízes pelos processos mais mediáticos.

A célebre frase de Voltaire – “É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente” – perde todo o sentido porque, no atual estado da arte, o cidadão é condenado semanas ou meses a fio na comunicação social e, se for absolvido pelos tribunais, o labéu é para toda a vida.

O símbolo romano da Justiça, a mulher de olhos vendados, passou a ser apenas uma imagem. De facto, nem todos são iguais perante a lei, assim como nem todos têm iguais garantias legais.

A Justiça deixou de ser cega.

O Estado democrático, cujo pilar essencial é a Justiça, corre o risco de ruir se este pilar ceder.

É urgente que os cidadãos reajam, em vez de continuarem entretidos com as atraentes parangonas ou as aberturas espetaculares das televisões.

Se aceitarmos que a Justiça passa a ser “O Juiz decide”, com transmissão diária e a qualquer hora, agora, para além dos casos reais, também com cidadãos reais, estamos a alimentar um monstro que, mais tarde ou mais cedo, vai devorar a própria democracia.

 

Jornalista