Afeganistão: – Sei onde estiveste nos últimos vinte anos


O mais recente episódio da retirada dos militares americanos do Afeganistão não procurou a glória, como acontecera com o discurso “Mission accomplished” (no Iraque) do Presidente Bush júnior, a 1 de Maio de 2003, a bordo do porta-aviões Lincoln.


O mais recente episódio da retirada dos militares americanos do Afeganistão não procurou a glória, como acontecera com o discurso “Mission accomplished” (no Iraque) do Presidente Bush júnior, a 1 de Maio de 2003, a bordo do porta-aviões Lincoln. Mas a evacuação da base de Bagram (por sinal o centro das operações militares durante a ocupação soviética) também teve potencial cinematográfico: os americanos saíram a meio da noite, quase que em peúgas e de botas na mão, para não fazerem barulho. O exército afegão descobriu a partida porque um qualquer militar americano, possuído por um excesso de consciência ambiental, desligou os geradores da base fazendo com que todos os serviços (água, luz, esgotos, comunicações, ar condicionado,…) se sumissem.

Biden, como prometido durante a campanha eleitoral, evacuou as tropas explicando que os EUA não estariam vocacionados para o “nation-building”. É uma constatação aceitável ainda que tardia e que torna ainda mais difícil de justificar a aventura iraquiana dos EUA. Mas não é, do ponto de vista histórico, verdade. O império americano construiu, no pós-guerra, a República Federal da Alemanha, o Japão e, já com a guerra fria instalada, a Coreia do Sul, fora as tarefas “menores” de re-construção com o plano Marshall ou, depois de 1989, na Europa de Leste. A fuga do Afeganistão já fora encetada por Trump para fugir à “Forever War” e Biden limitou-se a concluir o processo.

Por Moscovo estão a coçar a cabeça sem saber o que fazer com os talibãs, que se tornaram visitas de casa, e que controlam já quase todas as fronteiras com as antigas repúblicas soviéticas. O velho Marx terá, mais uma vez, razão, a história repete-se, agora como tragédia e a farsa espreita.

Em Pequim estão a estender a rota da seda, ligando Afeganistão e Paquistão com uma rede de infra-estruturas que permitirá, finalmente, uma ligação funcional ao Índico. A fronteira terrestre entre o Afeganistão e a China manter-se-á controlada para evitar a repetição dos recentes episódios de fuga de militares afegãos, açoitados pelos talibãs, para o Uzbequistão e o Tajiquistão.

Como os EUA descobriram, a duras penas, o Paquistão nunca deixou de controlar a metade leste do Afeganistão e, não obstante o namoro entre Nova Deli e o Governo afegão, nada de diferente se passará.

Os talibãs continuarão a fruir a vitória diplomática (os EUA concederam-lhes o exclusivo do uso da força desde que não haja actividade concorrente por parte do Estado Islâmico ou da Al Qaeda), política (as populações preferem a administração talibã à corrupção governamental) e prepararam a vitória militar: controlo do terreno, cerco às capitais provinciais, manutenção de Kabul como uma casa de bonecas onde reside o “Governo”.

Pelas capitais ocidentais o futuro é visto a partir de três cenários:

– coexistência entre talibãs e Governo em zonas separadas (uma versão local do modelo “um país dois sistemas”);

– guerra civil cuja duração pode ser prolongada a partir do exterior numa “proxy war” muito mais barata do que a presença dos EUA na modalidade “boots on the ground” (no fundo o modelo de intervenção que deveria ter sido empregue desde 2001);

– triunfo talibã com transformação do Afeganistão num santuário para o terrorismo islâmico com abertura de franchisings noutras geografias.

No Ocidente é muito difícil explicar aos familiares dos mortos e feridos, aos eleitores e aos contribuintes o que estivemos por lá a fazer. Por Londres continuam as investigações relativas à prática de crimes de guerra por militares britânicos.

Mal-grado a desídia, o Afeganistão continuará a fazer parte das notícias.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990