Alexandre O’Neill. Uma sílaba, um conselho, um cigarro

Alexandre O’Neill. Uma sílaba, um conselho, um cigarro


Numa edição de Joana Meirim, “Diz-lhe que estás ocupado” reúne uma série de entrevistas com o maior dos nossos poetas menores. Furtando-se ao registo grandioso da maioria dos literatos, e com uma boa dose de melancolia, O’Neill mostra-se bastante actual no confronto com este país que vivemos como um remorso.


O livro das entrevistas a Alexandre O’Neill que acaba de se publicar numa edição da responsabilidade de Joana Meirim não tem um interesse por aí além, mas dá saudade… De uma coisa que, talvez, por estes dias vá acontecendo cada vez menos: o convívio. A culpa nem é da peste, das pragas. Mais fácil seria falar nas pragas do ego que pode ser que expliquem melhor este isolamento, os cuidados de distanciamento social entre quem realmente tem um desejo de se expor ao mundo, em vez de andar aí muito contentinho, “seja fingindo hermetismo, fingindo densidade, complexidade, seja pelo formalismo da facilidade, que é outro tipo de formalismo”.

Nuns versos bem antigos, já o poeta apontava ao modo como nos vamos diluindo entre as “poucas palavras que nos ficam/ da usura dos dias/ do grotesco discurso que escutamos/ proferimos/ transidos de sonhos no ramal do tempo/ onde estamos como ervas/ pedrinhas/ coisas perfeitamente inúteis/ pequenas conversas de ferrugem de musgo/ queixas/ questiúnculas/ arrotos comoventes”. E aquilo que se vai esquecendo e atraiçoando, numa ânsia de se aparentar mais com os modelos que chegam lá de fora, e talvez por um receio de se achar o alvo de algum retrato feroz, parecido com esses tantos com que O’Neill mimoseava as figurinhas do seu tempo, é que se entre nós houve uma tradição que se impôs e nos fez arreganhar os dentes (antecipando aquela parte de nós que mais tempo perdura nesta terra) é a “tradição de ironia, de sátira, de documentário do cotidiano, de olho crítico para as coisas”. Ora, este isolamento reduziu tudo a militâncias interesseiras, no fundo porque já não há audaciosos enfrentamentos, e queixam-se da falta de polémica precisamente aqueles que são os primeiros a escapulir-se, a fugir delas, e é assim que já nenhum assunto, nenhuma disputa sobe ao Alto Conselho do Café para análise mais minudente e, se preciso, truculenta.

Era ali que estávamos uns entre os outros, e quem viesse tentar engrupir a malta cedo se achava numa enrascada e tinha de se fazer explicar, arriscando mesmo uns calduços pelo crimezinho de armar ao pingarelho. Pois que o pior nestes dias, e no que diz respeito à poesia, nem é que sejam poucos aqueles que de facto a lêem, mas que os poucos leitores que se expressam num certo consumo da poesia, não lhe garantam outra função que não a de mais um produto comercial, não sinalizando assim uma atitude combativa ou resistente, impedindo que o verso se transforme em rastilho para mais qualquer coisa. O pior, assim, é que os próprios leitores se virem costas, tal como os autores, e não se reconheça à distância a altura desses poetas que merecem ser distinguidos de tantos desses arrumadores de sensibilidades ou emoções vagas em versinhos que rimam da forma mais aleivosa e estéril com o vazio da época. Mas esse vazio e o alheamento da poesia que se publica em relação à realidade é disfarçado pelo crescimento do número de poetas; e então é curioso notar como “estas cifras ultrademocráticas minam, a partir de dentro, a aristocrática e orgulhosa atitude do mundo dos poetas, e nada mais comprometedor, nesse sentido, do que quando se vêem a todos reunidos, por exemplo, num congresso: uma multidão de seres excepcionais” (Witold Gombrowicz).

Nos últimos anos, dando por si a viver sozinho, e apesar das muitas estantes cheias de preciosidades, “coisas muito boas”, O’Neill confessava que chegava a ir ao barbeiro da esquina só para conversar com alguém. Fosse em incursões num lirismo mais envergonhado ou com aquela pontaria cruel da bala que vai lançada e antes de se fincar na carne parece lamber os beiços, ia-lhe dando para coçar-se da videirunha e do país, nessa espécie alternativa de patriotismo que surge nalguns como aflição, desapontamentos de vária ordem. A pátria, afinal, como diz o outro, é uma coisa que se aprende quando já não há remédio. E Cardoso Pires adiantava que passa por “perder a vogal da infância para descobrir o verso inteiro, rimar com um povo”. Por seu lado, O’Neill retratando-se em criança não se lembra de outra coisa senão de que “era um chato, uma tristeza”. E explica a coisa com um excesso de protecção dos pais. “Estava quase sempre em casa, era filho de gente que não me deixava ir à rua. Era um miúdo fechado, um bocado triste, e passava muito tempo à janela (…) É curioso, porque morava na Rua da Alegria e ela provocava-me um sentimento de tristeza, quando via subir as carroças com os trabalhadores de aspecto cansado… Interessava-me o espectáculo das pessoas.”

Este é um livro que, na melhor das hipóteses, funciona como um generoso apêndice à restante obra publicada de O’Neill, e podem colher-se nele alguns exemplos vigorosos da tensão aforística que caracterizava a sua obra poética. Por outro lado, há talvez um excesso de coerência num autor que, não recusando ser entrevistado, além de um tanto sovina nas respostas, sempre se mostrou relutante na hora de se entregar a um exame que, como ele bem viu no poema “Entrevista” – cujo primeiro verso dá o título a esta recolha –, deve ser encarado com uma boa dose de suspeita, até para que o autor não acabe sendo cúmplice daqueles que muitas vezes, mesmo que involuntariamente, acabam por contribuir para os trabalhos de mumificação de um escriba. Eis os versos iniciais: “Diz-lhe que estás ocupado/ a entrevistar-te a ti mesmo/ mesmo porque se não/ o pões desde já porta/ fora estás quilhado vai/ espiolhar-te apalpar-te/ meter-te o dedo no cu/ querer saber a quantas/ quais mulheres ofereceste/ teu recortado coração (pelo picotado)/ em quantos quais sonetos meteste/ o quatorze e quantas quecas/ te saíram pela ejaculatra/ e ainda que livros levarias/ para uma ilha deserta (…)”

Mas este é também um livro que nos mostra como, de algum modo, aquele espectáculo das pessoas, daquele povo com que um poeta que não se recuse a olhar nem a sentir o que o rodeia se aparenta, mesmo que o seu desejo seja acrescentar mais o mundo do que representá-lo, esse doloroso espectáculo tomou conta da alma de O’Neill como de um palco onde se sucediam essas encenações elevadas à apoteose do remorso (“Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,/ golpe até ao osso, fome sem entretém,/ …meu remorso,/ meu remorso de todos nós…”) E o que de melhor nos oferece este volume é a possibilidade de estar ali na esquiva presença do poeta, tentando que ele nos diga mais qualquer coisa, algo mais além dessas “curiosas ninharias” com que nos entretém e se evade, para depois, quando já não o esperávamos, nos revelar algo de mais profundo sobre ele e sobre nós: “Sem pieguice, digo-lhe que sempre ‘sofri’ Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar-sem-esperança (como disse um parnasiano qualquer: amar sem esperança é o verdadeiro amor…). Eu tive a alegria de ver poemas meus completamente desactualizados depois do 25 de Abril. Mas afinal não estavam nada desactualizados, não. Como se pode ver. Quer dizer – o que é um péssimo sinal relativamente à minha capacidade para vaticinar – que a realidade fez de mim, novamente, um poeta actual. Até no fantasma do tempo a que você se refere. Espero que isto um dia acabe e eu fique bem desactualizado e para todo o sempre.”

Um apontamento numa destas entrevistas, lembra-nos um dos mais lúcidos testemunhos sobre a sua poesia, o de Massau Moisés em “Literatura Portuguesa Moderna”, que afirmou que esta “respira uma atmosfera de ansiedade e opressão, oscilando entre o azedume áspero e irreverente e o ensimesmamento lírico mais enternecido, por vezes no mesmo poema”. Infelizmente, a poesia de O’Neill está longe de ficar desactualizada, e parece, pelo contrário, estar a envelhecer tão bem que o seu desencanto deixa de soar a mero diagnóstico e surge como uma condição fatal, humilhando a capacidade que julgamos ter de nos reinventarmos. E mesmo que não puséssemos o acento numa questão mais geral, naquilo que respeita à actualidade social e política do país, com todas as dificuldades que esta obra nos levanta, com o seu modo humorístico de nos atrair para logo desfechar um golpe nos rins, é a poesia portuguesa que, desde há umas décadas, nos surge domesticada, nesta nossa maneira de usar as coisas: “fica-nos sempre a maçaneta/ na mão!”

Ele que nos diz que nunca foi poeta de pensar no currículo, notava como por aqueles anos os académicos se haviam apossado da poesia portuguesa e a tinham posto ao serviço do currículo. É evidente como ultimamente isto se agravou a um ponto tal que, hoje, a vida da poesia se restringe quase exclusivamente a um recreio debaixo da saia das instituições e da academia. Por todo o lado, os versinhos surgem já de origem como apontamentos nessa etiqueta pendurada do pé de um morto deixado na morgue, aguardando a autópsia que dará uma certidão às invariáveis causas do óbito. A este respeito, o próprio poeta admitia: “Quando há tese, há cadáver.” E nada torna isso mais evidente do que as coutadas que determinam que sempre que se fala num poeta lá tenha de vir o académico responsável por zelar por aquele talhão do cemitério.

Quanto a pôr o dedo na ferida já gangrenada de que falávamos, dizia O’Neill que o que “lixa bastante o criador literário é essa atitude quase protocolar, esse empertigamento que tende a pensar a literatura, a poesia, como uma coisa espiritual, uma coisa muito séria”. Nuns versos, reflectindo mais sobre as artes plásticas, ele admite que “a génese do objecto de arte (…) passa por vísceras inesperadas”. Ora, além de considerar que “numa sociedade capitalista, o escritor acaba sempre por ser um revólver de trazer por casa, quanto mais não seja para ‘matar’ a família”, O’Neill teve a originalidade de ser dos poucos que defendeu que fazia melhor à poesia que esta fosse publicada num “número muito reduzido de exemplares e por forma mais modesta”. Em seu entender, “a poesia é de tal modo pessoal, que divulgá-la é muitas vezes o mesmo que prejudicá-la”. E isto não cairá bem num tempo em que pululam por aí os agentes de divulgação da poesia, alinhados com o mediatismo salivante das novas redes que substituíram e desfizeram os rituais do café, da convivência na pele e em tempo real. “A descoberta da poesia é sempre uma coisa extremamente solitária”, sublinhava o poeta. “Talvez não haja grande vantagem em divulgar demasiado a poesia. As pessoas lá vão chegando, ao conhecimento dos poetas, por um seu caminho de descoberta.”

Por outro lado, ele ia até mais longe, admitindo que “uma boa parte do público não merece absolutamente ler um poema”. E aqui parece atingir no nervo essa pretensa ansiedade de um novo público que, segundo se diz, tem fome de poesia, dizendo-nos que, “nesse caso, a poesia serve-lhe apenas de ornamento, que ele põe na casa do seu espírito, na parede da casa que o seu espírito poderia representar”. E deixa um aviso sobre o perigo de a poesia se deixar cercar por esses apelos e urgências de um público consumidor, caprichoso, que não faz distinções de espécie nenhuma, e que “volta costas à poesia quando as coisas começam a complicar-se”. “Para ele, poesia ainda é embalo, anedota ou achado (…) O público tem péssimos hábitos: pede muito à poesia – riso, lágrimas, contracções intestinais e bonitos da imaginação. O poeta tem, pois, a obrigação de se defender desse público de gosto burguês inveterado, que quer caçá-lo a todo o custo, que quer pô-lo em voga, torná-lo inofensivo pela pior das armadilhas: a leviana aceitação. Escreve-se e publica-se para se ser lido, mas não para se ser inevitavelmente aceite e adoptado.”

Quanto à gestação dos poemas, O’Neill fala das suspeitas que lhe merecem, do pousio que lhes exige antes de os deixar sair e darem-se a ler. “É fazê-los, guardá-los e esquecê-los. Mais tarde volto a pegar neles, porque o mais difícil é saber se se aguentaram ou não. A gestação é rápida, faço um poema em dois ou três dias, e só depois do pousio faço as modificações, o tal ofício de marceneiro, para usar uma imagem gasta.” Noutro apontamento, diz que a idade lhe deu essa ciência desapiedada do mundo, a que o impede de se lançar ainda a correr: “Já não corro atrás de miragens, como todos os jovens bem-intencionados.” E mesmo no que toca à escrita, valia-se de uma sábia desconfiança, adiantando: “Hoje passo tudo pela refinadora”.

E quando lhe perguntam se é um poeta para ficar, o que diz é: “Não sei… A minha poesia é de curto alcance.”
Talvez pareça assim, nesse gesto que primeiro nem fere logo, mas deixa um caroço de um fruto roído com vagar, e que cai certeiro onde deve cair, num buraco que a gente traz, resvala lá dentro, e fica silencioso, como se a dormir, esgravatando um sonho, florescendo, e como quem não se dá muita importância, enxota-nos amigavelmente: “Agora põe-te a andar/ agora passa por cá daqui a uns anos// Talvez me encontres/ talvez possa fazer qualquer coisa por ti/ qualquer coisa simples/ quase inútil/ quase ridícula/ oferecer-te uma sílaba/ um conselho/ um cigarro”.