Londres. Enquanto a Inglaterra espera que todos cumpram o seu dever….

Londres. Enquanto a Inglaterra espera que todos cumpram o seu dever….


O piso de Imperial Way, o caminho que vai dar à porta principal de Wembley, está pegajoso de tanta cerveja espalhada pelo chão. À medida que as horas correm em direção ao início do jogo, os ingleses cumprem o seu desígnio de beberem enquanto puderem.


LONDRES – A estação de caminho de ferro de Haydons Road, à entrada do Wimbledon, está vazia enquanto espero pelo comboio das 14h39 com destino a St. Albans (onde, curiosamente, a seleção inglesa tem o seu quartel-general e o seu centro de treinos) e apenas uma senhora de idade parece esperar pela composição que está à beira de chegar. No dia em que o futebol inglês vive o maior dos seus momentos desde 1966, à medida que perfuramos a cidade, depois na ligação de Ferringdon que vai terminar em Wembley Park ao fim de cerca de 45 minutos de viagem, os adeptos vão surgindo de todos os buracos que formam esta urbe imensa onde, em tempos que lá vão, vinham tombar todos os deserdados do Império.

Uma onda incontrolável invade as carruagens empurrando tudo à sua frente em King’s Road St. Pancras. Se não vêm todos bêbados, são em grande percentagem os que parecem ter passado os limites do regular – para um inglês a cerveja não tem limites – enquanto os outros trazem as mãos munidas de latas e garrafas. “It’s comin’ home!”, passou a ser a frase mais ouvida nesta cidade desde a meia-final frente à Dinamarca. Uma confiança infinita extravasa toda a noção mínima de bom senso. Não há adversário. A Itália não existe. Existe apenas a Inglaterra, centro do mundo, senhora do universos desde o tempo em que piratas pagos pela coroa, aos quais chamavam eufemisticamente de corsários, como Francis Drake (que teve direito ao título de Sir) andavam pelo mares como falcões roubando as suas presas, assaltando e afundando as caravelas portuguesas e os galeões espanhóis carregados de ouro. Por isso cantam, desbragados: “Rule Britannia/Britannia rule the waves/Britons never never never be slaves”.

Não será bem assim. Para já são escravos da cerveja que corre aos milhões de “pints” pelas gargantas de Inglaterra. À medida que as estações e carruagens vão ficando como latas de sardinhas connosco lá dentro, à míngua de espaço e de oxigénio, o ambienta ganha um toque bélico que os habitantes desta Grande Ilha para cá da Mancha não apenas não evitam como gostam de provocar. É percetível que, a qualquer momento, uma cabeça de fósforo solte uma faúlha e uma cena de pancadaria se desenrole à nossa frente. De vinte em vinte metros, os Bobbies, polícias de chapéu azul escuro inconfundível, surgem em exemplares certamente escolhidos a centímetro e em perímetro de tóraxes. Não fico com a sensação que isso altere alguma coisa na multidão ébria que viaja neste barco de esponjas que encantaria Rimbaud e a sua desbragada poesia.

Pegajoso. O piso de Imperial Way, que conduz à principal entrada do estádio, está pegajoso de tanta cerveja entornada pelo chão. Há um tipo, empoleirado num dos pinos de separação das vias, que se diverte a sacudir latas de lager e espalhar as espuma por cima das cabeças que o rodeiam. Uma rapariguinha de tez quase transparente passeia um buldogue por entre a turba semi-enlouquecida. A Inglaterra espera, como sempre, que todos cumpram o seu dever. Mas a quatro horas e meia do apito inicial da segunda final da sua história, os adeptos dos três leões sentem que o dever, para já, é beberem tudo o que puderem até à hora de se irem instalar nas bancadas vermelhas de Wembley onde, aí, o álcool lhes está vedado.

Quando peço a um tipo de barriga descomunal que me deixe passar no meu caminho para a entrada de imprensa, recebo uma resposta em tom de pergunta óbvia: “Why?” Obriga-me a fazer um movimento de translação em redor da sua estrutura de pequeno planeta que deve ter, quase de certeza, campo de atração, tantos são os barrigudos que o rodeiam, berrando a sua paixão por Southgate, o homem que falhou o penalti decisivo na meia-final de 1996, mas que vinte e cinco anos depois de ter cumprido a sua pena voltou a oferecer à Inglaterra uma final: “Looking back on when we first met/ cannot escape and I cannot forget/Southgate, you’re the one; you still turn me on/Football’s coming home again”.

Recordo-me do dia 4 de Julho de 2004, em Lisboa (a minha mais dolorosa frustração profissional). Vêm-me à memória as horas que antecederam a final de 10 de Julho, há cinco anos, em Paris. Tanta confiança a esbarrar a verdade inegável do futebol que é como a vida – o sofrimento é a promessa que ambos cumprem sempre. Por entre os berros de provocarem aneurismas, das atitudes provocatórias dos que não se cansam de estar bêbados, o jovem voluntário que me pede o teste do covid diz com um sorriso: “Sorry about the weather…”