Carlos Fiolhais. “Acho que o melhor ainda está para vir”

Carlos Fiolhais. “Acho que o melhor ainda está para vir”


À beira de uma ‘última aula’ na Universidade de Coimbra, o professor que ensinou que a Física pode ser divertida fala da aventura do conhecimento, a sua maior lição.


A última aula de Mecânica Quântica II já aconteceu, mas para a próxima segunda-feira está marcada a despedida do departamento de Física da Universidade de Coimbra, onde se licenciou em 1978 e começou a dar apoio nas aulas aos 21 anos, a trocar as voltas à Física médica e aos fusíveis.

Carlos Fiolhais tem agora 65 anos e um percurso marcado pela divulgação de ciência, com 60 livros publicados, o primeiro a mostrar que a Física podia ser divertida. Conversamos – à distância de uma videochamada que em tempos foi ficção científica – sobre o que está para vir e o que deixa nos alunos o professor que descobriu cedo que o truque para vencer a timidez e prender a atenção era mesmo fazer rir.

Os seus planos passam por continuar a ler, a viajar, a escrever e a ensinar, agora com um modo de vida menos funcionário, como dizia O’Neil, um dos muitos escritores que Fiolhais cita de cor. Em jeito de sumário, escolhe na estante de livros que o rodeia uma passagem de Cosmos, de Carl Sagan, o herói de juventude de alguém que também quis viver a aventura do conhecimento.

Custa preparar a última aula?
Não, nada, não tenho essa angústia. Sou uma pessoa que faz o que tem de fazer, planeia o que tem de planear, mas não vivo aflito com aquilo que não fiz ou com o que deixei de fazer. Há pessoas que têm sempre esse stresse. Eu não, vivo tranquilo. Até porque já está mais que preparada, não vou improvisar. Era o que faltava estar a ensaiar uma peça nova. É um espectáculo que já dei (risos). Não sei se com algum contentamento dos espectadores, mas está bem ensaiado. 

Esta última aula pública vai ser na próxima segunda-feira, sobre História da Ciência na Universidade de Coimbra, mas a última aula mesmo de Mecânica Quântica II foi no fim de maio. Também não custou? 
Os alunos souberam, tiraram umas fotografias e puseram nas redes sociais. Fico contente, mas nem sequer referi o assunto na aula. Foi “hoje terminamos o curso de Mecânica Quântica, gostei muito, não se esqueçam que depois têm o exame”. No fim quiseram tirar uma foto e depois viemos cá para fora e estava tudo combinado, deram-me um ramo de flores. Fui vítima de conspiração! Depois a direção do Departamento de Física, onde trabalho há 44 anos, disse-me: “Então vais embora e não dizes nada?”. Claro que tinha dito, mas não tinha estado a dizer que era a última aula naquele dia. Pedi a reforma para sair com 65 anos e disso não fiz nunca segredo nenhum, logo que tivesse a reforma por inteiro disse que queria sair.

Nunca teve aquela mágoa de haver um limite? Podia continuar até aos 70. 
Não, de maneira nenhuma. Quero ver como é a vida. Adoro dar aulas, se não não tinha andado 40 e tal anos a fazê-lo, mas há coisas que adoro menos. Dar notas aos alunos, respeitar burocracias, sei lá, reuniões, folhas de cálculo. Gosto de ler, de viajar. Interesso-me muito por História. Fui diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra entre 2004 e 2011 e foi lá que fiz esse mergulho na História, que me entusiasmou muito.

Não serei a primeira pessoa a quem isso acontece, mas cheguei tarde a certos temas e com a História foi assim. Gostava de poder historiar um bocadinho. Agora tenho a experiência e a maturidade suficiente para ter essa dimensão do tempo. Quando era novo não ligava muito. Esta última aula vem em parte de um curso de História da Ciência que tenho dado muito até fora da universidade. Vou condensar a matéria, que é também a minha especialidade, e pôr umas piadas novas.

Fazer rir foi sempre um truque na sala de aula?
É um truque que tenho para comigo mesmo e que serve para os outros. É uma técnica de comunicação, são uns ganchos de vez em quando para prender a atenção. Lembro-me dos meus professores às vezes mais pelas anedotas e histórias de vida que eles contaram do que pela matéria que me ensinaram.

Por exemplo?
Já na Universidade tive uns professores que tinham estado em Moçambique nos Estudos Gerais porque o José Veiga Simão, que era professor em Coimbra, foi lá reitor. Lembro-me de contarem como era boa a vida em Moçambique, falavam do tamanho da lagosta. E eu que nunca fui Moçambique ficava a olhar para aquilo, lagostas daquele tamanho… Agora que já não tenho vergonha, posso contar outras histórias.

Parece que havia lá em Moçambique um prédio alto com prostituição e diz que havia certas horas do dia aquilo abanava tudo. Havia vibração. É Física aplicada à construção civil (risos). Dei outros exemplos nas minhas aulas, se calhar não com tanta piada. Mas há alunos que se lembram disso. Dizem-me às vezes que se lembram de eu, na primeira aula, mostrar desenhos animados, o Tom & Jerry. Aquilo desafia todas as leis da Física. O meu objetivo naquela aula era dizerem quantas leis da Física tinham sido violadas e em que parte do filme. São coisas que ficam nos alunos, como a lagosta.

Também dava para introduzir a Física a alunos mais novos.
Ajuda, claro, embora seja preciso conhecer as leis. Fiz um livro chamado Física Divertida (Gradiva, 1991) precisamente para ter um título provocador e foi essa a ideia.

Foi um best-seller na altura.
Sim, a partir daí não podia subir mais. É como alguns jogadores de futebol que depois só vão envelhecendo, brilham nos juvenis (risos). Comecei a publicar já relativamente tarde. Estou a assinalar 44 anos de professor, mas o meu primeiro livro é de 1991, faz 30 anos. Depois tomei-lhe gosto, mas já não se venderam tantos. Na altura vendiam-se mais livros do que hoje. Esse primeiro teve tradução no Brasil. Perguntaram-me se deixava traduzir para brasileiro, porque o Saramago não deixava. E eu respondi: “Quem sou eu!” (risos).

Os seus colegas físicos mais puristas acharam que era um caminho a seguir ou houve críticas?
Bom, eu já tinha 30 e tal anos anos, já não era totalmente inconsciente. O livro teve um grande êxito, ajudou. Na altura havia O Jornal, que tinha um top de livros. No top a certa altura estava um grande êxito da Clara Pinto Correia, o Adeus, Princesa, e a Física Divertida. Ela porque teve uma crítica muito entusiástica do falecido Vasco Pulido Valente, e eu porque tive uma crítica no Expresso do Zé Mariano Gago, que ainda estava longe de ser ministro, só foi em 1995.

Escreveu que era o Professor Catedrático da Gradiva.
Sim, eu na altura era professor auxiliar, só fui catedrático em 2000. Cheguei primeiro ao top nos livros. Mas, como vê, a minha carreira académica não foi prejudicada por esse título um bocadinho licencioso. Eram histórias que tinha treinado com os jovens e que funcionavam para se explicar a Física. No Brasil, em vez de lei de impulsão, saiu lei do impuxo. O protão era o proton. Mas foi também traduzido para espanhol e italiano. Fiquei feliz.

O segundo livro foi um insucesso, uma coleção de ensaios, mas depois tive outros que se foram vendendo. Comecei tarde mas recuperei: em 30 anos fiz 60 livros, muitos em colaboração e metade escolares. Tentei atuar no ensino à distância que é também o ensino em papel. Sempre achei que os livros por onde estudei não eram muito bons e que se podia fazer melhor. Temos uma equipa e ainda hoje a maior parte dos livros escolares de Física e Química são feitos com a minha colaboração.

Costuma contar que não descobriu a paixão pela Física nos livros da escola, mas pelo que foi descobrindo noutros livros. Foi isso que o moveu?
Sim, livros como os de Rómulo de Carvalho, Ciência para Gente Nova, etc. Senti que havia um mistério na Ciência, na Física em particular, que me estava a ser escondido na escola. Não estou a dizer mal dos professores, porque sem eles eu não era nada. Mas o sistema estava montado para esconder esse mistério, que no fundo é como podemos saber mais, saber que está ao nosso alcance, que saber mais é um empreendimento humano.

A matéria aparecia nos manuais como um produto final, como se as tábuas da lei tivessem caído do céu aos trambolhões. E nos outros livros lia que tinha havido o Einstein, a Madame Curie, que essa gente tinha trabalhado muito com a cabeça e com as mãos, e com as mãos ligadas à cabeça, que é uma coisa que sempre me intrigou – a ligação da experiência com o cérebro.

Fui atrás dessa – vou dar-lhe um nome – aventura do conhecimento. Achei que era uma aventura que estava ao meu alcance e não me desiludi, porque foi uma aventura na qual eu, de forma modesta, pude participar e gostei muito de participar. Quando cheguei a 2004 e fui chamado para dirigir a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, já era catedrático, já tinha dado os meus contributos maiores para a ciência e tentei “pagar” ajudando a organizar a segunda biblioteca do país.

E antes?
Vivi numa época em que apareceram novos instrumentos, criei uma cadeira de Física Computacional, ligámos tudo à internet. Vivi todos esses anos que foram empolgantes do ponto de vista tecnológico. Vivi e vivo, vivemos. Às vezes não temos a distância suficiente para ver isto, então as crianças hoje têm todas telemóvel. Lembro-me do meu primeiro computador pessoal. Mudou tudo.

Teve o primeiro computador pessoal da Universidade de Coimbra.
Sim, um Olivetii.

Custou 500 contos.
Sim, em 1983, estava a regressar do doutoramento na Alemanha e começámos a trabalhar. O mérito que tive foi estar na altura certa, informado e ter mobilizado algumas pessoas para fazermos isto. Lembro-me dos primeiros emails da Universidade de Coimbra, da primeira página web. Parece tudo muito antigo mas foi no início dos anos 80.

Começámos a fazer computação, simulações, foi um tempo bom. Estou a falar de passado, hoje o tempo é outro, eu sou o mesmo e sou outro e ainda quero fazer coisas. Não ter aulas permite-me corresponder a pedidos que a sociedade me faça, até escrever mais livros, que é outra maneira de dar aulas, mas sem ter de dar a desculpa que dava muitas vezes de que tinha uma cadeira dar.

Agora já não tenho mobília, já não tenho cadeira. Sempre disse: não me ponham em cima dos caixotes. Mas, se me dão um caixote, eu subo. Tive sorte de ter oportunidades e de as agarrar. A última aula vai ser sobre História da Ciência, mas já me disseram: “Se for interessante, pode haver mais aulas”. Vou montar um negócio de últimas aulas (risos).

Quando era miúdo, já tinha à vontade para subir os caixotes ou era tímido?
Era muito tímido, o humor é uma forma de quebrar a timidez. Sou um tímido extrovertido. Todo o meu percurso de vida é uma maneira de me integrar. Todas as pessoas gostam que gostem delas. Tenho impressão que se fosse um físico sisudo ninguém gostaria de mim, nem eu próprio.

Esta maneira que tenho de contar as coisas quebra uma tradição, sei que sim, mas nunca fui incomodado por isso. Nos meus concursos profissionais, para professor associado e catedrático, foi sempre valorizado. Não posso dizer que a universidade não tem piada nenhuma, que aqueles tipos põem na cabeça um abafador de ideias. Apanhei uma altura de renovação geracional e cheguei muito cedo, era doutorado aos 26 anos.

Começou a dar aulas com 21 anos. Lembra-se da primeira aula?
Não me lembro. É-se estudante e faz-se aquilo que nos dizem. Terei começado dessa maneira natural, indo fazer tarefas de auxiliar. Ajudar a resolver problemas a uns alunos, montar um laboratório. Não me lembro exatamente porque já passaram 44 anos e não sou de fixação no passado, não sou de grandes memórias.

O meu cérebro não faz esforço nenhum. Penso assim: se for bom hei-de me lembrar, se não for hei-de me esquecer. A memória é um filtro natural que temos. Não me lembro da primeira aula, mas lembro-me de algumas coisas. Sempre fui teórico. O meu cérebro é melhor do que as minhas mãos.

Punham-me a ajudar nuns laboratórios e a certa altura fundiam uns fusíveis nuns amperímetros, isto ainda antes de ser tudo digital. Eu ia à oficina de eletrónica e perguntava: quais são os fusíveis que têm aí que aguentam mais? Diziam: são uns de 1 ampere. É uma corrente fortíssima, mas era os que eu queria, aquilo aguentava tudo e não tinha de andar a mudar. Fazia estas coisas que não se deve fazer, porque os fusíveis são para ir abaixo quando a corrente está demasiado forte, para os alunos aprenderem.

Ajudava nas aulas de Física Médica e ainda há médicos que se lembram de mim porque fazia uns testes em que estava o corpo humano a fazer o pino e eles viravam a folha para perceber o exercício. Aquilo era para ver a circulação do sangue contra a gravidade mas diziam que era tudo ao contrário, que a Medicina era com o corpo para cima. Ensinava radioatividade e pedia: “Se alguma vez for fazer um exame destes, chamem um camião cisterna dos bombeiros e diluam-me a dose”.

E do que se lembram é do camião dos bombeiros e dessas histórias, que largava livros para demonstrar a queda dos graves. E foi assim que fui percebendo que esses truques funcionavam. Se um professor deixar cair alguma coisa, nem que seja ele próprio, se não houver mais nada, olham logo. Fica marcado.

Fez alguma dessas?
Isso não, mas noutro dia fui fazer um espetáculo para crianças no Olga Cadaval sobre os 50 anos da ida à Lua, com base num livro que fiz com o poeta José Fanha e ao músico Daniel Completo, que se chama Cabeças na Lua. Tinha um livro sobre a Lua de um colega meu, precioso, e ele estava a assistir.

A certa altura estou a dizer: “A Lua, se estivesse quieta, vinha ter connosco”. Peguei no livro muito alto e disse: “imaginem que é a Lua…” Esse colega entrou em transe e depois disse-me: “Deixavas cair o livro e eu tinha de ir lá apanhá-lo”. Não houve esse gesto de rugby, mas tenho destas maluquices.

Como no jornalismo é preciso um bom título, numa aula são precisos alguns gestos, parar um bocadinho de vez em quando, contar uma anedota. Contava muitas vezes a anedota do Máximo. Dessa toda a gente se lembra.

Como é?
É das poucas que sei de cor. Eu dava a lição e dizia assim: “Este assunto é o máximo, vocês sabem a anedota do Máximo?” (risos). E eu contava a anedota, que não tem nada a ver com o assunto, mas era para eles se lembrarem mais tarde. Era um indivíduo que se chamava Máximo, mas não gostava do nome dele.

Há indivíduos que não gostam de ser o máximo… Estava doente, ia morrer e diz à mulher: “Põe qualquer coisa no meu epitáfio, mas não ponhas o meu nome. “Ai querido, claro, a tua vontade será cumprida”, disse logo ela. E ele, tranquilo, finou-se.

As pessoas passavam no cemitério e iam lá ver o que a mulher tinha escrito: “Aqui jaz o homem que durante toda a vida amou uma e a mesma mulher”. E diziam: “Ah, aquele tipo era o máximo” (risos).

Muito boa.
Não se vai esquecer. A prática dá-nos muitas coisas assim. Tinha acetatos, depois vieram os powerpoints, quando falha uso o corpo. Há pessoas que quando falham os powerpoints entram em pânico. A mim dizem-me que as aulas saem melhor quando não há powerpoint, estou preparado.

Às vezes tenho de contar a anedota do Máximo para ganhar tempo. Enquanto uma pessoa conta uma coisa conhecida, a nossa cabeça em background consegue organizar-se. São histórias. Devo tudo à universidade, mas agora é uma altura de retribuir a toda a gente.

É uma despedida para passar afinal a ser professor de mais alunos que não os seus?
Tenho procurado ser mas agora tenho menos desculpas para não ser.

Os alunos mudaram muito ao longo destes 44 anos?
É dificil dizer. Há 40 e tal anos eu ao mesmo tempo ainda era aluno. Normalmente há muito a tendência, que é errada, de falar de degeneração. O “no meu tempo é que era bom”. Não tenho nada essa ideia. Acho que hoje os alunos saem melhor preparados da universidade do que eu saí, e até não saí mal.

O facto de a ciência em Portugal ter crescido, de haver todos estes meios digitais à disposição, facilita. Hoje por exemplo com datas, qualquer dúvida vou ver ao telemóvel e desafio-os a fazer o mesmo. Sacamos da pistola e googlamos a ver quando nasceu o Fermi. Do ponto de vista biológico, é igual. E até pode ser melhor, porque, a acreditar em algumas teorias, o QI está a subir, mas isso é controverso.

Há quem defenda que está a atingir um limite.
Há quem diga isso, está a atingir um máximo, mas ainda não temos um máximo.

Agora vou rir-me sempre…
Há o máximo e depois há mínimos. Em Matemática falamos de mínimos locais das funções. Há sítios onde se atingem mínimos de inteligência e vai-se lá saber porquê. Uma maneira de tirar mínimos na Matemática é perturba-se e sai, mas há mínimos que não saem. Isto para dizer que acho que os jovens são iguais biologicamente e do ponto de vista da globalização e comunicação têm muito mais possibilidades do que nós tínhamos. Ainda agora dei ótimas notas a alguns alunos e são merecidas. Com a grande vantagem de termos muito mais gente a frequentar o Ensino Superior do que no meu tempo. No meu curso de Física éramos quatro.

Ninguém ia para Física?
Não, o meu pai bem perguntou: “Isso serve para quê?”. Respondi: “Sei lá”. Não ia enganá-lo. Serviu para ser diretor da biblioteca, para ser professor. Serviu para escrever em jornais, no i [publica todas as quintas-feiras uma recensão literária]. Sempre gostei muito de ler e de escrever.

O meu pai já não está vivo mas, como eu, gostava muito de ler jornais. Não tinha grande instrução, mas tinha um grande gosto por estar atualizado e eu herdei isso. Sou viciado em quiosques. Independentemente do estilo de jornal, da ideologia, gosto de ler.

Há certas piadas que posso fazer sobre a Cristina Ferreira que se não lesse o Correio da Manhã não dominava. E a maior parte das pessoas percebe as piadas. A gente fala de Cristina Ferreira ou fala de Ronaldo e acendem-se umas luzes. São fenómenos mediáticos e temos de usar isso em nosso favor, se não há um grande isolamento da ciência.

Além da vertente da comunicação, o que lhe trouxe a si, à sua maneira de entender o mundo, a Física?
Sei que tenho uma maneira de ver as coisas que não é a corrente, mas dá-nos uma racionalidade de pensamento. É uma pessoa observar, poder experimentar, quando pode, e acima de tudo fazer um raciocínio lógico. Depois de estar tudo ligado, examinar criticamente o resultado. Dito assim pode ser esquemático e frio, mas é a melhor maneira de não sermos enganados. É assim que a ciência funciona, chama-se método científico, mas é a maneira de uma pessoa conseguir muitas vezes perceber o que é verdade e o que é mentira.

Torna-se uma ferramenta para ajuizar.
Exato, ajuda-nos até a perceber se estão a gozar connosco e acho que é útil a um cientista mas é útil a todos, por isso é que tenho feito um percurso nos últimos anos de desmistificação de pseudociência e fake news. A partir do momento em que a própria internet permite que qualquer um publique qualquer coisa, as pessoas ficam mesmo confundidas e é genuíno.

E o que importa é ter ferramentas: quem diz, como diz, porque é que diz. A ciência permitiu-me ter um faro muito apurado. É um detetor de tretas, um medidor de credibilidade. Pode até ser um cientista a afirmar qualquer coisa, mas isso para mim não quer dizer nada, os cientistas também dizem disparates.

Nesta pandemia, têm sido citados cientistas como Luc Montaigner, Nobel, usados pelos movimentos negacionistas. Surpreende-o?
Só diz disparates. Mas há outros, o Brian Josephson, prémio Nobel, um físico que acredita em telepatia.

Não há nenhuma hipótese de podermos comunicar telepaticamente?
Não sei nem ninguém sabe prever o que a ciência vai descobrir. Mas o que se sabe hoje é que a telepatia não foi descoberta pela ciência. E foram feitas experiências científicas. Puseram-se tipos dentro de submarinos, não sei se com a ajuda do almirante das vacinas, a tentar comunicar com a superfície com o pensamento, a tirar cartas a ver se acertavam e o resultado é nulo, não é mais do que um acaso.

Não há nenhum indício de que a telepatia funcione. Agora com certeza que há correntes elétricas no cérebro, que se podem medir com imagiologia funcional, saber que zonas estão ativadas. Podemos pegar nestes sinais e transmiti-los, amplificá-los e enviá-los para um recetor. Transmissão de sinais cerebrais à distância com ajuda técnica já foi feito. Agora eu aqui adivinhar o que a Marta está a pensar não. 

Nunca teve uma experiência que pusesse à prova seu detetor de tretas?
Não, nunca houve nada que dissesse isto é verdadeiramente extraordinário…

Uma ida a um vidente…
Não, nada, nem um horóscopo. Saber que se está na semana do amor… Os horóscopos têm algum poder, bem usados podem atingir os seus fins (risos). Com certeza que também já brinquei com isso. Houve uma altura em que até me interessei pelo assunto. Sou gémeos.

Eu também.
É por isso que nos damos bem! Houve uma altura em que li uns livros de astrologia mas basicamente é treta. Não há nenhuma razão científica para haver influências astrais em traços de personalidade.

Mas já tenho discutido outras questões mais sérias, como o milagre na religião, até com padres e teólogos, digo a minha posição, dizem a deles e é uma discussão com bom acolhimento. Não acredito em milagres pela formação que tenho: as leis da natureza não admitem exceções. Uma vez até escrevi numa revista boa que têm no santuário de Fátima a dizer que não tinha havido milagre nenhum e foi publicado à mesma, o que foi notável.

Escreveu que o sol não dançou?
Houve qualquer coisa meteorológica, com certeza. É inequívoco que houve um fenómeno meteorológico. É inequívoco que as pessoas estavam à espera de sinais do céu, havia uma esperança e estavam reunidas por isso. As pessoas estavam mobilizadas por um fervor religioso e interpretaram sinais que em parte viram, outra parte não viram. Mas nós podemos ver interiormente coisas que não são reais.

As emoções podem alterar-nos fisicamente.
Claro. E pode haver vivências coletivas.

Há relatos de epidemias de histeria.
Sim, e basta ver que se estou a ver futebol com amigos, a beber umas cervejas, o meu comportamento é um bocadinho diferente. Temos um comportamento de tribo. Não são fenómenos da minha área de estudo, mas são estudados por psicólogos e sociólogos. Há um autor que estudou o assunto, Desmond Morris, que fala do poder dessa tribo do futebol.

É da Académica.
Sou, estamos na segunda divisão há muitos anos. Levei um dia o meu filho quando ele era novo a ver um Académica-Salgueiros na primeira divisão, imagine a época geológica em que isso foi, pouco depois do milagre de Fátima (risos). A Académica ganhou, houve golos, penaltis, expulsões e eu disse: aqui está um jogo completo em que o meu filho pode completar a formação feita em casa com vocabulário que não conhecia.

O futebol tem isto. No Gil Vicente há lá umas palavras que não dão bem na escola e ali era Gil Vicente ao vivo. São fenómenos coletivos, que vão além da linguagem. Os de uma equipa veem os penaltis, os da outra equipa não, mas há um facto objetivo ali no meio.

Há fenómenos que suscitam paixões e isso altera o nosso poder de observação. A ciência tenta separar o penalti do que não é penalti, daquilo que a gente acha que é penalti porque é da nossa equipa. Temos uma tendência natural de ver os nossos, o nosso clube, o nosso ponto de vista.

Agora os do Benfica estão um bocadinho preocupados, mas há muita gente que vai defender o presidente porque é do Benfica, seja lá quem for. É um fenómeno humano e até animal, somos gregários. Sou de Física mas sempre me interessei por outras ciências, pelo diálogo entre ciências e estes são os outros lados.

Na escola, tinha boas notas a Filosofia e não tanto a Física e ciências.
Sim, as minhas melhores notas era aí. A filosofia estuda uma coisa fora das ciências naturais, qual é o verdadeiro limite do conhecimento. A mim interessa-me relacionar as coisas e essa é também a forma de a ciência chegar às pessoas. Verem a ciência como ferramenta da mente e perceber os intercâmbios que se podem fazer, com as artes por exemplo.

Há muitos projetos nos últimos anos de residência artística em laboratórios científicos. É por aí?
Sim, acho muito interessante. Mostra que não temos uma mente científica e uma mente não científica. Todos nós somos vários. O próprio Fernando Pessoa – que também era gémeo como nós, e acreditava em astrologia – tem aquele verso de Álvaro de Campos muito conhecido: “O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. O que há é pouca gente para dar por isso”.

Estou convencido de que ele sabia exatamente do que estava a falar. Não se pode dizer que fosse uma pessoa das ciências, mas era uma pessoa com algum deslumbramento pela ciência que se nota muito em Álvaro de Campos. E acho que esse deslumbramento que se pode ter do lado de fora pode ser abordado por quem está dentro, porque se não é como se fossemos uns marcianos no planeta da ciência.

A minha tentativa tem sido mostrar que os cientistas também são da Terra, com a cabeça um bocadinho mais acima do chão, mas não são uns nefelibatas, aqueles que vivem nas nuvens. Tentar mostrar que a ciência é uma forma de humanismo, é cultura. Irrita-me essa separação, que às vezes se houve ainda nas universidades.

Com todo o avanço de projetos de divulgação como a rede Ciência Viva já há uma ideia diferente? Esse deslumbramento passa para os mais novos ou continua a poder fazer-se mais?
O Ciência Viva foi uma boa ideia do Zé Mariano Gago numa altura em que o país precisava desse despertar. Mas no mundo em que vivemos hoje, em que a ciência tem um impacto muito grande na nossa vida, em que a inteligência artificial já é uma realidade, em que há um algoritmo na Amazon que me diz os livros que eu gosto e eu ainda por cima gosto mesmo dos livros que eles dizem que eu gosto…

Que escolhe os posts que lemos primeiro…
Os filmes para ver na Netflix, os anúncios, os resultados do Google com base no que pesquisamos… Numa altura em que já se pode fazer edição genética, em que temos ferramentas como o CRISPR (edição de genes) – e em que isso só não é feito porque achamos que não é boa ideia, mas pode fazer-se, como fez aquele médico chinês que anunciou ter criado embriões geneticamente modificados –, acho que temos de deixar esta ideia, em Portugal e em geral no mundo, de que a divulgação é uma coisa para as criancinhas gostarem muito e irem para ciência. É para nós próprios percebermos o mundo em que estamos e acho que projetos como a Ciência Viva têm de se virar também para aí.

Para a discussão ética?
Sim, como a tecnologia interfere com direitos, hábitos, sociedades. É muito importante os jovens irem para ciências, mas em Portugal não temos esse problema. Se compararmos a percentagem de jovens a ir para ciências como o que se passa noutros países mais desenvolvidos, não estamos mal – até nas raparigas, que é um problema nos EUA mas não é cá, o que não quer dizer que não possam ser mais e ter lugares de chefia.

Agora era preciso que o esforço de levar a ciência ao público se atualizasse mais. O facto de eu ter 65 anos não me impede de pensar que esse esforço está a ficar velho. A internet permite-nos pensar noutros projetos, em ligações entre diferentes saberes, ir à arte, fazer projetos que nos provoquem. Os melhores museus de ciência do mundo estão a trabalhar muito nessa área, não é mostrar só o objeto da ciência ou o método.

Há uns anos fui ao Museu de Arqueologia de Londres e estava uma exposição de um artista que conseguiu fazer este trabalho verídico: seguiu a história clínica de um homem e de uma mulher desde pequeninos. Teve acesso a tudo o que lhes foi receitado ao longo da vida e fez uma instalação com os supositórios, comprimidos, seringas. O gráfico da vida da pessoa com aquilo tudo dá-nos uma ideia da influência da ciência da nossa vida impressionante.

E estava num local histórico, que nos lembrava que o Tutancámon não teve nada disto. A mim abalou-me e pensei: é preciso um artista para se lembrar disto. Não é que a ciência não tenha imaginação, mas a imaginação da ciência está confinada pela imaginação do mundo. A dos artistas também, mas menos. Diz-se que sonham mais. Sonhar é uma consequência biológica, hoje sabe-se que os animais também sonham, é uma condição animal, mas diria que de certa forma têm uma imaginação mais livre.

E acho que é esse diálogo que podemos aprofundar. Ainda esta semana dei uma contribuição para um artigo sobre mundos paralelos na Visão, que hoje está mais presente na física contemporânea. É uma ideia que apareceu na ficção há muito tempo.

Existirão mundos paralelos?
Agora vem o meu gosto pela filosofia: depende do que significa existir. Podemos dar como existente aquilo que podemos observar. Vivemos numa bolha que é o universo observável. Para lá do Big Bang não conseguimos saber. Poder falar pode-se, quem sou eu para impedir, eu como físico é que estou um bocadinho limitado. Este mundo já me dá água pela barba. Porque é que há tanta gente a fazer ciência? Termos resolvido questões em muitos domínios permitiu abrir novas e novas questões são oportunidades de emprego. Isto nunca esteve tão bom para os cientistas. E acredito que o futuro vai estar ainda melhor.

Em termos de condições de trabalho, não tanto.
Em Portugal continua a ser uma miséria. É um mínimo local, não é o máximo. Estamos a investir em ciência 1,4% do PIB comparando com uma média 2,4% na UE. Alargámos a formação e as qualificações hoje são muito maiores. Tive de ir para fora doutorar-me e os meus alunos não têm de ir, vão se quiserem. Mas depois não têm emprego condigno, compatível com a sua formação, e alguns têm de ir para fora por causa disso, com grande sucesso, mas têm de ir.

Lançou há uns anos a plataforma GPS, para mapear cientistas portugueses pelo mundo. Teve muitas surpresas?
Sim, foi um projeto da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Acho que é uma ideia que pode ser mais aproveitada, mais uma vez juntando as pessoas. Fiz um podcast com alguns no Público e há gente extraordinária.

Também cá há, claro. O próximo telescópio espacial – não o James Webb, que vai ser lançado este ano (e não sei se se vai chamar James Webb, porque era sexista e há um grande movimento a contestá-lo), mas o seguinte – será chamado Roman, em homenagem a uma das primeiras astrónomas da NASA, Nancy Grace Roman, e vai para o espaço daqui a cinco anos. A vice-diretora, Cristina Oliveira, é portuguesa.

É física, está em Baltimore, fez o doutoramento lá, já trabalhou com o Hubble e de repente uma pessoa percebe que trabalhar com aquelas imagens fantástica é algo que se pode fazer sendo formado cá. Ou um português que é um dos mais citados de sempre, que entrou na Royal Society, o imunologista Caetano Reis e Sousa. Não entrava um português na Royal Society desde o início do século XIX. É talvez, além do António Damásio, o cientista português com mais renome no mundo, e pouco conhecido cá.

Falaram sobre a covid-19.
Sim, e ele dizia que o vírus surpreendeu até imunologistas treinados pelas reações exuberantes. Disse que também não estava à espera de vacinas tão rapidamente. Ou outra convera foi com um astrónomo que está em Inglaterra, David Sobral, que baptizou uma galáxia de CR7 e que me contou que pensaram em dar o nome de Messi a outra galáxia porque era menos brilhante (risos). Claro que isto são as alcunhas, porque a sigla quer dizer outra coisa, mas foi muito divertido.

Que marcas vão ficar da pandemia na relação entre público e ciência? Há vacinas, mas também há dúvidas, muita contestação.
Vou ser muito sincero, gostava que ficássemos com uma maior racionalidade. A vacina é um instrumento poderoso de defesa. Claro que há desigualdades no acesso, que pode interferir com o resultado, mas isso não é uma matéria de ciência, é uma matéria social e política. Estou convencido de que há razões para acreditarmos mais na ciência, posto isto não quer dizer que o façamos. Não aposto muito nisso. Há muito trabalho a fazer.

Os livros de astrologia estão sempre ao lado dos livros de astronomia, haverá sempre confusões, livreiros que os metem lá de propósito. A ciência tem um grande caminho pela frente e a comunicação de ciência também. Agora digo outra coisa, que não tem nada de científico… 

O que lhe diz a intuição?
Durante algum tempo os beijinhos vão estar mais confinados a círculos mais restritos, aprendemos que isto está cheio de bicharada, mas acho que, como aconteceu no passado, vamos ultrapassar o problema e vamos tender a esquecer. Vai ser um acontecimento histórico, 4 milhões de mortes não é uma coisa pequena, vai-se contar aos filhos e aos netos, mas o esquecimento é uma arma de sobrevivência.

Se fica alguma lição? Devia ficar, mas não sei se aprendemos. A lição dos ricos e dos pobres? Mesmo agora a vacina está a proteger os mais ricos. A lição de levar a ciência ao público? Em termos geoestratégicos, penso que vamos ver a ascensão da China, que é muito clara. Agiu em força e é o país em termos absolutos com mais pessoas vacinadas. Agora, o futuro como vai ser, não sei, quero estar cá para ver. O Woody Allen dizia: “Gosto muito do futuro porque é lá que vou passar os meus dias”. Ninguém consegue adivinhar.

Havia aquela ideia de que podíamos ficar mais reconciliados com o planeta.
Pois, eu sei. Isto não é uma vacina para as alterações climáticas. Vamos ter de resolver esse problema, que tem a desvantagem de não ser uma coisa de um ano, uma coisa que de repente não nos deixa sair de casa.

E que pôs os Governos a reagir.
Aí, o único efeito colateral benéfico foi que, ao ter mudado o Governo dos EUA, voltaram a fazer parte do Acordo de Paris. Mas a redução das emissões é muito pequena perante a amplitude do problema. E aí está um dos problemas da comunicação de ciência do futuro: não é dizer isto é o apocalipse, acredito que vamos conseguir desenvolver ciência e tecnologia que nos permita enfrentar isto, mas sou um otimista.

Sempre foi?
Sim. Acho que o melhor ainda está para vir, é uma maneira de viver. Se uma pessoa pensa que o pior está para vir, para quê viver? Entra-se naquelas filosofias de século XIX, schopenhauerianas, nietzscherianas, em que o mundo vai acabar. Não, o mundo vai começar. Em cada dia, o mundo começa para cada um de nós. O Sérgio Godinho é que tem a razão toda. Hoje é o primeiro dia do resto da nossa vida. Isto um cientista não é capaz de dizer tão bem como um músico.

Mas como é que imagina o mundo em 2050?
Alguém adivinhou o que temos hoje? Estamos hoje aqui a falar pelo Zoom, isto era do Star Wars. Vai haver tecnologia nova, computação quântica muito mais potente. Vamos continuar a descobrir exoplanetas, se calhar já teremos resolvido aquela questão se a vida é só aqui ou noutros lados. Não digo que isso vá alterar a vida das pessoas, mas do ponto de vista intelectual é um grande desafio perceber se estamos ou não sozinhos no mundo.

Está convencido que há vida algures?
Estou em crer que sim, mas é uma crença. Porque é que não há de haver? Pensamos hoje que cada estrela tem um sistema planetário, havendo milhões e milhões de estrelas. A questão é onde é que eles estão? Pascal já falava do silêncio cósmico que nos assusta. Como digo, acho que isto não vai alterar a vida das pessoas: se amanhã sair num jornal que foi descoberta vida as pessoas vão continuar a sair de casa para apanhar o metro. 

Só se aparecessem cá.
Sim, claro, é como a covid. Na ficção científica isso está muito explorado, mas há quem diga que se há inteligências sobre-humanas nos ignoram completamente (risos). Já li mais ficção científica, hoje em dia acho a realidade mais interessante. Já conseguimos estudar a atmosfera dos exoplanetas, até já conseguimos detetá-los fora da nossa galáxia.

São temas emocionantes. Mas não indo tão longe, falta perceber como funciona o nosso cérebro. Se calhar de hoje para amanhã já conseguimos perceber como emerge a consciência, como simulá-la. A edição genética começará a ser usada para tratar doenças. São temas que vão estar em cima da mesa e estão já – qual é a fronteira entre tratar e aperfeiçoar o ser humano?

Que questão martela mais na sua cabeça?
Está-me a perguntar uma coisa difícil. A pergunta final acaba por ser sempre “quem somos nós?”. Há um físico quântico, Schrödinger, que defendeu que as ciências visam sempre o autoconhecimento, o que resume com um imperativo que estava no tempo do Oráculo de Delfos: “conhece-te a ti mesmo”. É essa a verdadeira a questão. A ciência, seja qual for, tem essa pergunta. Somos tão centrados em nós próprios que queremos perceber o que somos, porque é que o ser humano é humano. E estou convencido que essa é uma pergunta sem fim. 

Não se sente nem um bocadinho mais perto da resposta aos 65 anos?
Como dizia, há coisas que sabemos, mas abrem-se novas perguntas. O Garcia de Orta, médico português do século XVI, dizia que o que não sabemos hoje, amanhã saberemos. Tenho essa esperança, mas é uma esperança que tem de ser uma ambição.

E ligando isto à comunicação de ciência, o meu herói nos anos 80, quando fiz o meu doutoramento e ainda o li em alemão, era o Carl Sagan. E ele dizia que a nossa ambição deve ser o conhecimento. Dizia de uma maneira muito engraçada: o universo só tem uma parte que sabemos que é consciente, que somos nós próprios. Se por alguma razão se extinguir a espécie humana – ele não falava de alterações climáticas, mas da ameaça nuclear – o universo não tem quem o compreenda.

A nossa obrigação de sobrevivência é uma obrigação que temos com os cosmos. Ele pensava que existiam outros seres, mas há essa possibilidade de no limite sermos só nós conscientes. Sabendo nós que se há coisa que nos ensina a ciência é que somos uma parte do mundo, somos uma parte extraordinária. Há alguns exemplares extraordinários. Einstein, Carl Sagan, homens de humor.

As suas referências.
O Einstein se fosse hoje podia fazer carreira no marketing. Aquela da língua de fora é um cartaz de promoção de ciência de que ninguém se lembrava. Os físicos podem ser divertidos, apesar de terem este problema sério de assegurar a consciência do mundo. 

É um cientista apaziguado com a religião?
Resolvi esse problema há muito tempo. As minhas antenas não captam. Percebo que haja pessoas com essas antenas muito bem afinadas. Costumo dizer que Deus existe porque precisamos dele, a maior parte das pessoas são crentes. A dimensão religiosa é uma dimensão do humano. E isso explica muito da história. Sociedades muito religiosas acabam por triunfar apesar das adversidades.

Conhecendo a história e humanidade, acho que Deus existe nesse sentido. Pessoalmente não é uma coisa de que precise. Para mim o universo obedece a leis naturais, a Física não fala de Deus, eu falo quando me perguntam. Mas sei que existe neste sentido muito preciso: o homem precisa dele e tem-no. E vale às pessoas, agarram-se, e às vezes só vivem com isso.

Não é batota, é muito genuíno. A ideia de Deus é das mais verdadeiras que há e nesse sentido respeito profundamente. Estive há poucos dias num encontro com o bispo da Guarda, o Cardeal Patriarca e o cardeal Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura no Vaticano.

Sobre livros?
A história da Bíblia em livro. A história da Bíblia diz-nos muito sobre a história cultural do mundo e até portuguesa. Houve um atraso na passagem a português, a primeira edição em português ter foi feita em Jacarta por um rapazinho de Mangualde, João Ferreira de Almeida.

Tenho uma ligação forte aos livros e tenho uma secção muito grande dedicada não ao conteúdo da Bíblia mas à sua influência na história da edição. Basta ver que o primeiro livro impresso por Gutenberg é uma Bíblia. Na Biblioteca Joanina também há uma grande coleção. Costumo dizer a brincar que quando chegar ao céu, se existir, se estiver lá o São Pedro, estou preparado para dizer “guardei os vossos livros todos”.

“Deixem-me entrar”.
Sim, a ver se dá uns pontinhos.

Desses livros todos que tem aí no seu escritório-biblioteca, que passagem escolheria para ler?
Como há bocado falei, vou buscar o Cosmos, de Carl Sagan. E leio o último parágrafo, que foi o que procurei sempre transmitir na universidade e na divulgação. “Somos a encarnação local de um Cosmos que toma consciência de si próprio. Começamos a contemplar as nossas origens: pó de estrelas meditando acerca das estrelas; ajuntamentos organizados de dez mil biliões de biliões de átomos, analisando a evolução do átomo; descobrindo a longa caminhada que, pelo menos para nós, levou ao aparecimento da consciência.

Devemos a nossa lealdade às espécies e ao nosso planeta. Somos nós que nos responsabilizamos pela Terra. Devemos a nossa obrigação de sobreviver não só a nós próprios, mas ao Cosmos, vasto e antigo, de onde despontámos”. Há quem diga, “por amor de Deus”. Eu direi, “por amor do Cosmos”. Há uma outra frase de que gosto muito de Carl Sagan, ainda a ver com religião. Ele era agnóstico, como também sou.

A Igreja ensina-nos: ama o teu próximo. Sagan dizia: ama o teu próximo, porque se calhar nos 10 biliões de galáxias seguintes não encontras outro.

Fecham 44 anos de aulas. Para um físico, o que é o tempo?
É uma contagem, é outro dos mistérios. Porque é que é do passado para o futuro? Sei que é assim porque nascemos e morremos. São duas datas importantes da nossa vida. Só conheço a primeira e gosto tanto de viver que espero que a segunda demore algum tempo. Claro que sei qual é a média dos homens, mas com o expresso da Medicina…

Espera que lhe calhe o máximo?
(risos) Sim, não espero que digam que era o máximo, mas espero que pelo menos os cruzamentos que vamos tendo uns com os outros sejam férteis. São as coisas que me dão prazer: ler, viajar, estar com os amigos. Ultimamente tenho fotografado. Não são fotos de pessoas, é uma pequena flor que se não a captasse ninguém veria. Estou muito grato. Não tomo isto como uma daquelas situações em que a vida muda de um momento para o outro.

O Vitorino Nemésio, que no final da vida escreveu poemas sobre ciência, deu a última aula aos 70 anos. Disse uma frase: “Só vou deixar de exercer como funcionário público, vou continuar a exercer como ser humano”. Se me lembrar hei-de dizê-la na última aula.

O Alexandre O’Neil, que tinha uma enorme imaginação, tinha outra expressão que também sempre me tocou: “o modo funcionário de viver”. Vou ter um modo de viver um bocadinho menos funcionário. Para mim é bom, espero que seja bom para mais gente.