Pedro Pezarat Correia. Guerra e Sociedade

Pedro Pezarat Correia. Guerra e Sociedade


Ao adágio romano (de Vegécio) “se queres a paz, prepara-te para a guerra”, contrapõe uma outra escola, na qual Pezarat Correia se filia, a ideia de quem se prepara para a guerra – quem sonda, quem constrói, quem se coloca em posição de fazer a guerra no imediato – desagua, quase necessariamente, na guerra.


Uma interessante forma de conciliar os aparentemente irreconciliáveis Thomas Hobbes  (o filósofo conhecido por entender que no estado natureza, os humanos participariam da guerra de todos contra todos, o homem enquanto lobo do homem)  e Jean-Jacques Rousseau  (o filósofo que defendeu que o homem é bom e a sociedade é que o perverte), a propósito desse fenómeno tão impactante na história da humanidade, a guerra, seria, porventura, começar por esta pergunta: a guerra será resultado de um instinto agressivo, da violência inata ao indivíduo? Pois que esse impulso aí estaria e não se pode desprezar (ponto que seria concedido a Hobbes), mas, por outro lado, antes da sedentarização e da revolução agrícola não há notícia da guerra. Ora, porque é que esta não existia antes (porque não havia guerra no Paleolítico?) e passou a haver, a partir deste estádio da nossa evolução? A resposta é: porque esse mesmo estádio proporcionou a emergência da questão do poder – quem vai ser líder? – e da propriedade – a quem pertence, quem tem direito a algo como seu? Estes dois tópicos desencadearam a guerra, ainda que a violência pudesse estar latente no indivíduo ("Da disputa entre os diversos patrimónios em formação – propriedade – ou entre os diferentes líderes em ascensão – poder – nasceram as primeiras guerras", p.27). Dito de outro modo, não bastava o indivíduo trazer uma carga violenta – o seu lado animal – para que guerra houvesse; necessário seria atentar, suplementarmente, na sua natureza social: sem que as condições – disputa pela liderança e pela propriedade -, sem que sociedades organizadas estivessem em jogo (sublinhado que reconheceria Rousseau), não se despoletaria a violência sob a forma de guerra (na Terra). Eis a conclusão de Gaston Bouthoul.

Elaborações que podemos seguir e construir a partir do erudito e elegante ensaio do major-general Pedro de Pezarat Correia  (Guerra e Sociedade, Edições 70, 2017), autor que, contudo, se afasta (ao contrário dos chamados "realistas" que a ela vão buscar inspiração) desta tese, na medida em que a insere nas correntes deterministas sobre a (origem) da guerra – neste caso, essa leitura determinista diria: como há violência latente no humano, e como este é um ser gregário/social, funcionando em sociedades organizadas, a guerra é uma inevitabilidade. Para o General Pezarat Correia, a partir de Carl Von Clausewitz, autor clássico e decisivo no pensamento do bélico, fica claramente fundada e fundamentada a "racionalidade" da guerra: ela é uma escolha, e uma escolha política; fazer a guerra significa "fazer política por outros meios". Passa, pois, a guerra, com o "racionalismo", de "inevitável" a uma "invenção humana". Uma invenção que pode ser traduzida como um acto de violência destinado a obrigar o adversário a submeter-se à nossa vontade (p.36). Na guerra, ainda de acordo com a perspectiva de Clausewitz, há como que uma trindade formada pelo povo – que participa na guerra pela emoção -, pelo militar – que intervém na guerra pela estratégia – e pelo político – que age na guerra pela razão. A guerra é instrumental – não se trata de um fim em si mesmo, mas de um meio para alcançar uma determinada finalidade que se pretende atingir -, racional – porque a decisão de a realizar procede de um cálculo de custos-benefícios e, normalmente, ao serviço de um Estado Nacional – não de um grupo específico, particular. 

Ao adágio romano (de Vegécio) "se queres a paz, prepara-te para a guerra", contrapõe uma outra escola, na qual Pezarat Correia se filia, a ideia de quem se prepara para a guerra – quem sonda, quem constrói, quem se coloca em posição de fazer a guerra no imediato – desagua, quase necessariamente, na guerra. Então, face a este posicionamento/constatação, a obrigação de quem quer a paz – uma paz mais abrangente/mais densa do que uma não guerra – será preparar-se para a paz (p.18). O facto de se compreender como, historicamente, sociedades militarizadas são promotoras da guerra (p.56), parece abonar esta abordagem do provérbio legado por Roma.

A guerra, descrita, não sem razões, como uma "doença social"(p.19), nunca tem uma causa única (p.52). Diferentes filosofias têm apresentado como motivações primeiras da guerra, respectivamente (segundo cada escola), causas de natureza política (lutas pela soberania, libertação nacional, extensão imperial, modelos estatais), económico-sociais (lutas pelas matérias-primas, território, mercados, infra-estruturas, tarifas aduaneiras, dívidas externas, ambiente, pobreza, fome, doença, desemprego) e identitárias (emergentes, em grande medida, no pós-guerra fria e com a globalização). Ao nível da análise da relação da guerra com os regimes políticos, notaríamos que os despotismos (autocracias) são belicistas, enquanto as democracias são de tendência pacífica (p.56).

Já em 1981, Alain Joxe aludia a uma terceira guerra mundial – "dizendo que os conflitos que caracterizam o mundo na actualidade, em que se incluem genocídios causados pela fome, pelas grandes imigrações intercontinentais, pelas violações generalizadas dos direitos do homem, podem ser definidos como uma Terceira Guerra Mundial" (p.47) – e Rupert Smith falaria em guerra do povo – "o paradigma clausewitziano da guerra industrial deu lugar a um novo paradigma, a que chama guerra no seio do povo, porque o campo de batalha são as pessoas, todas as pessoas e em toda a parte, na rua, em casa, no campo" (p.48). Joseph Nye comentará que tal forma de guerra conviverá com os modos mais tradicionais da mesma, naquilo que serão guerras híbridas, termo que entrou em definitivo no habitual léxico militar, lá onde as "guerras de guerrilha" tiveram entrada (empírica e conceptual, dir-se-ia) nos primórdios do séc.XIX, com as invasões napoleónicas à Península. A guerra biológica poderá dizer-se mesmo uma "guerra ontológica", porque é a vida – ela mesma – a estar em causa. A não guerra seria a característica da guerra nuclear (p.40). A guerra fria a continuação da guerra por outros meios (não mortíferos) (sobre se a guerra fria foi guerra há uma disputa na literatura/interpretação sobre a guerra). Hoje, coloca-se, inclusive, a hipótese de saber se não viremos, mesmo, a assistir à guerra pela guerra (e nas consequências que isso trará para o humano).