Todos os dias uma experiência nova, este podia ser o lema de vida de Damo Suzuki, icónico vocalista de 71 anos da pioneira banda alemã CAN. Radicado em Munique desde os anos 1970, o músico japonês esteve a falar com o i a propósito do filme documental sobre a sua vida, Energy: A Documentary about Damo Suzuki, realizado por Michelle Heighway.
Antes de fazer 18 anos, decidiu que iria percorrer a Europa só com instrumentos musicais e um saco de cama, mesmo que este estilo de vida implicasse ser agredido pela polícia parisiense – segundo o próprio, por “ter o cabelo demasiado grande”.
Um ano depois desta experiência, Suzuki estava a fazer uma performance nas ruas de Munique e, fruto do acaso, acabaria por receber um convite para integrar a influente banda alemã, uma decisão que mudaria a sua vida para sempre e o elevaria a um estatuto de lenda musical.
“Tudo o que aconteceu na minha carreira foi por acidente”, explica ao i o músico de origem japonesa. “Foi uma grande coincidência, um momento muito especial. Por acaso, estava naquela rua ao mesmo tempo que os membros dos CAN. Se isso não tivesse acontecido, provavelmente não estava neste momento a falar contigo e tinha percorrido um caminho completamente diferente”.
Estávamos com as expectativas em alta para conversar com um artista tão determinante para a música moderna, ouvir histórias sobre a cena musical alemã dos anos 1970 ou sobre como funciona o seu processo de criação musical através do improviso.
No início da conversa, via Zoom, questionamos Suzuki, de 71 anos, como está a correr o seu dia. “Fui dar um passeio num parque perto de minha casa, é importante mantermo-nos saudáveis nesta fase complicada. A Alemanha está a passar por uma fase horrível: temos demasiados vacinados”, remata o cantor.
Suzuki, que nos últimos anos passou por um duro processo para curar um cancro no colon, o segundo cancro que desenvolveu durante a sua vida, não acredita na eficácia das vacinas, nas máscaras e, inclusive, afirma que “a sida é falsa”.
Estas paranoias remetem-nos para a música de 1985 dos The Fall, ‘I Am Damo Suzuki’, um tributo ao japonês, onde Mark E. Smith canta: “What have you got in that paper bag? / Is it a dose of Vitamin C [referência ao título de uma música dos CAN, do disco Ege Bamyasi]”? / Ain’t got no time for Western medicine / I am Damo Suzuki?”.
Apesar de parecer continuar a não ter tempo para a medicina ocidental, o músico teve tempo para falar connosco sobre a sua carreira e a música que continua a criar.
O inesperado caminho para criar “algo diferente”
Kenji “Damo” Suzuki nasceu no dia 16 de janeiro de 1950 em Kobe, a sétima maior cidade do Japão.
Desde muito cedo, revelou interesse pelas artes, tendo recebido o seu primeiro instrumento musical aos oito anos, uma flauta, como prenda da sua irmã, que todos os aniversários lhe oferecia um instrumento diferente – depois da flauta, ainda lhe ofereceu um clarinete e um saxofone.
Durante a infância, Kenji Suzuki acabou por desenvolver um interesse por música clássica, pela R&B americana e pelos grupos de rock ‘n’ rol ingleses, especialmente pelos Kinks, tendo chegado a liderar um clube de fãs da banda.
Aos 17 anos, decidiu que estava farto de estar limitado pelas águas do Oceano Pacífico e decidiu abandonar o seu país para explorar o mundo. Viajou um pouco por toda a Europa, tocava música nas ruas, fazia pinturas em troca de dinheiro e trabalhou em restaurantes, viveu na Suécia, fez parte de uma comuna onde viviam cerca de 50 pessoas e formou um duo de música folk, na Dinamarca, França, Inglaterra, Irlanda, Suíça, Finlândia. Em 1970, aterrou na Alemanha, local a que ainda hoje chama “casa”.
Instalado em Munique, arranjou pela primeira vez um trabalho fixo, como guitarrista numa produção do famoso musical contracultura Hair. Apesar de ser um trabalho que bem remunerado, a frustração começava a crescer em Suzuki.
“Estava bastante farto desta rotina”, conta ao i. “Todos os espetáculos eram iguais e tinha que repetir sempre a mesma atuação, o que não era nada divertido. Por isso, às vezes, fazia uma espécie de performance nas ruas para libertar as minhas frustrações”.
Casualmente, numa dessas tardes, enquanto estava a atuar na rua, Suzuki foi abordado por Holger Czukay e Jaki Liebezeit, membros respetivamente, baixista e baterista dos CAN (um nome com várias leituras possíveis, sendo a mais popular, sugerida por Liebezeit, um acrónimo para “Comunismo, Anarquismo e Niilismo”).
As raízes desta banda extremamente influente na cena musical alemã conhecida como krautrock, ou Kosmische musique (música cósmica), e que também inclui grupos como os Kraftwerk, NEU! ou Tangerine Dream, podem ser remontadas a uma viagem aos Estados Unidos feita por Irmin Schmidt, teclista e compositor com formação clássica, que teve contacto com músicos avant-garde, como Steve Reich ou Terry Riley, grupos de música americanos de rock ou funk, como Sly and the Family Stone ou Velvet Underground, e o mundo da cultura pop de Andy Warhol. Nas suas palavras, esta viagem “corrompeu” o teclista, que ficou entusiasmado com as possibilidades da música contemporânea.
Já na Alemanha, Schmidt convidou para o seu apartamento Czukay e Liebezeit, mas também Michael Karoli, que iria tornar-se guitarrista dos CAN, e o flautista David C. Johnson (que mais tarde abandonaria o grupo devido às suas influências da música rock). Juntos realizaram o primeiro ensaio da banda.
Os ritmos do grupo, designados como “motorik”, pela forma como se repetiam ao longo da música, e a forma como misturam linguagens musicais, como o rock psicadélico, o jazz, o funk o noise e a música de improviso, deixaram uma pegada que ainda hoje é sentida numa variedade enorme de grupos, dos Sonic Youth aos Oasis, a Kanye West, que samplou ‘Sing Swan Song’ na sua música ‘Drunk & Hot Girls’.
Nessa tarde de 1970, os membros dos CAN estavam com um problema. Apesar de já terem lançado um disco, Monster Movie (1969), que lhes valeu um certo culto, o grupo estava sem vocalista – o americano Malcolm Moody tinha sofrido um colapso nervoso e o seu psicólogo recomendou-lhe que regressasse aos Estados Unidos e se mantivesse longe da música caótica dos alemães.
Impressionados pela performance de Suzuki, os alemães abordaram-no. “Eles disseram que tinham um concerto nessa noite, mas estavam sem vocalista e convidaram-me para me juntar a eles. Aceitei sem pensar muito no assunto”, diz-nos Suzuki.
“Pessoalmente, não gosto muito de pensar em horários e não tinha grandes ambições de tornar-me um músico ou um artista. A única coisa que lhes perguntei foi que tipo de música é que tocavam e eles responderam ‘algo diferente’”, recorda.
“Não sabia bem o que isso significava, podia ser qualquer coisa, mas não me intimidou”, confessa. “Sou capaz de me adaptar a vários estilos com diferentes idiomas, ainda hoje continuo a fazê-lo”.
No curto espaço de tempo que esteve nos CAN, entre 1970 e 1973, Suzuki colaborou em Soundtracks (1970), Tago Mago (1971), Ege Bamyasi (1972) e Future Days (1973). Através da sua forma singular de cantar, com a sua mistura de línguas, desde o inglês, alemão ao japonês, sem uma estrutura demarcada e, na grande maioria das vezes, improvisada, viria a inspirar artistas como Johnny Rotten dos Sex Pistols, que revelou que foi o disco Tago Mago que o fez interessar-se pela música, e bandas como os Radiohead ou os Jesus and the Mary Chain.
Apesar de ter sido um período curto, os anos que o artista esteve nos CAN foram uma experiência intensa e que serviu para marcar o seu nome na história da música e abrir caminho a estilos musicais tão distintos como o post-punk, o ambient ou o techno.
A influência da banda alemã é sentida para lá do seu som: diversos grupos fazem questão de mencionar o nome dos CAN nas suas músicas, como os LCD Soundsystem, na música ‘Losing My Edge’ (2005), “I was there in 1968 / I was there at the first CAN show in Cologne”, canta James Murphy, e, inclusive o nome de Damo Suzuki, na icónica canção da banda post-punk The Fall chamada ‘I Am Damo Suzuki’.
“É sempre uma sensação estranha [ouvir uma música sobre nós]”, confessa Suzuki, “a primeira vez que ouvi essa música pensei: ‘deve existir outro Damo Suzuki’”.
“Não conheci o Mark E. Smith [líder dos The Fall], mas senti que efetivamente o inspirei. Acho que agora existe um maior interesse por parte das bandas mais jovens em descobrir o som que eu e os meus colegas criámos na altura, o krautrock, especialmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde imensas bandas ainda fazem este estilo de música, um produto muito especial de um certo período da história”.
A vida e a música de improviso
amo abandonou os CAN em 1973. “Estive nos CAN entre os 20 e os 23 anos. Quando abandonei o grupo foi porque senti que já tinha estado o tempo suficiente”. Por outras palavras, estava saturado do trabalho de estúdio da banda.
“O nosso último disco [Future Days] foi uma tentativa de alcançar a perfeição e, para mim, já não era necessário a minha permanência no grupo”, explica.
Questionado se alguma vez se arrependeu da decisão de abandonar o grupo, diz não ser uma pessoa “sentimental”. “Quando estamos a ler um livro não voltamos capítulos atrás, lemos sempre a próxima página”, exemplifica. “Apenas me preocupo com o caminho que tenho em frente, os meus olhos estão na parte da frente da minha cabeça, não na parte de trás”.
Depois de abandonar os CAN, tornou-se testemunha de Jeová, casou-se e teve um cancro, algo que levou a que durante o resto da década estivesse fora do olhar do público.
Quando a sua vida acalmou, regressou à música e integrou o grupo Dunkelziffer, uma banda liderada por Liebezeit, e, também com o baterista, ainda formou o projeto Damo Suzuki Band.
Nos últimos anos, mais descomprometido, Suzuki procurou continuar a trabalhar e a explorar o lado mais instantâneo da música.
“Não estou assim tão interessado em criar música”, explica. “Prefiro construir em palco uma plataforma com portadores de som [designação que atribui aos músicos que o acompanham em palco] e uma audiência, todos juntos. É um momento especial. Este é o pacote que ofereço com a minha performance. Não a música em si”.
Atualmente, tem realizado concertos sem compromissos. Todas as suas atuações são com “portadores de som” diferentes, um processo importante para um músico que não gosta de se repetir. “Não temos material antes de começarmos os concertos”, refere. “Encontramo-nos durante o soundcheck, tratamos deste processo, às vezes demora mais que o costume porque temos que nos habituar uns aos outros, e estamos prontos para começar”.
“O mais importante é existir comunicação. Música é comunicação. Enquanto houver comunicação não me preocupo com material. O material surge subitamente e por acidente. É assim que crio a minha música”, revela-nos.
Esta falta de compromisso levou o músico a aceitar convites de praticamente todas as bandas que o convidam para colaborar, desde os psych-rockers japoneses Minami Deutsch ou os Kikagaku Moyo à nova coqueluche da música alternativa britânica, os Black Midi.
“Gosto de bandas jovens e não costumo ter problemas com elas, especialmente se estiverem a criar ‘algo diferente’”, diz, tendo em mente o convite para integrar os CAN. “As bandas com quem vou atuar, nessa noite, vão fazer um espetáculo diferente do habitual. Não sou um membro da banda e não tenho interesse em fazer parte de um grupo. Por isso, quando atuam comigo vamos criar um momento musical único”.
Suzuki recupera ainda o momento em que foi convidado a atuar com a banda inglesa na sala de concertos Windmill, Brixton, uma das mais importantes salas independentes do Reino Unido. “Uma vez atuei com os Black Midi, eles eram todos rapazes de 18 anos, muito poucas pessoas os conheciam, mas juntei-me a eles. Eles nessa noite tiveram que atuar duas vezes, fizeram o seu concerto e atuaram comigo, e fiquei impressionado pela forma como estavam a criar ‘algo diferente’. Foi um momento muito bom”, descreve.
Vida pós-covid
Os últimos anos não foram fáceis para Damo, voltou a ser atormentado por um cancro, desta vez no colon, que o deixou incapaz de viajar e de atuar. Felizmente, recuperou e, em 2016, conseguiu voltar a colocar em ação aquilo que o próprio chama de “The Neverending Tour” (a digressão sem fim), assunto que está a ser tratado pelo documentário Energy, filme que ainda não está concluído. Heighway confirmou ao i que as visões do músico sobre a covid-19 não estarão patentes no filme, uma vez que as filmagens foram finalizadas em 2019.
Questionado sobre como será a sua vida após a pandemia, Suzuki partilha o seu cepticismo, argumentando com diversas teorias na conspiração. O seu regresso aos palcos irá acontecer em julho, através de um concerto apenas para pessoas não vacinadas.
Segundo Suzuki, trata-se de um festival está a ser organizado por pessoas que não querem ser vacinadas, só vai contar com músicos não vacinados e, de forma a controlar que o público também é constituído por pessoas não vacinadas, na entrada existirá um ponto de controlo onde seguranças irão colocar um íman no braço dos membros da audiência.
Perguntamos ao músico se este tipo de encontro é legal e se o governo alemão irá permitir que continue sem se vacinar. À primeira pergunta, o músico diz não ter certezas. Quanto a ser obrigado a vacinar-se, Damo Suzuki garante que nesse caso ele e a sua esposa abandonariam o país. “Eu e a minha mulher não vamos tomar a vacina e se formos obrigados vamos sair da Alemanha e começar a vida noutro local”, remata.