António Coimbra de Matos. O psicanalista que fez do amor uma religião e da dúvida o seu bordão

António Coimbra de Matos. O psicanalista que fez do amor uma religião e da dúvida o seu bordão


Morreu, aos 92 anos, um dos mais prestigiados psicanalistas portugueses. Com seis décadas no combate para salvar a alma da gangrena da depressão, foi um general que apontava sempre na direcção do futuro, lembrando-nos que sem desejo ou projecto ficamos frágeis e mais propensos a quebrar.


Isto passa mais pela alma, e vamos, por isso, arrumar a parte da morte para deixar mais espaço à vida. Basta ir à etimologia, e o professor que sempre se foi valendo das observações do médico também dava as suas cotoveladas, entre uns pós de história ou de teoria. Assim, António Coimbra de Matos explicava que a raiz do termo psiquiatria é ‘medicina da alma’: Psique – alma, atre – médico. Daí, o médico da alma. Assim, se psicologia é o estudo da alma, a psiquiatria já tinha mais caminho, remontando ao século XVII, ao passo que a psicologia era uma ciência do século XIX. Morreu esta quinta-feira, aos 92 anos. Só é chato porque tinha uma ganância incomum de futuro. “Aos alunos dizia que a psicanálise antiga era como o condutor que estava sempre a olhar pelo espelho retrovisor. Ora, eu quando vou na estrada tenho de olhar para a frente”, disse há mais de uma década numa entrevista ao semanário Sol. A solução era mesmo lembrar quem passa mal de que somos animais que vivem com um pé no futuro. Sem isso, perde-se o projecto, sem planos a vida amesquinha-se, o talento para o sonho amofina-se. Com as suas mais de seis décadas de dedicação à psiquiatria, ao estudo da depressão e da psicanálise como viagem da “saudade para a imaginação”, Coimbra de Matos estava sempre empenhado em manter a via aberta para esse regresso ao futuro. “A minha teoria atual na análise é não estar muito preso ao passado, mas estar mais virado para o futuro. Para o que o indivíduo deseja e pode fazer”, vincou numa entrevista ao Expresso. “O sonho diurno é projeto, um trabalho sobre o futuro, o que antecipamos fazer. Nós, humanos, estamos sempre a antecipar o futuro. E por isso construímos uma família, uma civilização, escrevemos livros. Fazemos pontes para durar 200 anos.”

Por essa razão, também a reforma não era uma perspectiva que o entusiasmasse. “O que é que eu ia fazer? Calçar as pantufas. Só escrever livros e artigos?”, disse ao Expresso. “Deixei de dar aulas na Faculdade de Psicologia porque fui obrigado. No hospital também. Aos 61 e 60 anos, respetivamente. No ISPA, estive até aos 83, parei quando começou a não me apetecer ir dar aulas.” E se a morte lhe vinha tirar medidas, não se incomodava muito. Tinha a inteligência de enxotar a grande varejeira com a esperança de que chegaria aos 100 anos. Lembrava, de resto, que a mãe cumpriu um século e mais um ano de vida. Já não fumava os dois maços de tabaco por dia como em tempos, tinha reduzido para meio maço. Mas do que tinha medo era de perder funções, acabar cego ou paralítico, trancado e a aguardar a sua hora. O cansaço já se ia demorando, mas pior seria se o arrancassem à lucidez. Sentia essa diferença: “À noite já não estou completamente lúcido como estou de manhã.” Mas a sua luta nunca foi propriamente contra a loucura. Tinha pena de todos esses senhores que “nunca lograram que a névoa/ tingisse os jardins do desejo”. Asseverava que um certo grau de anormalidade também é bom. “Os mais malucos de todos são os normopatas. Aqueles todos certinhos são os mais doentes. Os que têm um grão de loucura são muito mais saudáveis.” Podíamos citar mais uns versos, desses em cerco ao desejo. Pois Coimbra de Matos foi, entre nós um dos seus apóstolos, alguém que, com a sua rejubilante irreverência, e sem “jamais renunciar ao clamor do sangue”, deixava que a boca seguisse o mapa dos pássaros. Ele que tanto lia e escrevia sem ficar vítima dos limites absurdos em que as disciplinas hoje se dispõem de forma carcerária, apreciaria estas palavras do poeta espanhol Antonio Carvajal: “Porque sempre se soube/ que nos habita o hálito/ de uma alma nunca nossa,/ vítima dos limites/ que as sombras impõem/ ao corpo e ao desejo.”

António Coimbra de Matos fez-se mestre por dar rédea solta à sua curiosidade. Admitia ter aprendido “mais com os doentes e com os alunos do que com os grandes mestres”. Até esse deus que o acicatava lhe chegou numa das suas sessões, como contou ao Sol: “Tive uma analisanda — professora de psicologia — que um dia me disse que tinha descoberto que eu era religioso, que o meu deus era o amor. Acho que é verdade. É a coisa que nos mantém, que nos entusiasma e pelo qual vale a pena lutar.” Era no amor que encontrava o grande antídoto contra o flagelo da depressão. Explicava que “a depressão é uma consequência da desvalorização do outro”, e que na nossa sociedade muitos indivíduos são oprimidos e humilhados em dois contextos importantes: no trabalho e na escola, esse fenómeno conhecido por bullying. Depois, quanto à questão de Portugal ser um país assolado por esta crise, um dos países em que mais se prescrevem antidepressivos, não embalava tão depressa em diagnósticos gerais, e apontava mais para um problema de submissão aos interesses da indústria farmacêutica. Via no uso excessivo de medicação uma solução de recurso, dessas para esconder o verdadeiro problema: "O atraso da saúde mental não é só português, é mundial. É geralmente o parente pobre dos serviços de saúde e a principal razão é que os doentes, a maior parte das vezes, não têm capacidade de protesto e as famílias também não reivindicam por eles", insistiu no final de 2019 numa entrevista a este jornal, feita no dia do seu 90º aniversário.

Mas havia um ponto em que concedia que de facto essa autocolante com a caricatura dos portugueses como um povo de brandos costumes era difícil de descolar. “Os outros reagem muito mais que nós. Somos pouco revoltados. E uma das lutas contra a depressão é a revolta. Se a minha namorada me abandonar, eu reajo com depressão mas também com raiva. ‘Ai que estupor de gaja, que puta, que me largou.’ E a revolta para nós é abafada.”

Quanto à função do analista, Coimbra de Matos resgatava-o às comparações que faziam dele um guia, um orientador, um pai, um professor, um padre. “Costumo defini-lo em duas funções: de farol, que ilumina e deixa o paciente escolher o seu caminho; e de catalisador, capaz de procurar o processo de mudança, com possibilidade de sucessos.” Outra coisa que não admitia era que se atribuísse a culpa pelos impasses à resistência oferecida pelos pacientes. “Não há pacientes resistentes, há analistas incompetentes”, sublinhou. “Lembro-me de um texto antigo, de um discípulo de Freud, Wilhelm Stekel, que tem um livro, de 1911/12, que se chama “A Mulher Frígida.” E acaba com um parágrafo em que diz: mulheres frígidas não existem, o que existem é homens incompetentes.”

O mais velho de quatro irmãos, Coimbra de Matos nasceu em 1929 numa aldeia sobranceira sobre o Douro, entre a Régua e Vila Real – Galafura. Sendo do Douro, nascera na Lixa, perto de Amarante. “O irmão da minha mãe era médico e vivia lá, de maneira que todas as mulheres da família iam parir a casa dele. É essa a razão porque eu e todos os meus irmãos nascemos na Lixa. Antes de me ter a minha mãe teve de ir de carro de bois até à estrada principal porque tinha as pernas tão inchadas que nem conseguia montar um cavalo ou um burro.”

Passou a infância em Galafura, e foi só com nove anos que entrou no liceu, no Porto. Isto porque um tio tinha a opinião que mais lhe valia ser o miúdo a fazer o seu currículo pelas ruas da aldeia, andando na gandaia, do que se se fosse enfiar numa escola, receber a instrução geral, comum. Assim, aprendeu cedo a desobedecer, a pensar por si. Se os miúdos largados hoje na província, numa dessas aldeias que até os bons mapas penam para as apontar, dessas para as quais é mais dos pássaros de quem se pode esperar indicações, se os da cidade acham tudo muito chato, e em vez de ficarem com desejo de se atirar a um tanque ou a algum rio, preferem afogar-se num ecrã de telemóvel, Coimbra de Matos nunca teve dificuldade para encontrar com que se entreter. “Andava com os outros miúdos na brincadeira. No Verão andava atrás dos passarinhos e aos ninhos, íamos para as ribeiras brincar com a água, subir às árvores, ir à fruta… Numa aldeia há muita coisa para fazer”, disse ao Sol.

Não deixou nunca que lhe dessem cabo da infância, e ela persistiu nele como uma base sólida, alentando a adolescência, que, segundo ele, é essa fase que, se não for vivida plenamente, deixa as pessoas muito inibidas: “não têm estratégias de se defender do perigo, de conquistar o mundo, de se relacionarem com familiares e estranhos, com homens e com mulheres, com negros e com brancos, com nacionais e estrangeiros”. Se hoje estamos tão assustados com tudo, com o outro, desejando murar-nos, fechar o país como um quarto isolado, ficando cada um reduzido aos seus brinquedos, talvez isso se explique como uma das perturbações típicas da sociedade moderna e urbana, onde o convívio é cada vez menor. “Desapareceu o convívio de bairro”, lembrava o psicanalista. “Há um maior isolamento em relações mais próximas. Este individualismo leva a uma certa solidão, a uma certa desconfiança, leva à paranoia… a pessoa pode ser prejudicada pelo outro. As relações afetivas são menos consistentes. São mais superficiais, menos espessas, mais finas, mais delgadas. Partem facilmente.”

Depois dos primeiros anos de liceu no Porto, tendo vivido em casa de um tio, às tantas deu por si enfiado num colégio interno e a coisa deu para o torto. As notas despencaram. Assim, aos 14 anos o pai pô-lo a viver sozinho numa pensão. Formou-se em Medicina e trabalhou como cirurgião cardíaco, mas cansou-se depressa e começou a interessar-se pela psiquiatria. Esteve para assinar um contrato com um hospital de Albany, perto de Nova Iorque (EUA). A futura mulher achou uma loucura e ameaçou não se casar, o que o levou a instalar-se em Lisboa no início da década de 60. Trabalhou sete anos no Hospital Júlio de Matos, atual Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa e, após a saída de João de Santos, pioneiro da pedopsiquiatria no país, dirigiu o Centro de Saúde Mental Infantil. Este centro deu mais tarde lugar ao Departamento de Pedopsiquiatria do Hospital D. Estefânia, onde trabalhou até à reforma, continuando a dar consultas a título particular no consultório em Campolide. Foi professor no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA) e fundador da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica, ao lado de Carlos Amaral Dias, também já falecido. Coimbra de Matos, justificou a cisão com a Sociedade Portuguesa de Psicanálise e formou uma nova sociedade por uma diferença de atitude em relação à psicanálise: “dentro do mundo da psicanálise há os indivíduos que vêem a psicanálise como uma ciência, e os que vêem a psicanálise como uma religião, como uma ideologia. Face a esses estive sempre na oposição. E, portanto, fui contestando, até que em determinada altura já não suportei mais ouvir falar em conceitos vazios, por exemplo que todos nós psicologicamente somos bissexuais, um dos dogmas da psicanálise clássica (…) A psicanálise autêntica é uma não-ideologia – é uma ciência. Há pouco tempo perguntaram-me: ‘Como é que distingue essa ideologia da ciência?’. Muito simplesmente: nós os cientistas não temos certezas. Temos muitas dúvidas, imensas dúvidas. Do outro lado só têm certezas, não têm dúvidas. É só isto.”