1.Convocando nova leitura de ficção a estas páginas – Hotel Silêncio (Quetzal, 2019), de Audur Ava Ólafsdóttir –, principio por sublinhar, uma vez mais (como, ainda muito recentemente, com Serotonina), um narrador-protagonista, realizando a sua auto-biografia. Voz masculina principal, uma pequena epopeia sobre a nossa (humana) condição ferida, com o amor (neste caso, amor-bondade) como resgate. Entretanto, prosseguem completamente à deriva os personagens. A perambulação de Jonas é, de resto, também um à procura de si, num desencontro em permanência, seja com um corpo que é estranho ao (próprio) protagonista – "tenho um corpo (?), sou um corpo (?)" -, seja com o idêntico, ou o diferente, em outra(a) idade(s). Hotel Silêncio constitui-se, pois, entre outras, como uma reflexão acerca da identidade (pessoal).
2.Tal como em Ordesa [Em tudo havia beleza], de Manuel Vilas, os capítulos, em Hotel Silêncio, são muito curtos, desta feita sem recurso a numeração, mas a um larguíssimo conjunto de motes, pequenas frases provenientes de alguns dos mais destacados autores ocidentais dos últimos séculos – sobressaindo, de entre estes, Nietzsche -, relevantes escritores nórdicos contemporâneos, citações bíblicas. Há, de resto, um pano de fundo bíblico nos nomes (Jonas, Adam) e em episódios e figuras marcantes do grande código da cultura ocidental (apesar de tudo, ainda presente) como a de Job ou o Cântico dos Cânticos ("eu estava no Livro de Job, de modo que li o que nele se diz de Job, o íntegro e o justo, o piedoso e o escrupuloso, que foi preso e torturado pelas cordas da aflição (…) Se eu estivesse a ler o Cântico dos Cânticos e fosse na passagem que diz «os teus seios são como uvas», talvez ainda fosse um homem casado", p.67; neste passo, Jonas reflete sobre a sua relação conjugal com Guorún, com manifesta auto-ironia).
3.No original, o título (islandês) do livro é Or. Na última página da obra, a autora faz questão de explicar que Or se traduz por cicatriz ou cicatrizes e, com a escolha daquele vocábulo, é clara a existência de um programa: "quer dizer que nós olhámos nos olhos a fera selvagem, que a enfrentámos e sobrevivemos". Vivemos com as nossas cicatrizes, tomamos consciência delas, mesmo assim continuamos. O esclarecimento, que pode ser lido à laia de sinopse, chega apenas uma página depois de, a propósito do suicídio de Svanur (vizinho-amigo, na Islândia, do narrador auto-biógrafo Jonas), se recordar da interrogação que este sempre fazia: "«Será que alguém alguma vez recupera do facto de ter nascido?» (…) «Se nos pedissem a nossa opinião (…) não responderíamos que preferiríamos não ter nascido?"(p.197). Apesar da dor da consciência, de "condenado a ser livre", Jonas sobreviveu (venceu), sendo que no seu caso a ponderação – e até a decisão, afinal não levada a cabo – do suicídio foi muito efectiva. Com a sua nota derradeira, Ólafsdóttir tanto pode ser lida a sancionar a "vitória de Jonas", como, extensivamente, como que partindo do Camus de O mito de Sísifo ("a única questão verdadeiramente filosófica é o suicídio"), alargá-la a todos os humanos (não suicidas).
Diversamente das reflexões existencialmente mais pessimistas do personagem Svanur, e intentando, de novo, um diálogo com “Ordesa”, toda a narrativa de Manuel Vilas, em auto-biografia, cujo mote e todo o livro é em favor da vida [Em tudo havia beleza], uma elegia, ora alegre ora pungente, a todos os seus momentos, bebendo o cálice até ao fim, nos sabores doces e agrestes que o seu néctar (necessariamente) produz. Nunca abreviar a vida, o seu fim lá virá inevitavelmente, não faz sentido estar a apressá-lo, o Preço Certo que eu via com o meu pai na década 70 era horrível, mas hoje vou ao youtube para o resgatar – ao revê-lo, encontrar-me na presença de meu pai. Diferentemente de muitos dos personagens e do tom de Serotonina, ou de Hotel Silêncio – ainda que com a sua redenção no amor/bondade; porventura em Houellebecq um amor não consumado plenamente – em Manuel Villas há uma afirmação da vida, ela mesma, como boa (sem deixar de ter a crueza e a miséria que, nomeadamente, a sua incarnou).
4.Tal como o narrador-protagonista de Serotonina, também o de Hotel Silêncio, Jonas, 1,85m, 84 kg, 49-50 anos, há muito não tem sexo – "terei de lhe confessar tudo? Que já não sei como se fazem as coisas?"(p.161: faz questão, inclusive, aquele, de precisar que se trata de 8 anos e 5 meses em que tal (não) acontece (p.36); o paralelismo com as reportagens e peças hodiernas sobre a falta de desejo e o decréscimo de tal atividade nas nossas sociedades é manifesto) – experimentando, ademais, igualmente, uma enorme solidão, e uma juventude marcada por alguma promiscuidade sexual (a que Florent, o narrador de Serotonina, não fugiria também).
5.A mãe de Jonas está num lar, num asilo. Jonas visita-a assiduamente. Na descrição do estado daquela, é à epiderme que se sente, por parte de quem já passou por algo semelhante, o cheiro a couve e almôndegas espalhado por todo o "centro de dia", o calor abafado permanente, não se podem abrir as janelas por causa das correntes de ar, o ambiente é claustrofóbico e a mãezinha, que fora organista (p.62), e que não fora feliz no casamento (p.42; de resto, aos 50 anos, o pai de Jonas perdeu os sentidos nos degraus de casa), interessadíssima por história e pelas questões da guerra, não se recorda, à noite, da visita durante a tarde, do filho ("há que tempos que não me vinhas visitar" – Alzheimer sobrevoa a primeira parte da narrativa, com um tom realista muito vincado).
6.A pele de um homem adulto pesa cerca de 5 kg, informa o narrador. Que acrescenta, de imediato, uma nota cultural: a cicatriz é algo que é admirado em certos países do mundo. Suponho que assim se reverencia quem aceitou sujar as mãos, quem sofreu e prosseguiu, quem tem sinais de uma batalha – e de certa vitalidade – colados à pele, quem foi à luta e se tornou, ipso facto, adulto (ou ancião mesmo).
7.Desde muito cedo na narrativa, o (putativo) suicídio de Jonas é aventado, imaginado (pelo próprio), insinuado. A separação (conjugal) de Gorún (e Jonas fora o primeiro homem que lhe falara em sofrimento e morte logo no primeiro encontro a sós que haviam tido); a notícia, que esta lhe transmite, de que aquela que ele julgara toda a vida ser sua filha, na verdade foi fruto de relacionamento sexual seu com outro homem (a paternidade biológica/afectiva equacionada no livro também; o choque do pai, que divaga: nunca fui mau com ela, nunca me zanguei com ela…, p.61), a rapariga, especialista em biologia marinha (p.59), de 26 anos a ligar ao pai adoptivo, no seu 50º aniversário, dizendo-lhe que não é aos 26 anos “que vou mudar de pai”; a perda de um sentido vital: "e se eu lhe pedisse que me desse uma única razão para continuar a viver? Pediria só uma, mas poderiam ser duas. Em jeito de explicação, dir-lhe-ia que me sinto perdido"(p.39) (…) Tu não queres viver, meu docinho de mel? [pergunta-lhe a mãe, acamada, mas numa espécie de relâmpago próprio de quem conhece muito bem o filho]. Não tenho a certeza [responde Jonas]". Tudo isto, a incapacidade, já, de espanto – "há alguma coisa na vida, pergunto-me, que possa ainda surpreender-me? A maldade humana? Não, o meu conhecimento nesse domínio é total. A bondade humana? Não, conheci um sem número suficiente de pessoas boas para acreditar nela. A infinita beleza dos cumes das montanhas, os múltiplos estratos de uma paisagem, montanhas atrás de montanhas, todos os matizes de azul sobre um fundo de azul? Infindáveis praias de areia negra e cintilantes glaciares a leste, os contornos de sonhos milenares evoluindo lentamente, como sob uma placa de acrílico? Eu conheço tudo isso. Haverá ainda alguma coisa que eu deseje experimentar? Não me ocorre nada. Tive nos meus braços um recém-nascido, vermelho e viscoso, abati uma árvore de Natal num bosque em dezembro, ensinei uma criança a andar de bicicleta, mudei um pneu, sozinho, à noite, numa estrada de montanha, sob uma tempestade de neve, entrancei os cabelos da minha filha, percorri no meu carro um vale poluído, cozi batatas num camping-gás num deserto de areia negra como carvão, engalfinhei-me com a verdade sob sombras, ora vastas ora curtas, e sei que o homem tanto ri como chora, sofre e ama, possui um polegar e escreve poemas, e sei ainda que um homem sabe que é mortal" (p.68) -, um cansaço de viver (quando diz uma frase com duas linhas e regista que seria a mais longa que diria em anos, p.49) são um conjunto de (potenciais) causas que o levarão (à preparação do) suicídio (que não chegará a ocorrer; embora o suicídio esteja provavelmente para lá de causas muito concretamente desenhadas/estabelecidas). E que fazem o narrador enumerar a quantidade de artistas, na literatura e na música, que se suicidaram, numa ficha com direito à idade de cada um e tudo: antes e a seguir aos 30 anos de idade, eis a idade mais complicada, conclusão do narrador, no que a pensamentos (e resistência aos mesmos) diz respeito.
8.O homem sensível que se apaixonara por uma enfermeira, e que só teve três mulheres (a sério) na vida – mãe, mulher e filha -, para que a filha não encontre o seu cadáver (após o seu suicídio programado) decide ir para um país que esteve em guerra brutal, onde as minas são mais de que muitas, para ali morrer "melhor" (sem que haja dele notícia para a filha).
9.Logo no início da obra, no rasgar do perfil de Jonas, ficámos a conhecer o seu sobrenome – Ebenescer – e a tomar nota de que o mesmo significa – prestimosa; portanto, pomba [Jonas] (símbolo da paz) prestimosa. Simultaneamente, pela boca da mãe sabemos que em criança Jonas dirá que "quando for grande consolarei o mundo". Agora, o homem que tinha uma empresa de bancas de cozinha, que tinha ido para este país devastado com um berbequim na mala, este carpinteiro, na verdade tekton (construtor) irá, quase sozinho, num sítio inóspito onde tudo foi destruído e os homens são raros, reconstruir tudo porta a porta, janela a janela, canalização a canalização. Confrontado com um sofrimento ulterior, relativizará o seu (p.109). Apaixonar-se-á por Fifi, uma rapariga da idade da sua filha – o que lhe levantará problemas de consciência (o amor sob a forma de eros redespertará em Jonas).
Durante essa estadia numa terra longínqua, Jonas, um homem que enquanto jovem [mas quem era aquele que já não reconhece?] apontou no diário que deixara de acreditar em Deus (p.114), efetivamente, confrontar-se-á com todas as sequelas da guerra: os abutres que pretendem ficar com os despojos ("a guerra é uma mina de ouro, p.102); os estropiados; os hotéis e restaurantes às moscas; a cidade envolta em sangue; os relatos contraditórios sobre a origem do conflito que às tantas ninguém sabe contar ("já não sabíamos em quem acreditar porque todos diziam o mesmo, que tinham sido inopinadamente atacados por forças inimigas. Que o inimigo matara mulheres e crianças inocentes. E mostravam as fotos das vítimas. Todos diziam que não tinham outra alternativa senão defenderem-se", p.126); o terrível peso de uma geração sem pai; o problema do futuro quando uma nova geração sem memória da guerra se levantar, capaz assim de a repetir (p.188); a tragédia vista ainda de mais de perto: "você tem sorte de não ter matado ninguém" (p.155: em certas circunstâncias, também ele teria que ter matado, parece dizer-lhe Fifi); "aqui todos os homens mataram" (p.185) [aqui ninguém escapou a ter as mãos sujas]; "não perguntamos a um homem se matou, nem a uma mulher se foi violada e por quantos homens" (p.157; como se durante a guerra as regras morais necessitassem de um esforço adicional de interpretação, ou ficassem mesmo entre parêntesis]. O filho de Fifi chama-se Adam (Homem, terra; uma nova humanidade potencial).
10.A voz do narrador é masculina, mas não deixa de nos colocar perante dados esgrimidos pelo olhar feminista – 17500 mulheres são violadas no mundo a cada hora (p.30); 2000 morrem, por dia, durante o parto (p.31). Não se esquece, contudo, durante a estada naquela terra bem afastada da Islândia natal de Jonas – que nunca chega a ser nomeada; afirma-se, durante o enredo, que nela é considerado de mau tom as pessoas olharem-se nos olhos, o que parece remeter, talvez, para o médio oriente, se bem que na Ásia, ou mesmo em África também haja notícia de que por vezes é este o entendimento que prevalece sobre a questão…do olhar – das pessoas que têm inveja que Jonas componha, sobretudo, as casas de mulheres. Também há homens que precisam de ajuda, e ninguém liga (p.163). E o narrador, acerca da guerra, não deixa de refletir sobre o que se chamaria complexo militar-industrial, sendo dele particularmente crítico ("perto do fim, havia mais mercenários que soldados, uma espécie de exércitos privados de empresas de segurança. Os mercenários participavam diretamente nos combates. Não se pode ganhar uma guerra sem o envolvimento dessas empresas privadas. Pagam somas colossais. São as mesmas empresas que fabricam as armas, fornecem mercenários e reconstroem depois da guerra. Atualmente, produzem medicamentos e abrem farmácias", p.189).
Será que os homens podem voltar a ser humanos (p.126)? Para já, "é o silêncio que está a salvar o mundo"(p.193). O carpinteiro, canalizador, construtor, homem com sete cicatrizes (sete, número bíblico da perfeição), saiu para o aeroporto com o taxista que o havia levado ao Hotel Silêncio quando chegara para morrer e encontra-o agora como o novo Mick Jagger ("No instante em que o vi, disse para os meus botões: «Olha, o homem da caixa de ferramentas!») (p.196).