SEVILHA – Deus não se aposenta, não se jubila, não se reforma. E no seu trabalho de sapa, que não conhece tempos mortos nem sequer uma folgazinha para dar uma saltada à beira-mar, distribui a seu bel-prazer as suas benesses, atribuindo dias de alegria e de tristeza como quem distribuísse línguas-de-gato, à moda do Vasco Santana do Pátio das Cantigas. É claro que falo de um Deus menor, talvez seja melhor chamar-lhe deus, com minúsculas, esse deus do futebol que não descansa nem ao sétimo dia e decidiu, mais uma vez, mandar Portugal para casa ao som de uma canção do meu querido Fernando Tordo: “Adeus tristeza, até depois/Chamo-te triste por sentir que entre os dois/Não há mais nada para fazer ou conversar/Chegou a hora de acabar…”
Ah! Como se repetem estas horas de acabar tão cedo para a seleção que traz, ainda, pelo menos até ao dia 11 de julho, no peito o escudo de campeão da Europa. Confesso que não sinto o mínimo de surpresa perante mais uma eliminação precoce da seleção nacional. Tinha dito ao meu amigo Max Verharen, em troca de mensagens de Sevilha até Luvaina – os tempos agora são os de podermos falar uns com os outros a toda a hora, embora nos exijam que não estejamos uns com os outros –, que uma Bélgica capaz de se posicionar em concha na frente da sua grande-área e marcar um golo primeiro, avançava para os 90% de possibilidade de passar aos quartos-de-final. Não houve na minha teoria qualquer arte de adivinhação. É uma questão de prestar atenção e interpretar. O jogo ofensivo de Portugal é cada vez mais previsível. Sem espaços torna-se cada vez mais inócuo. Os adversários sabem que reduzir os movimentos de Bernardo Silva e Diogo Jota (os habituais titulares) às laterais, forçando-os aqueles movimentos de boneco-de-corda, a meterem para dentro, procurando Ronaldo onde na maior parte das vezes ele não está, é tirar o golo a Portugal, e basta ver os golos lusitanos que nasceram de lances de ataque construídos sobre a área contrária – que não fossem de puro contra-golpe – para percebermos isso. E, assim, que dizer? Que fazer? Mudar certamente. Descobrir alternativas, surpreender os opositores que deixaram de ter medo de nós porque, de repente, deram pela triste procissão de um campeão da Europa que vai nu, de peito enfunado como vela de galeão, como dizia o dr. Topsius da Imperial Alemanha, do divino Eça, sem olhar para si próprio com a clareza de raciocínio que o faria detetar todas as suas deficiências e, muito provavelmente, escondê-las ou disfarçá-las para não se tornar tão dolorosamente exposto.
Contas
É chegada a altura de voltar a fazer contas. Não as insuportáveis contas de somar e dividir que se tornaram, de novo, como já acontecera nos anos-80, no hábito da seleção nacional de cada vez que há uma qualificação para jogar, mas fazer contas com aquela que o Torga chamava de Dona da Pensão da Vida. Perceber por que é que, nas duas últimas fases finais de grandes competições – Mundial da Rússia de 2018 e Europeu de 2020 (21) – aquela que é tida por muito como a melhor seleção portuguesa de todos os tempos não foi capaz de ganhar mais do que dois jogos em oito, face a Marrocos (1-0) e à Hungria (3-0). Podemos inventar as mais diversas fábulas e historietas para tentar diminuir o peso desta irrefutável verdade, mas desde que bateu a França em Saint-Denis, naquele mágico dia 10 de julho de 2016, havia que exigir mais, muito mais, de um campeão europeu que, pelo caminho, venceu a Liga das Nações, é bem verdade, mas é incapaz de se impor nos momentos verdadeiramente decisivos.
Francamente: a Bélgica tem uma belíssima equipa – como equipa é claramente superior a nós – mas ficamos ela por ela na questão das individualidades, com a desvantagem deles de os seus homens de topo, Eden Hazard e De Bruyne, terem chegado ao Europeu presos por arames. Havia algum motivo para recear como se estivéssemos perante um daqueles conjuntos habituados a ganhar tudo quando, precisamente, nunca ganharam coisa nenhuma e costumam apresentar complexos nos momentos em que têm de dar o passo definitivo? Não, não havia. Escrevi aqui, na véspera, que este seria um jogo sob o qual não iria cair a mosca do aborrecimento da Teoria do Duende, de Federico Garcia Lorca. Enganei-me por completo, pelo menos na primeira parte, tão envolvida pelo pavor de ambos um pelo outro que demos por nós metidos numa grandessíssima estucha só quebrada pelo golo de Torgen Hazard.
Andámos por ali, fechados nas nossas tamanquinhas (e eles também), à espera que algo de deslumbrante caísse do céu aos trambolhões para abrir às escâncaras os quartos-de-final que deveriam pertencer, por direito de usucapião, ao campeão de todos os que ainda se encontravam em prova e que, só por isso, tinha direito à proteção dos anjos e dos querubins. Pois todos os fenómenos celestiais estiveram-se nas tintas para nós. Deitámos fora, pelo bueiro, 45 minutos de jogo para irmos, em seguida, jogar os segundos 45 minutos com a febre sempre pouco aconselhável da pressa. “Qualquer destino, por difícil e complicado que seja, consta na realidade de um só momento – o momento enorme em que o homem sabe para sempre quem é!”, escreveu José Luis Borges, o intelectual que era contra o futebol. Enquanto não entendermos que seleção na realidade somos e não percebermos com inteligência jogar com as nossa virtudes e defeitos, estaremos sempre à mercê dos que são mais seguros do que nós.