John McAfee. Uma defesa virtual contra uma maldição de sangue

John McAfee. Uma defesa virtual contra uma maldição de sangue


O criador do primeiro programa de antivírus acabou os seus dias a fugir das autoridades, acusado de fraude e evasão fiscal. Preso numa cela em Barcelona e a aguardar extradição para os EUA, foi encontrado morto na quarta-feira. 


Os homens levam para o túmulo muitos pensamentos amargos, outros simplesmente estranhos, confusos. Às vezes também parecem morrer para deitar terra sobre maldições que os perseguiram a vida toda. Após ter vendido, em 1994, a empresa com o seu nome, a qual cresceu depois de ter sido o pioneiro na criação do programa antivírus que o tornou milionário, John McAfee acabaria por perder grande parte da sua fortuna na crise financeira de 2008, e mergulhou depois disso numa desordem que fez dele mais um personagem complexo dos tempos modernos do que um guru da tecnologia ou um magnata de sucesso. Nesta caótica segunda vida, McAfee andou algumas vezes fugido da justiça em várias partes do globo, e passou não poucas noites atrás das grades, e nos piores momentos parecia ter como companhia a persistente paranoia que explicava os seus comportamentos cada vez mais erráticos. Tudo isso culminou esta quarta-feira na cela que ocupava no centro prisional em Sant Esteve Sesrovires, em Barcelona. Este norte-americano nascido há 75 anos em Inglaterra foi encontrado morto pelos guardas. Ainda terá havido uma tentativa de reanimá-lo, segundo fontes prisionais, mas sem sucesso. As mesmas fontes, indicaram ao El País que não foram encontrados sinais de crime na cela, e em comunicado as autoridades afirmaram que as causas da morte estão a ser investigadas mas que “tudo indica que possa ser uma morte por suicídio”.

McAfee aguardava a extradição para os EUA, depois de ter sido detido pelas autoridades espanholas em 2020, em Barcelona, quando estava prestes a apanhar um voo para Istambul. A polícia actuava ao abrigo de um mandado de captura emitido pelas autoridades norte-americanas com base em suspeitas de evasão fiscal.

De acordo com o Departamento de Justiça norte-americano, McAfee terá ganho cerca de 23 milhões de dólares com um esquema enganoso de promoção de criptomoedas junto dos seguidores da sua conta de Twitter, e recebeu também somas avultadas com trabalhos de consultoria, palestras e pela venda dos direitos da história da sua vida para um documentário. De acordo com a acusação, o milionário não apresentou nenhuma declaração de impostos entre 2014 e 2018. Se fosse condenado por todos os crimes de que era acusado, McAfee poderia enfrentar uma pena de prisão de 100 anos, segundo contas feitas pela CNN.

A outra versão da história é bem mais rocambolesca. McAfee dizia que estava a ser alvo de perseguição política por ter denunciado a corrupção da máquina fiscal norte-americana (o Internal Revenue Service, IRS) e por se opor ao sistema de moeda fiduciária, no qual os bancos centrais como a Reserva Federal norte-americana controlam a emissão de moeda. O magnata afirmava ainda que tinha pago milhões de dólares em impostos, mas o tribunal espanhol disse que não lhe foram dadas quaisquer provas que lhe permitissem recusar o pedido de extradição.

Antes deste incidente, McAfee havia já estado no centro de um furacão mediático envolvendo a morte de um vizinho seu no Belize. O milionário pôs-se em fuga depois de ser considerado uma “pessoa de interesse” na investigação que estava a ser conduzida pelas autoridades daquele país na costa leste da América Central. A sua casa tinha já sido alvo de buscas em mais do que uma ocasião, com as autoridades a justificá-las com suspeitas de que ele estaria a tentar formar uma milícia financiada através da venda de narcóticos. Por seu lado, McAfee dizia-se perseguido pelo governo do Belize, por se ter recusado a pagar um suborno de dois milhões de dólares. Dizia temer ser morto pela polícia se o apanhassem e chegou a ser preso na Guatemala, acusado de entrar ilegalmente no país onde esperava receber asilo político. Acabaria por regressar aos EUA, em 2015, deixando o Belize sem colaborar com as autoridades. Ali, depois de uma detenção no Tennessee por conduzir alcoolizado e por posse de arma ilegal, McAfee lançou-se numa corrida presidencial como candidato libertário, e no vídeo da sua campanha declarava, “Avanço em nome dos que são chamados de malucos”. 

McAfee cresceu em Roanoke, no estado da Virgínia, filho de um agrimensor e de uma caixa de banco, sendo testemunha desse círculo infernal que se nasce de um casamento infeliz. Nas tantas entrevistas que deu, nunca se eximiu de contar os abusos físicos e psicológicos que ele e a mãe sofreram às mãos do pai, um alcoólico inveterado que acabaria por se suicidar com um tiro quando John tinha 15 anos.

“Todos os dias acordo com ele”, disse McAfee numa entrevista à revista Wired, em 2012. “Todas as relações que tenho, ele está lá, ao meu lado; de cada vez que desconfio ou suspeito, é ele o negociador desse desconfiança.”

A McAfee Associates, a empresa de software que ele criou, conseguiu sobreviver aos desvarios do seu fundador e manter-se uma marca prestigiada no ramo da segurança tecnológica. As suas origens remontam a 1987, quando John, na pequena casa onde vivia em Santa Clara, na Califórnia, depois de ter lido nas notícias que estava a circular um vírus informático paquistanês chamado Brain, o qual se julga ser o primeiro ataque informático dirigido aos computadores pessoais, decidiu reagir e dar às pessoas um meio de se defenderem. Mais tarde, McAfee diria que o vírus lhe lembrou a forma como subitamente o seu mundo era abalado sempre que o seu pai o atacava. 

O seu plano passava por desenvolver um programa de antivírus e distribuí-lo gratuitamente nos fóruns na internet onde as pessoas procuravam conselhos sobre como reagir ao ataque. A esperança de McAfee era que as pessoas instalassem o seu programa em casa e depois o fizessem nos computadores que tinham no trabalho, o que obrigaria as empresas a pagarem-lhe taxas de licenciamento. E foi isso que aconteceu. Três anos depois, em 1990, McAfee declarou lucros de 5 milhões. E dois anos mais tarde, a sua empresa passou a estar cotada na bolsa, tendo John visto as suas acções avaliadas em 80 milhões de dólares. Mas em 1994 foi obrigado a afastar-se da direcção da empresa, e esta continuou a sua escalada até ter sido comprada em 2010, pela Intel, por 7,7 mil milhões de dólares. Mais tarde, a maioria das acções acabariam compradas por uma firma de investimento. Por essa altura, já John estava na mó de baixo, e tinha desbaratado grande parte da sua fortuna numa série de investimentos que, por altura da crise financeira, deram para o torto. De uma fortuna de 100 milhões, só lhe restavam já 4. Assim, viu-se forçado a vender muitos dos seus bens e a mudar-se para a América Central, procurando viver uma existência mais frugal. Mas parece que mesmo ali aquela sombra que o perseguia desde a infância e que associava aos abusos que sofreu acabou por encontrá-lo. Mesmo que tenha encontrado o sucesso e provado o sonho americano, acabaria por consolar o monstro que trazia em si, morrendo numa cela, pela sua própria mão, tal como o seu pai.