Sevilha, 33º à sombra. Festa na cidade das laranjas pelas laranjas que caíam lá em Budapeste…

Sevilha, 33º à sombra. Festa na cidade das laranjas pelas laranjas que caíam lá em Budapeste…


Os golos da República Checa foram motivo para a alegria ruidosa dos belgas que invadiam a cidade.


Confesso que me enganei redondo quando pensava que ia saltar da frigideira de Budapeste para o fogo de Sevilha. A tramontana salvou-nos a todos das caldeiras de Pêro Botelho e, neste preciso momento em que escrevo, acabado de chegar ao estádio de La Cartuja, situado na ilha do mesmo nome, cuja designação vem dos antigos cartusianos, ou monges da Ordem dos Cartuxos, uns fulanos tão restritos, tão austeros em tudo que não dá para perceber como conseguiram sobreviver nesta cidade de mil pecados. Estamos debaixo de uns razoáveis 33º à sombra, nada de muito ofensivo para a estrutura do físico, seja ele o de quem for.

As bodegas e as bodeguitas do bairro de Triana foram enchendo ao princípio da tarde, que aqui ninguém gosta de se deitar cedo e ainda na véspera as margens do Gualdalquivir fervilhavam de vida pela uma e meia da madrugada, grupos de jovens sentados nos passeios, na relva dos jardins, no parapeito da ponte e na calle Betis que exibe, sempre orgulhosa, as suas fachadas coloridas. Sevilha comemorava a independência das máscaras, que deixaram de ser obrigatórias para quem anda na rua, as gentes pareciam felizes por poderem, finalmente, verem-se cara a cara, malta de camisolas de Portugal e da Bélgica avermelhava as ruas, a cerveja corria a rodos como se quisesse levar a melhor sobre o caudal do rio.

“Minha menina se foi ao mar/A contar ondas e pedrinhas/Porém se encontrou, de pronto/Com o rio de Sevilha/Entre adelfas e sinos/cinco barcos se mexiam/Com os remos na água/e as velas na brisa”, dizia um dos poemas de Lorca. A sua menina foi sempre Sevilha, embora tenha nascido aqui ao lado, em Fuente de Vaqueros, e assassinado aos 38 anos, pelo ponto de vista de alguns no decorrer de um programa de homicídios em massa de membros da Frente Popular, na opinião de outros por via da sua sexualidade, que chamam, assim baixinho, meio em segredo, de homoafectividade, vá lá saber-se o que isso é.

A verdade é que se não há Sevilha sem calor e sem as tardes de La Maestranza, também não há Sevilla sem Lorca e sem as suas palavras mágicas que nasciam da vontade do Duende: “La mar no tiene naranjas/Ni Sevilla tiene amor/Morena, qué luz de fuego/Préstame tu quitasol”. O mar pode não ter laranjas, mas Sevilha tem-nas, e muitas, talvez vindo daqui a ideia de plantar laranjeiras em várias das ruas de Lisboa. A morena é Adelina, posta em sossego, no paseo, ignorando os grupos de raparigas que falam num tom de fazer expolodir tímpanos a hipopótamos.

Há 92 anos que a Selecção Nacional não jogava em Sevilha. E só por aqui passou duas vezes até agora. A primeira no dia 16 de Dezembro de 1923, perdendo com a Espanha por 0-3 (era o seu terceiro jogo apenas), a segunda em 17 de Março de 1929, tombando sob um resultado ainda mais pesado (0-5). Zabala, jogador do Real Union, que tivera a sua primeira internacionalização frente à França, em Janeiro desse ano, foi o grande carrasco de Portugal com um hat-trick demolidor. Nunca mais voltaria a envergar a camisola vermelha d’A Fúria.

O jogo português foi fraco e o dos espanhóis brilhante. Em Lisboa, as pessoas juntavam-se em redor dos placardes montados pelos jornais diários que tinham enviados-especiais em Sevilha para seguirem a passo e passo as peripécias da partida enviadas desde Espanha por telegrama. No Rossio, sobretudo. Mas o futebol atingira um estatuto que já dava direito a que os mesmos telegramas fossem lidos nos ecrãs do Cinema Condes, do Chiado Terrasse, do Salão Foz ou do Cine Casino, na Amadora. As exibições do grande Zamora, do gigante Samitier, do terrível Paulino Alcantara, interior-esquerdo do Barcelona nascido em Illo-Illo, nas Filipinas, tido como o “avançado mais perigoso de toda a Espanha”, e de Del Campo, avançado-centro do Real Madrid, foram comentadas pelos cafés de Lisboa e do Porto como se o jogo tivesse sido visto in loco. O árbitro belga, Rutz, é acusado de parcialidade – tinha de haver um belga metido ao barulho –, mas nos dias que se seguiram à derrota a viagem atribulada entre Lisboa e Sevilha foi escalpelizada e percebeu-se a dimensão da desorganização existente na Selecção.

 

Novos dias

Noventa e dois, assim por extenso, é muito tempo. Mas a maldição de Sevilha não voltou a cair sobre os portugueses da forma bruta como caiu. Acreditem ou não, já nesse tempo a divisão entre norte e sul desfazia dolorosamente a equipa de Portugal. Na manhã do jogo ainda ninguém sabia ao certo qual o onze que entraria em campo. O desentendimento entre os técnicos Ribeiro dos Reis e Vergílio Paula, por um lado, e Pedro Del Negro, o representante da União Portuguesa de Futebol (UPF), por outro, era manifesto. Na base da polémica, o lugar de avançado-centro e mais uma batalha norte/sul. Os técnicos apostavam no jovem setubalense João dos Santos, o dirigente no portista José Balbino. Balbino teria a sua oportunidade. Jogou em Sevilha o seu único encontro com a camisola das quinas. As divergências tornaram-se insanáveis. E as feridas profundas.

Continuaram a sangrar durante décadas e décadas, impedido que Portugal tivesse tirado proveito de jogadores excelentes de diversas gerações. Curiosamente, em 1929, Portugal jogou num estádio construído de propósito para a Grande Exposição de Sevilha desse ano enquanto ontem, disputou a sua partida frente à Bélgica num estádio construído com o objectivo de receber os Campeonatos de Mundo de Atletismo de 1999. Recebeu-os como pôde e ficou para aqui, semi-abandonado, à espera que o ponham a funcionar com alguma final da Taça do Rei ou uma Supertaça de Espanha (também recebeu a final da Liga Europa entre o FC Porto e o Celtic – 3-2), sem condições para albergar um encontro do Campeonato da Europa mesmo que reduzido por motivos sanitários a 12 mil espectadores, ele que tem capacidade para cerca de 60 mil pessoas. Seja como for, não há qualquer motivo para concentrarem as entradas numa só, obrigando-nos a caminhar quilómetros à volta deste feio mostrengo de cimento e betão com escadas interiores precárias nas suas voltinhas de canos pendurados uns nos outros como se as obras de 1999 continuassem por acabar.

Galunfantes com as exibições das sua equipa nos anos mais recentes, os belgas com as suas camisolas raiadas de amarelo e gritam, pelas calles de Los Remedios e pela Plaza Virgen de las Dolores a alegria de saberem que os seus vizinhos laranjas, daquela laranja que não há no mar mas há Sevilha, a Holanda, perde com a República Checa. Berram com toda a força dos seus vigorosos pulmões: RU-ME-LU-LU-KA-KU, o seu gigante negro de passada vigorosa e pontapés fulminantes que nos traz à memória aquele que foi provavelmente o primeiro jogador belga a actuar em Portugal, León Mokuna, do Sporting, chegado quase directamente das florestas do Congo que tinha a particularidade de não ser uma colónia da Bélgica mas sim um território pertencente a Leopoldo, o Rei dos Belgas. Coração das Trevas, chamou-lhe Joseph Conrad.

É duro o sol das quatro da tarde. Bate-nos no corpo como se fosse de pedra. O céu azul, de um azul baço. Não certamente o céu de Lorca: “O céu monta elegante/ao rio, de margem a margem/No ar cor-de-rosa/cinco anéis se mexiam”. Por mais que queira contar anéis, não tenho tempo…