Plágio. A história de Lara Luís, a artista portuense vítima da gigante chinesa Shein

Plágio. A história de Lara Luís, a artista portuense vítima da gigante chinesa Shein


“Eu não fazia a menor ideia de que isto se estava a passar”, confessa a artista visual Lara Luís. Aos 34 anos, viu a empresa Shein apropriar-se de uma das suas ilustrações. No entanto, não é caso único. Já a marca norte-americana Tory Burch havia plagiado a camisola  poveira e a coleção “Couve” da Bordallo…


“Na semana passada, curiosamente, instalei a aplicação da Shein no telemóvel e já tinha itens no carrinho. Sabia que é de origem chinesa e algo suspeita, mas nunca imaginei que fizessem plágio de designs de ilustradores. Muito menos, de um meu”, começa por desabafar Lara Luís, artista visual há mais de 10 anos.

“Felizmente, não cheguei a fazer a encomenda e fui a tempo de boicotar a marca. Imagino que milhares de pessoas caiam na armadilha, não só pelos tamanhos grandes que são disponibilizados como pelos preços reduzidos”, desabafa a ilustradora de 34 anos que foi vítima de plágio. A empresa chinesa – fundada em 2008 – tem andado nas bocas do mundo devido a acusações de violação de marca registada “deliberada e calculada”, como mencionou o Financial Times no artigo ‘Chinese ecommerce site Shein hit with trademark disputes’, por companhias como a AirWair International, criadora das famosas botas Dr. Martens.

Em causa está uma ilustração que a licenciada em Design Gráfico e mestre em Ilustração e Banda Desenhada criou em 2013: um gato preto acompanhado da frase “You Work I Watch And Judge” que, em português, pode ser traduzida para “Tu trabalhas, eu vejo e julgo”.

“Eu não fazia a menor ideia de que isto se estava a passar. Foi uma seguidora que me alertou para o facto de que o meu trabalho estava a ser plagiado pela Shein. Já fui copiada muitas vezes, mas não a este nível”, desabafa a portuense. “Pensei logo: ‘Isto vai ser uma dor de cabeça’. E depois entendi o quão inalcançável a marca é”, constata a artista, referindo-se à ausência de qualquer resposta aos e-mails enviados pela empresa que, em maio deste ano, segundo o Financial Times, atingiu o lugar cimeiro na tabela de downloads da Play Store e também da Apple Store.

“Já recebi relatos de artistas portugueses – como joalheiros ou designers de moda – que passaram pelo mesmo”, avança. “Há uma rapariga influencer, proprietária de uma marca de biquínis, que teve um caso destes e andou muito na internet. Ela não conseguiu resolvê-lo porque os designs estavam em várias lojas do AliExpress e acho que ela até comprou uma das réplicas que era de má qualidade em relação ao dela. Houve imensa malta estrangeira a queixar-se também”.

Ao contrário das galerias de arte e dos artistas visuais que, como a agência Lusa noticiava em novembro do ano passado, tentavam “fazer face à quebra de vendas, ao cancelamento e ao adiamento de feiras internacionais provocadas por uma pandemia ‘altamente prejudicial’”, a pandemia não afetou o negócio da Shein.

De acordo com informação veiculada pelo Financial Times, há um mês, esta era a principal aplicação de compras para iOS em 54 países e encontrava-se em posições de destaque na mesma categoria em dispositivos Android de 13 países. Já em fevereiro do ano corrente, a Forbes noticiava que os EUA_constituem o maior mercado da Shein, embora a plataforma faça envios para quase todos os países e alcance, anualmente, uma receita que ronda o equivalente a 8 mil milhões de euros.

“Percebi que a única coisa que obtiveram da Shein foi a eliminação do produto no site. Depois, descobri que as minhas ilustrações estão a ser vendidas em 20 sites diferentes: canecas, vestidos, tshirts, etc.”, explica Lara, que deparou com as suas criações em sites como o eBay, o Etsy ou o AliExpress, além de ter sido plagiada pela empresa que tem seis centros de logística em Foshan, Nansha, Bélgica, Índia e nas costas leste e oeste dos EUA, contando com sete centros de atendimento ao cliente e empregando mais de 10 mil pessoas.

“No Instagram tenho uma compilação dos casos de plágio que encontrei até agora. Ter descoberto a questão foi só o início porque, posteriormente, levantou-se o tapete e vi aquilo que estava por debaixo do mesmo”, sublinha, adicionando que foi “copiada por todo o lado, essencialmente em mercados chineses e vietnamitas”.

A defesa dos direitos de autor “Comecei a publicar e, no dia seguinte, a página do produto já não existia. Aquilo que sucede é que não respondem, não dão uma justificação, não posso sequer argumentar aquilo que seja”, diz, revelando que pediu ajuda aos seguidores que acompanham o seu trabalho, na rede social Instagram, por se ter lembrado do apelo realizado por outra vítima de plágio.

“Ele não conseguiu nenhuma maneira, mas foi atrás de todas as influencers patrocinadas pela Shein e pediu-lhes que falassem com a mesma. E foi esta a única maneira que ele teve, por isso, foi exatamente aquilo que eu fiz”, conta, adiantando que criou stories em que expunha a situação e conseguiu que quatro influencers portuguesas contactassem a retalhista.

“Nenhuma resposta lhes foi dada. É muito estranho porque são pessoas com as quais lidam por causa das parcerias. Eles estão atentos porque eliminaram o produto. Desde sexta-feira, já recebi centenas de mensagens”, avança a empreendedora cuja paixão pela arte não é recente. “O meu irmão mais velho estudava Design e, desde muito pequena, tive acesso aos materiais de desenho em casa. Tentava seguir as pisadas dele e as obras dos grandes mestres. Depois, comecei a entrar pelo chamado estilo comic que, no meu caso, é autobiográfico”, revela.

“Penso que existem dois caminhos para terem chegado até mim: houve alguém que se apropriou do design e vendeu-o à marca ou um designer da Shein fingiu que tinha feito a ilustração. A outra forma é por algoritmo, ou seja, veem aquilo que vende online, até porque esta ilustração sempre foi um bestseller, e copiam-no”. Recorda que, certa vez, uma influencer austríaca foi ao Porto, viu o seu trabalho numa galeria, partilhou-o “e as vendas explodiram”.

Seguindo a sugestão de variados seguidores, Lara criou a ilustração “You work and they copy” (“Tu trabalhas e eles copiam”), considerando que esta “foi uma forma de dar uma bofetada de luva branca à marca”, ainda que duvide que “estejam preocupados com isto”. Contudo, frisa que “com esta história, já montes de gente desinstalou a aplicação e disse que nunca mais compraria nada”.

Quando veiculou o sucedido, pela primeira vez, na sexta-feira, através da conta @lara_luis, tinha 22 mil seguidores e, à data de fecho desta edição, contabilizava quase 30 mil. “Até a Sara Sampaio partilhou, fez três stories e acabou por me comprar uma ilustração”, menciona com orgulho, agradecendo o apoio da modelo.

“Não dá para controlar o mercado chinês: os sites são só a ponta do iceberg porque há mercado clandestino. Há ilustradores que vão à Tailândia, por exemplo, e deparam-se com os trabalhos deles nas ruas. O mercado asiático não tem escrúpulos. Roubam à descarada porque não têm leis que protejam os direitos de autor”, lamenta, explicitando que “mesmo que quisesse fazer alguma coisa em termos legais, não conseguiria registar todas as ilustrações globalmente” por falta de condições financeiras.

“Uma pessoa que vive da própria arte tem de produzir muito para ganhar a vida. Não vou fazer um risco e registá-lo. O retorno económico que tenho não dá para suportar estes gastos”, garante. “Muitas pessoas não sabem aquilo que dizem. Recebo centenas de mensagens em que dizem que me copiaram porque a marca não está registada. Isso não é verdade porque até designs com marca de água copiam”.

“Relativamente à contratação de um advogado, sei que não há um fio condutor, pois é uma imagem que anda por todo o lado”, prossegue. “Teria de ser um advogado internacional e os meus agentes tiveram um problema com outra ilustradora, nos EUA, e só lá gastaram o equivalente a 50 mil euros. Eu não tenho esse dinheiro e nada me garante que as peças não continuam a aparecer”, lastima a artista agenciada pela Circus Network, NEURA e H2N.

“Quando digo que é impossível defender-me, as pessoas dizem que tenho direitos. Mas, na China, não tenho. Sendo uma artista independente, já é difícil, quanto mais ser uma artista roubada. Não quero fazer ilustrações comerciais, mas sim ser original, queimo neurónios para marcar a diferença… Enfim, dediquei toda a minha vida a isto e é muito frustrante”, partilha Lara, cujos trabalhos podem ser adquiridos no site laraluis.com.

Plágio: uma prática demasiado comum?

“Fiquei indignada, claro que sim, mas sei que não há nada a fazer e não há ninguém que me ajude. Estou com os pés bastante assentes na terra, tenho os meus agentes que percebem disto e eu sei que não há muita coisa a fazer. Dos casos que eu vi, o facto das marcas removerem os produtos já é uma vitória. A Shein já o fez, mas há dezenas de marcas que ainda não o fizeram. Se, pelo menos, conseguisse chegar a eles de alguma forma…”, equaciona a jovem, recorrendo ao exemplo de uma rapariga de 18 anos que se defendeu, afirmando que comprou a imagem para fazer canecas. “Mas comprou a quem?”, questiona.

“Não vou ver dinheiro nenhum, não vou ter resposta da maior parte destas entidades, mas, no mínimo, tirem os meus desenhos de circulação”, solicita. “As imagens estão em cache na internet, no meu site, no meu Instagram… E se, enquanto artista, não tiver presença online, não sobrevivo. E mesmo que as expusesse somente em galerias, poderia haver plágio na mesma. Tiram uma fotografia e copiam”, remata.

Lara Luís trabalhou, durante um único dia, para uma empresa de design que tratava das ilustrações das roupas de uma multinacional têxtil. “O método de trabalho deles era assustador porque as marcas pediam aos designers que copiassem um certo artigo que tinham visto num site japonês, mas copiar sem que se entendesse. E quando faziam a ilustração, modificando apenas um ou outro detalhe, era sempre apresentada uma pesquisa falsa para estarem protegidos quando alguém os acusasse de plágio. Não poderia compactar com aquilo”, assegura a artista que, apesar de estar a sofrer, pensa que estes acontecimentos “serviram, de certa forma, para elucidar muitas pessoas”. “No meio desta tragédia toda, tomaram conhecimento daquilo que não deve ser feito no mundo da arte” e, por este motivo, surpreenderam Lara com a compra dos seus produtos. “Muitos deles esgotaram e outros já estão disponíveis para pre-order, há um grande sentimento de solidariedade e dizem-me ‘Vamos deixar de comprar a estas marcas e comprar a ti’”.

“Eu não quero que isto seja entendido como mero lucro, porque não queria lucrar com isto, mas é bom ser abraçada pelos portugueses e até por malta lá de fora que está a ajudar e não consegue compreender como é que isto está a acontecer”, declara. “Preferia que nunca tivesse acontecido, mas aconteceu e, pelo menos, sei que tenho apoio e isso dá-me alento. Eu não partilhei esta causa pelo dinheiro: só queria ajuda”, confidencia Lara, natural da Póvoa de Varzim, que já contactou a respetiva câmara municipal e, em jeito de brincadeira, disse:_“Aqui está mais uma camisola poveira!”.

A “apropriação abusiva” da estilista Tory Burch

O plágio da arte nacional não é um fenómeno exclusivo das redes sociais e, muito menos, exclusivo de Lara. No final de março, o Ministério da Cultura anunciou que pretende combater judicialmente a “apropriação abusiva” da camisola poveira, por parte da estilista norte-americana Tory Burch, que, antes de pedir desculpa publicamente, afirmou que o design era original e de inspiração mexicana.

“A ministra da Cultura, Graça Fonseca, tomou a iniciativa de solicitar a identificação das vias judiciais e extrajudiciais ao dispor do Estado português para defender a camisola poveira enquanto património cultural português”, lia-se num comunicado da tutela.

O Governo “fará o que estiver ao seu alcance para que quem já reconheceu publicamente o seu erro não se demita das suas responsabilidades e corrija a injustiça cometida, compensando a comunidade poveira”.

Para o ministério da Cultura há que prosseguir o “compromisso de continuar a levar a cabo todos os esforços pela valorização, proteção, preservação e salvaguarda do património imaterial português”, protegendo, neste caso, aquela que é definida pela autarquia suprarreferida, no seu site oficial, como uma peça de vestuário “feita em lã branca de fio grosso, da zona da Serra da Estrela, denominada ‘lã poveira’ e decorada a ponto de cruz, com motivos de inspiração diversa (escudo nacional, com coroa real; patinhos; siglas; remos cruzados; vertedouros; etc), sendo somente utilizada lã de cor preta e vermelha nos bordados”.

Se, em primeira instância, era produzida em Azurara e Vila do Conde e bordada na Póvoa, sendo originalmente, na primeira metade do século XIX, bordada pelos pescadores, posteriormente começou a ser bordada pelas mães, esposas e noivas dos pescadores, e depois feita e bordada na Póvoa.

Depois de ser fortemente criticada nas redes sociais – por comercializar a camisola que estava assinada como design próprio e custava 695 euros –, a estilista Tory Burch recorreu ao Twitter para pedir, em português, “sinceras desculpas aos portugueses”, considerando que foi “um erro” não ter assumido a sua inspiração e que a marca está a “corrigir o erro” ao “notar e honrar a camisola que foi inspirada nas tradições portuguesas”. Na mesma mensagem, deixou claro que a sua marca está a “trabalhar em conjunto com a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim” para encontrar uma solução para “apoiar os artesãos locais”.

Porém, o plágio não ficou por aqui, existindo outra vítima: a marca portuguesa Bordallo Pinheiro que, há mais de cem anos, vende um serviço de louça intitulado “Couve”. Nos EUA, Burch vendia um serviço semelhante denominado de “Lettuce”, alface em português. Porém, enquanto em território nacional cada peça é comercializado por preços entre os 20 e os 30 euros, nos EUA, os valores andam na casa dos 150-300 euros.

Não cruzando os braços, a marca que “desempenha um papel essencial na revitalização, nacional e internacional, da cerâmica portuguesa e do património artístico do fundador da Fábrica de Faianças Artísticas, Raphael Bordallo Pinheiro”, como é possível ler no seu site oficial, comentou as semelhanças com os produtos.

“Cá para nós há coisas que valem bem mais que o preço. O apreço pela criatividade, a tradição, a originalidade, a história. Traços que definem quem nós somos enquanto marca e enquanto comunidade”, é possível ler no Instagram da marca. “Por isso a nossa recompensa maior é a vossa preferência, lealdade e reconhecimento do que é autêntico. E o mesmo vale para tudo o que é nosso. Podem tirar a tradição do poveiro, mas nunca tirarão o poveiro da tradição!”, acrescentou, partilhando uma imagem quase antropomórfica em que a camisola poveira é unida ao célebre design da couve, lendo-se na etiqueta desta peça “Camisola Couveira”.