Acerca do D de Democracia


Se nos recordarmos, os objetivos declarados do 25 de Abril eram os célebres “3D’s”: descolonizar, democratizar e desenvolver. Sobra-me o “D” de Democracia. Do que não pode haver dúvida é que, se alguma coisa distingue o anterior regime deste, é que este é democrático.


Para quem não tenha andado completamente desatento nos últimos tempos, tem corrido para aí um interessante debate sobre os méritos e deméritos relativos do antigo regime.

Como habitualmente, a extrema esquerda doméstica reage com grande violência quando alguém, sobretudo alguém qualificado, se pronuncia sobre os méritos económicos relativos do Estado Novo, como o fez o Professor Nuno Palma, a propósito da convergência económica de Portugal com a média da União Europeia, que sustentou ter sido maior no antigo regime do que é agora, apesar do maná de fundos europeus que temos recebido.

A reação do esquerdismo doméstico foi a que se pode esperar de um touro perante um pano vermelho: arremeteu! Que nada disso, que defender os méritos económicos do regime execrável é defender esse regime e o fascismo, que pouco importa se o regime era mais ou menos bem-sucedido do ponto de vista do crescimento económico, porque era fascista e portanto execrável e mais umas tantas variações acerca do mesmo tema.

Confesso até que este tipo de argumentação me lembrou um livro de um escritor espanhol chamado Javier Cercas; trata-se de Soldados de Salamina. A história é esta: um escritor ouve contar muitos anos depois a forma como um hierarca do franquismo foi salvo à última hora de ser fuzilado pelos comunistas em fuga para a fronteira francesa, depois da sua derrota perante os nacionalistas. Os soldados comunistas levavam com eles, nessa fuga, milhares de prisioneiros franquistas capturados ao longo da guerra, na sua maior parte, civis. Após abandonarem Barcelona em direcção à fronteira francesa, o comando ordenou o abate de todos os prisioneiros. Foram levados em grupos para a floresta e abatidos. Alguns conseguiram fugir e um deles, na fuga, deu de repente de caras com um soldado comunista, que baixou a arma e o deixou fugir.

O tema da história não é a ordem execrável dos comandantes de um exército derrotado para abater todos os prisioneiros; não, é a busca pela identidade do soldado desconhecido que salvou a vida de um inimigo, um herói, portanto, apesar da dúbia moralidade de ter poupado a vida de um desprezível fascista. Para Javier Cercas, a vida dos prisioneiros nacionalistas não tem qualquer valor; nesta história, o único ato de valor é a decisão de poupar a vida a um, tomada por um soldado comunista.

O ódio ao inimigo é desta ordem, da mesma ordem de grandeza dos louçãs e quejandos que se recusam sequer a encarar a possibilidade de examinar a verosimilhança de que o antigo regime, apesar de autoritário, possa ter sido bem-sucedido do ponto de vista económico.

O ponto do Professor Nuno Palma nem era esse, era antes o de tentar entender o que é que se pode ter quebrado em Portugal, ao ponto de nos estarmos a transformar na lanterna vermelha da Europa e de, em vez de estarmos a convergir, estarmos a divergir.

Se nos recordarmos, os objetivos declarados do 25 de Abril eram os célebres “3D’s”: descolonizar, democratizar e desenvolver.

A 47 anos de distância, podemos talvez começar a fazer um balanço sobre o sucesso desses objetivos.

Não há dúvidas de que a descolonização ocorreu. Ao contrário do que pretende a Resolução de Conselho de Ministros que institui com milhentas mordomias, pessoal numeroso e por seis anos a comissão de celebração dos 50 anos do 25 de Abril, a descolonização foi um acontecimento extremamente traumático que destruiu a vida de muitas centenas de milhares de portugueses que “retornaram” a Portugal (uma boa parte tinha nascido em África…) e de milhões de africanos que se viram lançados em guerras civis cruéis e destruidoras.

Quanto ao desenvolvimento, não foi exatamente o sucesso que os promotores da revolução diziam pretender: três bancarrotas depois e após termos perdido, na prática, o controlo das empresas estruturais das quais a nossa vida depende, quase transformados numa colónia económica da Europa e ainda assim a caminho, apesar de todas as ajudas, de ser o país com o menor PIB per capita da União, talvez seja possível afirmar sem escândalo que o caminho seguido não se tem revelado o melhor e conviria pensar numa vida que não passasse pelo crescimento imparável do estado em detrimento da sociedade civil.

Sobra-me o “D” de Democracia. Do que não pode haver dúvida é que, se alguma coisa distingue o anterior regime deste, é que este é democrático. Penso que a democracia, com o atinente respeito da lei, dos direitos fundamentais políticos, sociais e económicos, das garantias e salvaguardas dos direitos dos cidadãos, é um daqueles muitos poucos temas sobre os quais existe um quase completo consenso nacional, apenas desfeito pela velha guarda do PCP e algumas peças de museu da revolução que ainda integram o Bloco de Esquerda.

Nada na história do mundo garantia que o resultado natural da nossa história no século XX fosse o de chegar à democracia e nada nos pode garantir que esse resultado possa ser salvaguardado no século XXI.

Bem pelo contrário, o que verificamos é que as crises sucessivas que temos vivido se revelam sempre um teste duríssimo à permanência das nossas frágeis instituições democráticas, que de crise em crise se acentuam fatores de indiferença dos cidadãos ao valor intrínseco da democracia, que aceitamos sem grande acrimónia limitações aos nossos direitos em homenagem (é esse o princípio dos regimes autoritários) ao bem coletivo.

Mas, mesmo sem crises, temos aceite sem controvérsia que o nosso regime democrático seja capturado pelos partidos a cujos jogos a democracia se resume cada vez mais; que os primeiros-ministros que saem de eleições se tornem em personagens quase sacralizados, intocáveis pela imprensa, imbuídos da infalibilidade que os Papas já não têm há século e meio; que os cidadãos se verguem ao poder instituído e que os representantes apenas representem os diretórios partidários; que a rebeldia e a defesa de ideias diferentes sejam ostracizadas, marginalizadas e até, ameaçadas de criminalização.

O resultado desta triste evolução da nossa vida política é a completa ausência de alternativas: como dizem os sábios e os cínicos, em Portugal o poder não se ganha, perde-se e à oposição basta não dizer nada que pareça fora do lugar, para um dia, cedo ou tarde, pelo cansaço e erros acumulados, o partido no poder o perder e este cair no regaço do líder da oposição.

Cada vez que os socialistas chegam ao poder estatizam um pouco mais o país, quebram um pouco mais as molas do desenvolvimento e da independência da sociedade civil; quando chega a oposição mais de direita (muito pouco, nos últimos 20 anos e sempre em tempo de crise), não só não tem um programa diferente, como quando finalmente descobre um, verifica que é inconstitucional, porque é constitucional aumentar o número de funcionários públicos e aumentar-lhes os salários e regalias, mas é inconstitucional despedi-los ou reduzir-lhes as regalias mesmo que o Estado não as possa pagar.

Quem nos defende e representa nos fóruns do poder? Aparentemente ninguém, porque ninguém consegue furar a opacidade e a mediocridade partidária e afirmar na Assembleia uma voz diferente.

Citando Frei Luís de Sousa, bem podíamos perguntar aos nossos deputados: “Romeiro, quem és tu? Ninguém!”.

Advogado

Subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade