Hoje somos suspeitos para nós próprios. E já não falamos nem engolimos os grandes ideais do passado. Profanamos alegremente os símbolos, rejeitamos tudo o que fale de um sentido de pertença que nos ligue uns aos outros em vez de servir apenas para escorraçar o outro, esse que nos salvaria trazendo a sua diferença. São-nos penosas as demonstrações mais sensíveis, em nome de noções e ideias que nos alargam a existência, “como a rajada que arrasta com a essência/ aquela murcha flor”. À míngua do poema vamos ficando como pobres loucos sem nem esse triunfo de se partir de estações na orla do quotidiano em comboios que nos levariam a sós com os astros. Assim, todos se conformaram com a ladainha apocalíptica, todos reclamam que “as pessoas já não sabem viver”. E outras coisas como: “O caos é tão absoluto, a angústia tão generalizada, que nenhum modelo de comportamento herdado dos séculos anteriores parece aplicável aos tempos actuais” (Michel Houellebecq). Do outro lado dessa bandeira que torna mais gelado o ar que tenta sacudi-la, temos aqueles que realmente falam desde uma vasta perda, aqueles que se identificam com as palavras do poeta catalão Pere Quart: “Envenenado por mitos,/ com os alforges a cagulo de blasfémias,/ ossudo e ébrio, e remeloso,/ príncipe espoliado até do meu sonho,/ Job caído em desgraça;/ com a língua cortada, capado,/ pasto de piolhos (…) A terra que foi a nossa herança/ foge de mim./ É um jorro entre as pernas/ que me rejeita./ Erva e pedra, pedra e erva:/ sinais de amor desfeitos em vergonha.”
As gerações são agora definidas pelo fastio, incapazes de sacrificar seja o que for em nome de algo mais significativo que a razão que lhes serve de brinquedo, de mais um modo de se entreterem. Assim, num comentário que parece escrito por estes dias, Jorge de Sena notava que “todos quantos professam, por qualquer razão, ideias de angélica pureza, estão sempre à beira de mergulhar nesse visceral e criminoso cepticismo, porquanto é de um tal horror pela independência, multiplicidade e complexidade da vida, que nasce o pervertido anseio de uma pureza, de um reino ideal de formas e de ideias, afinal sustentado muito comodamente por tudo o que abomina”. Mas eis que, estranhamente, quase como uma insurreição, nos surge uma antologia desde uma nação ocultada e que, em muitos aspectos, nos é tão próxima. Servindo-nos uma panorâmica da poesia escrita numa língua que, ao longo dos séculos, teve de resistir aos esforços que procuraram levar à sua supressão, tendo sido tantas vezes perseguida e menosprezada, e que hoje se afirma orgulhosamente contra todos os esforços que procuraram reduzi-la a mero folclore, é de uma antologia da poesia catalã de todos os tempos, com o apropriado título “Resistir ao Tempo” (ed. Assírio & Alvim), que nos surge um dos mais empolgantes livros, mais exemplares nesse trabalho de nos mostrar a vitalidade da poesia frente a esses usos que tentam reduzi-la a “um rendilhado de palavras vagas e sentimentos difusos”, o qual sempre “se demite perante as palavras de ordem, e apresenta uma conformidade ou um compromisso com a ordem humana que lhe é consentida ou imposta” (Jorge de Sena).
Embora volumosa, com as suas seiscentas páginas, sendo bilingue, não deixa de ser bastante breve, mas o que é espantoso é como, mesmo com limitações evidentes, este trabalho da responsabilidade de Àlex Tarradellas, Rita Custódio e Sion Serra Lopes, das páginas desta antologia ergue-se um clamor imperioso, sendo que os muitos poetas, sem se verem diluídos, representados por um punhado de poemas na melhor das hipóteses ou até por um só noutros casos, conseguem aqui ligar-se num desafio que é muitíssimo sério, por um lado, mas também – e é isto aquilo que já não estamos habituados a esperar destas selectas – é muitíssimo tocante. O efeito arrebatador que vai tomando conta de nós à medida que vamos virando as páginas numa sucessão veloz e inspirada é o sinal claro de que este trabalho de divulgação da poesia catalã é a expressão de uma entrega planeada, cheia de estratégia, uma paixão amadurecida, e um sinal decisivo de luta e compromisso com a resistência de que fala o título. Levantando de entre os séculos, de obras tantas vezes esquecidas, os sinónimos de uma guerra emudecida, vão-nos sobressaltando expressões poderosíssimas que se ouvem da boca daqueles que fazem do seu ofício “unha com a carne da minha vida”, e que, “cantando entre tempestades” ou rezando secularmente “em chã oração”, nos mostram como “da prisão ao céu as algemas dão asas”. E mesmo com “tristes musas, estelas aleijadas,/ com vozes mudas, sombras desgraçadas”, a poesia prova ser “uma pedrada demasiado certa”, e perfila-se diante de nós essa estrondosa “noite de fuzilados, de rouxinóis”.
Entre as mais angustiadas expressões, das páginas que mais envergonham a recatada e pomposa, entristecida quando não mesmo envilecida, e quase sempre estéril poesia que nos vai sendo dado ler, está aquela que contém os versos de Agustí Bartra, no poema “Voz na Noite”, uma tumultuosa ode dessa guerra desesperada que faz com que os homens, adormecendo sobre a terra dura, deixem até de se impressionar com o infinito céu estrelado, ficando indiferentes aos meteoros. “Mastigámos canções quando as correias apertavam os nossos corpos famintos/ e cavámos berços de lama para a morte brusca…// O que é que vocês sabem do cigarro e da manta partilhados,/ das ansiadas cartas com perfume de juventude que se lêem devagar para durarem mais?/ O que é que sabem do beijo trocado pouco antes das partidas,/ da grandeza da nossa miséria,/ de viver dez mortes todos os dias,/ deste querer abraçar a borboleta do instante como se fosse uma coluna…?”
Talvez porque a poesia seja essa resistência humilde, que surpreende com as armas mais enjeitadas, aquelas para as quais, na guerra, ninguém corre. Assim, em “Regresso à Catalunha”, Josep Carner espanta-se com a vitalidade desse grito oculto: “Surpreende-me como um vinho/ a força velhíssima, humilde, que nos une.” E mais à frente dá-se conta da persistência de quem se serve da gramática que aproxima os mitos de coisas de nada, como os grilos, capazes de sinalizar as zonas íntimas da noite, mas também de servir de métrica à sua infinitude: “Quem me dera, perdendo-me por vales e talvegues/ dizer as tuas loas, ó terra benfazeja!/ entre coisas obscuras e vidas esquecidas/ como este grilo que canta num caminho ermo.”
O mesmo poeta serve-se daquele desejo de uma paz que sabe exprimir-se, e diz-nos: “Se pelo menos eu envelhecesse/ num sítio onde não fossem bem verdade/ os soldados, e a música e a pintura enternecessem,/ como a flor da árvore do Japão”. Assim também, Carles Salvador, prova o vigor dessa razão discretíssima que muda os homens desde o mais íntimo que há neles, “entre o marmelo cheiroso,/ o pêssego de polpa de ouro/ e a uva que se aproxima do lagar”, ali onde “a alfazema afia as lanças no ar fresco”. Mas “quantos silêncios de lento caminho” são precisos para que depois soe enfim essa nota dissonante que, de súbito, altera o rumo de um povo inteiro.
Apeles Mestres em A Canção dos Invadidos estabelece o tom de um veemente desafio: “Não passareis! E, se passardes,/ será sobre cinzas que o fareis”. Sendo o mais difícil de esquecer precisamente aquilo que é roubado dentro da intimidade de um povo, pela voz de Guerau de Liost, o invadido confessa: “Quanto mais me afasto da origem,/ mais as lembranças me lançam ao naufrágio”. Esta antologia impõe-se-nos, assim, como documento de identificação de um modo de sentir, antologia da língua, desses usos expansivos, como um cérebro milenar absorvendo mais do que o próprio mar, conservando também melhor o sentido das coisas no fundo de si. Desde esta língua, Jacint Verdaguer, diz contemplar o mar e o céu, “e a sua grandeza/ como um peso me esmaga”. E veja-se como o paralelo vai vingando na estrofe que se segue: “Estas ondas, espelho das estrelas,/ deixam ecos profundos/ do passado, e apraz-me amiúde nelas/ rever meus sonhos defuntos.” E noutras mais à frente: “Com as do mar ou as do tempo um dia/ devo rolar aos fundos; porque é que, enganosa poesia,/ me ensinas a fazer mundos?// Na areia hei-de escrever ainda mais versos?/ Praia do mar celeste,/ quando os escreverei com astros dispersos/ em tua folha nunca agreste?” Do mesmo modo que nos diz outro poeta, Joan Maragall, que “o mar é grande e move-se e brilha e canta”, pois assim, a sua memória é de uma extensão que, se num momento parece serena, no outro se precipita, e pode elevar-se como um exército, esmagando a sobranceria das grandes frotas. O mar (ou a água) surge incessantemente, como imagem que organiza a ideia de uma herança por reclamar: “e ouço a tua água, trémula e amiga,/ da fonte até ao mar – a nossa pátria antiga” (Màrius Torres). Já Ramon Llull, no século XIII, usava esta curiosa imagem: “E a água, acostumada a cair, quando será hora de correr para o alto, como é natural?”
Como o País Basco e a Galiza, a Catalunha mantém-se unida a Espanha por ter sido submetida à força desde há séculos a uma ideia de nação que uma parte significativa, senão maioritária, do povo catalão considera atentatória da sua própria identidade e cultura, tendo no vínculo a Espanha algo mais na ordem de uma velha tradição de terror do que de uma união feliz e frutuosa. O poeta aqui é como a figura testamentária, o notário de uma revolta que, mesmo se adiada, vai reunindo o seu arsenal, e, assim, “sonha mundos que nascem – e mundos já fugidos”. O poeta é esse que espera o seu tempo, e que morre sem este ter chegado não dando a vida como perdida. Pois, mesmo se não pode banhar-se nas águas desse outro mundo, abriu-se já com a sua luz, como “um amplo girassol”. E, como escreve J.V. Foix, mesmo se as nuvens cobrem o céu, “Quando chove eu danço só/ Visto de algas, ouro e escamas”. Mas melhor que isso: “Visto-me à moda antiga/ E vou atrás da caseira,/ E entre pinhal e brenha/ Planto a minha bandeira./ Com uma agulha de coser/ Mato o monstro inominável (…) Quando durmo vejo a luz/ Presa de um doce narcótico,/ Com pérolas em cada mão/ Habito as entranhas de um búzio”…
E tudo isto, como nos diz o mesmo poeta, é possível por ser este o “país onde desabrocham as flores do além-sono com sépalas vermelho crepuscular e pétalas azul nocturno, e caules franzinos com o viço da flor de oliveira”. O poeta é então esse ser que sabe vestir-se “com ternuras de roupa secreta de linho com bordados e laçadas”, sabe guardar junto à pele e aquecer-se como quem tem para si um nome, esse que contra tudo, e mesmo contra o mundo, parece capaz de vir buscar-nos, sendo “extremo como a certeza dos deuses”. Porque a resistência, na inscrição particular de cada um, não pode deixar de se inscrever nesse gesto de busca, e é difícil nesta antologia separar os ossos das flores, e nalgumas páginas damos precisamente por ossos-flor, persistências singularíssimas de um sentimento que deseja enterrar-se e integrar o murmúrio vibrante da terra. Joan Salvat-Papasseit explica porque aqui, nesta terra, nada é mesquinho. “Nada é mesquinho,/ porque os dias não passam;/ e a morte não chega nem se a pedirem./ E se a pedirem disfarça-vos uma cova/ porque é preciso morrer para voltar a nascer./ E nunca somos pranto/ mas sim sorriso fino/ que se dispersa como gomos de laranja.” E insiste que nada é mesquinho “porque a canção canta em cada partícula”. E a resistência ao tempo é esta, este amor discreto, que se salva indo pela margem, a latejar, como uma razão que se furta à realidade que nos humilha: “saberemos a medida de todas as coisas/ dizendo apenas que ainda nos amamos”. Estes aparecem assim no meio dos outros, procurando “novas rotas/ com o olhar lento de quem percebe, distraído”.
Com um esclarecedor, informado e também contido prefácio, assinado por Tarradellas, esta soberba antologia consegue verdadeiramente dar a entender ao leitor português “a dimensão desta língua” – a qual conta “com mais de dez milhões de falantes e 68 mil km de domínio linguístico”. Mais do que proveitosas, as traduções são admiráveis por mexerem tão fundo dentro do português, animando fisiologicamente uma língua que tem andado um tanto enxovalhada pelos poetas hoje vivos, que, salvo raras excepções, se mostram incapazes de envergar a tradição como uma presença natural, como uma língua de uso, uma língua materna, em vez de ser mais uma espécie de programa frio para aqueles que se regozijam com usos afectados, as arqueologias servidas em monstras para os que frequentam os museus da arte poética. Pelo contrário, este trio de tradutores trabalha o português de forma bem mais notável que tantos poetas, dotando-o daquela dose de passado e de futuro necessária para que o presente se solte, aberto, disponível, vigilante, não se contraindo em dobras, desabamentos e muralhas. E é isso que permite que esta obra seja um valiosíssimo documento dessas resistências “provinciais” ligadas ao uso do catalão, um mapa que se dobra ou desdobra no tempo, e que não serve meros ecos mas faz comunicar as vozes que aqui se reúnem, exaltando a persistência daquelas zonas não assimiladas. E salvo daquele ranço de gravura antiga que ainda convém àqueles que nascem já com os ossos velhos, julgando que é isso o que deles faz poetas, aqui, enquanto notário de uma revolta ao mesmo tempo íntima e colectiva, o poeta doseia a sua angústia para não deixar que lhe escape a razão, exercita-se e a esse sentido de composição que abre margem para que a beleza lhe ensine a perpetuar-se. Uma vez mais é Bartra quem exprime esta tensão que, da postura mais humilde, consegue alcançar o sublime: “Quando de mim, afinal, só restarem as letras/ colocadas como aves sobre cabos tensos/ dos espíritos fieis nesses hinos da vida,/ chorará um martelo pela luz extinta (…) As virgens fremirão durante os plenilúnios/ à espera do amor entre os grilos e a acácia./ Eu já não terei rosto. Aos meus ouvidos de erva,/ o tempo fará soar um guizo de estrelas…”