Desde a sua distância absurda, as estrelas sorriem aos mortais. Foi o que aconteceu a um anónimo que deu por uma pintura numa lixeira canadiana, em Ontário, e pagou cinco dólares a um centro de doações para ficar com ela. Estava longe de imaginar que acabaria por vendê-la por dez mil dólares. Mas teve pelo menos a intuição de que podia tratar-se de algo raro, precioso, que destoava do ambiente ao redor, embora não deixasse de se encontrar ali para desejar a alguém um desses acasos incríveis, um rapto alienígena. Afinal, esse retrato com o título “DHead XLVI” fora pintado por David Bowie, o ícone da cultura popular que desapareceu em janeiro de 2016, aos 69 anos. Aquela pintura integra uma série de pouco menos de meia centena de obras que o músico britânico pintou entre 1995 e 1997, e num dos cantos inferiores pode ler-se a assinatura de Bowie, além da data (1997) e de uma pequena descrição da obra, que tem o número 46: “Acrílico e colagem computadorizada sobre tela”.
Este artista que transcendeu géneros foi ele mesmo, na sua camaleónica absorção de elementos díspares, uma criação exuberante, extenuando o catálogo humano e indo mais além, num desdobramento que foi da exploração embrionária do modernismo dos anos 1960, à estrela de rock sexualmente ambígua, tendo compreendido antes de todos que o rock começava por ser um estômago bestial, capaz de explorar galáxias culturais distantes entre si, usando para isso instrumentos de navegação com leituras bastante profundas no que toca ao imaginário colectivo. E além de músico, cantor, compositor e letrista, Bowie também experimentou noutros terrenos, como a pintura.
E este retrato em particular merece entrar para a longa lista de fortuitos e tantas vezes insólitos acasos que estabelecem essa zona de cruzamentos que fazem de Bowie um dos artistas com maior alcance nos nossos dias, sem que a sua morte tenha perturbado minimamente essa força expansiva da sua obra. Desde logo porque o anónimo que deu com a pintura não é um coleccionador, mas é alguém que simplesmente tropeçou nela, e a achou bastante bela, deslocada, naquele museu selvagem, que, paradoxalmente, talvez tenha sido o sítio ideal para que o retrato causasse uma extraordinária impressão mesmo a alguém sem particulares veleidades estéticas. Foi já com a pintura na mão, voltando-a para ver o verso, que esse anónimo se deu conta de que, possivelmente, acabara de fazer um grande achado.
Rob Cowley, presidente da casa de leilões Cowley Abbott que vendeu a obra por um valor 2000 vezes superior àquele que foi pago para o retirar da lixeira, contou à CNN que o vendedor entrou em contacto com a sua leiloeira em novembro passado, e que logo se encarregaram de autenticar a pintura.
A Cowley Abbot contactou então Andy Peters, um especialista em autógrafos de Bowie com mais de 40 anos de experiência: "Quando vi a pintura pela primeira vez, soube imediatamente o que era. Não precisei ver o autógrafo na parte de trás porque já sabia do que se tratava, e obviamente a empresa fechou o negócio." Peters reconhece que Bowie "mudou muito a sua assinatura durante os 55 anos da sua carreira, mas há certas nuances em cada autógrafo que os falsificadores não podem replicar". Embora se previsse que a obra atingisse um valor em torno de 10.000 dólares canadianos (cerca de 6.700 euros na bolsa), bastou o primeiro dia do leilão para ser ultrapassada esta cifra, com a melhor oferta a rondar já os 11.500 euros.